Edição 476 | 03 Novembro 2015

Francisco e a metafísica como ecologia integral: a questão fundamental do pensamento contemporâneo

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Patricia Fachin e João Vitor Santos

O filósofo Manfredo Araújo de Oliveira revisita a história da metafísica e sugere o desenvolvimento de uma filosofia sistemática.

“O papa põe-se na linha do que muitos filósofos aspiram hoje. Esse é o ponto que não está sendo visto”, diz Manfredo Araújo de Oliveira à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida pessoalmente quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, e participou de uma mesa-redonda sobre a Carta Encíclica Laudato Si’.

Na avaliação do filósofo, a contribuição do papa para pensar os dilemas da COP-21, a ser realizada em Paris no final deste ano, só foi viável “porque abriu a perspectiva que torna isso possível, e é disso que acho que o pessoal não está se dando conta”, comenta.

De acordo com Manfredo, hoje muitos cientistas ou filósofos que adotam uma visão “integrada” dos saberes ainda estão pensando numa perspectiva epistemológica, ou seja, estão “dizendo apenas que é preciso juntar química, física, matemática, humanidades, tecnicidades. Mas o papa vai muito além disso, vai numa visão holística da realidade, que vê a realidade de fato como um todo”, explica. Segundo ele, o que está “embutido” na Encíclica Laudato Si’ é uma “perspectiva ontológica, metafísica, é algo grandioso, porque a filosofia hoje apenas vislumbra superar os dualismos, o dualismo cartesiano, mas não é só isso, temos de superar o dualismo ontológico, porque a realidade foi dividida toda em pedaços e ninguém vê mais relação de uma coisa com outra”, acentua.

De acordo com o filósofo, o capítulo central da Encíclica papal é o quarto, que trata da ecologia integral, “que supera aquela visão analítica de que as coisas estão separadas entre si. O papa traz uma visão metafísica sobre a globalidade. Há uma dimensão de contingência, que não se explica por ela mesma, ou seja, trata-se da pergunta de por que existe algo e não nada. Ele repôs, contra todos os dualismos vigentes no nosso mundo, uma visão global sintética, sistemática, de ver as conectividades universais de todas as coisas”, destaca.

Para Manfredo, depois da recusa ou de uma reinterpretação do que seria a metafísica desde Kant, a filosofia deve recuperar uma perspectiva sistemática, e tratar das “conectividades”, ou seja, “pensar o que ética tem a ver com metafísica, o que tem a ver antropologia com ética e filosofia da natureza”. E frisa: “Não dá mais para ficar pensando em filosofias que criam dualismos insustentáveis. O papa está diante de um certo anseio que os filósofos norte-americanos também têm, que é superar o “gap” entre teoria e mundo, linguagem e realidade. Essa é a questão fundamental do pensamento contemporâneo. Mas os filósofos não conseguiram ir adiante”.

Na entrevista a seguir, Manfredo de Araújo Oliveira revisita a história da metafísica no pensamento ocidental e sugere a sua retomada como ponto fundamental para compreender a realidade na sua totalidade.

Manfredo Araújo de Oliveira é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e doutor em Filosofia pela Universität Ludwig Maximilian de Munique, Alemanha. Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Ceará. Recentemente, Manfredo Araújo de Oliveira lançou seu novo livro intitulado A ontologia em debate no pensamento contemporâneo (São Paulo: Paulus, 2014).

A entrevista foi publicada originalmente nas Notícias do Dia, de 20-10-2015

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line - Quais foram as diferentes razões que levaram alguns filósofos, a exemplo de Kant , Nietzsche , Heidegger , Wittgenstein  e os membros do Círculo de Viena, a recusar a metafísica ou a propor outro tipo de metafísica? Eles de fato quiseram recusá-la ou quiseram fazer outro tipo de metafísica?

Manfredo Araújo de Oliveira – Kant queria uma outra metafísica, que era em primeiro lugar uma teoria das condições de possibilidade do conhecimento humano, que para mim significa uma metafísica extremamente restrita à dimensão epistemológica. Quer dizer, ela não trata propriamente daquilo que seria a tarefa da metafísica, que é pensar o Ser em seu todo, mas trata de pensar as condições de possibilidade a partir do sujeito. Esse é o grande problema, porque se trata de uma restrição. Foi aí que se criou aquela dicotomia entre aquilo que eu não conheço de jeito nenhum, que no fundo é a realidade mesma, e aquilo que posso organizar a partir das categorias. Então, a metafísica em Kant era, em primeiro lugar, a metafísica da epistemologia, depois a metafísica dos costumes e, por fim, ele levantou a pergunta fundamental de como é possível pensar a unidade entre essas duas dimensões. Mas como ele eliminou essa possibilidade num primeiro momento, terminou fazendo uma metafísica que podemos chamar de “como se”, que é a terceira Crítica [Crítica do Juízo], normalmente ignorada quando se fala de Kant.

A dimensão comum, abrangente e unitária, para ele, é apenas uma filosofia de “como se isso fosse possível”, como Wittgenstein, aliás, faz semelhante no Tractatus [Tractatus Logico-Philosophicus], quando diz que há isomorfia entre linguagem e mundo. Wittgenstein diz que essa isomorfia existe porque a forma lógica diz respeito tanto à linguagem quanto ao mundo, e se a filosofia fosse possível, se pensaria a forma lógica. Mas para ele, a filosofia não é possível, porque meu conhecimento e minha linguagem estão completamente voltados para dizer o que são os fatos e, portanto, não temos condições de pensar a unidade.

Nietzsche e a luta de forças

Nietzsche, a meu ver, é semelhante a Heidegger. Aliás, as críticas que Heidegger faz à metafísica partem de Nietzsche. Nietzsche esbraveja contra a metafísica, considerava o platonismo e o cristianismo os grandes inimigos da vida, mas no fundo ele tem uma nova metafísica, que é a teoria da vontade de poder, que é uma estrutura que marca tudo; ou seja, o que é mundo? O mundo é uma luta de forças. 

Desta forma se mostra que há diferentes propostas, porque Kant também pode ser dito como não destruidor da metafísica, pois sugere uma nova metafísica, mas que de metafísica tem muito pouco. Nietzsche, embora negue a metafísica, termina tendo uma ontologia específica. No meu livro “Ontologia em debate no pensamento contemporâneo”(Paulus, 2014), digo que ele repôs a metafísica através de uma metafísica da teoria da vontade de poder, que não é uma categoria epistemológica, mas ontológica, porque diz o que acontece no mundo: o mundo é uma luta de poderes e é a partir daí que ele constrói a sua visão de mundo.

Heidegger e a metafísica originária

Em relação a Heidegger há uma grande confusão, porque ficou mais ou menos estabelecido, pela opinião pública filosófica, que Heidegger escreveu toda a sua filosofia para destruir a metafísica. Claro que Heidegger, em parte, tem culpa, porque ele fala de uma maneira como se fosse isso, quando na realidade uma aproximação mais séria e profunda do pensamento dele mostra que ele é contra uma forma de metafísica que não atingiu aquilo que para ele seria propriamente a metafísica. Sua tese é de que toda a metafísica ocidental é uma ontoteologia, quer dizer, é uma teoria do ente, que busca o Ser do ente; o Ser, porém, ficou sempre no horizonte e nunca foi tematizado e ao invés disso se apelou para um fundamento do ente, o Ente Supremo. Heidegger queria uma metafísica mais originária do que aquela que a filosofia ocidental foi capaz de criar. Do ponto de vista intuitivo, é uma intuição genial, mas que não foi capaz de se constituir como uma teoria minimamente consistente. Tem certos momentos em que Heidegger diz: “Estou em dificuldades de linguagem. Toda linguagem ocidental é baseada na metafísica da ontoteologia e, portanto, não dá”. Mas ele nunca construiu ou pensou numa linguagem alternativa, numa teoria alternativa, porque havia, por parte de Heidegger, uma ligação tão profunda com uma certa maneira de entender a fenomenologia, que tem na intuição o elemento fundamental, que o impediu de articular uma teoria.

Heidegger escreveu o verbete sobre fenomenologia para uma nova edição da Enciclopédia Britânica, e Husserl [Edmund Husserl]  ficou furioso com a apresentação que ele fez da fenomenologia. Porém, ele argumentou que todo o pensamento da fenomenologia de Husserl se concentrava na relação entre a “subjetividade constituinte”, aquela que constitui toda e qualquer realidade como objeto do conhecimento humano, e o “objeto constituído” por ela. Ora, o Ser diz respeito tanto ao sujeito constituinte quanto ao objeto constituído, ou seja, está em jogo aqui aquela unidade que torna possível distinguir e relacionar sujeito e objeto.

Metafísica

Convencionou-se distinguir a metafísica enquanto ontologia, ou seja, enquanto é uma teoria dos entes, em dois grandes momentos: o primeiro é aquele que depois se chamou de ontologia geral (na linguagem de Wolff [Christian Wolff]  e Baumgarten [Alexander Gottlieb Baumgarten] , quer dizer, aquela ontologia que se pergunta sobre os constitutivos fundamentais do ente enquanto tal, qualquer que seja ele; em seguida, consideravam-se os três grandes campos de entes e chamaram isso de metafísicas especiais ou ontologias especiais ou regionais, que consiste em:

1) o tratamento das coisas da natureza, da cosmologia;

2) os tratamentos dos fenômenos psíquicos, da psicologia racional;

3) e o tratamento de Deus, a teologia.

Podemos dizer, independente do problema de Deus, que não pode ser tratado, na minha maneira de entender, como uma ontologia especial – mas isso não é tema para ser tratado aqui –, que a metafísica hoje tem dois momentos: a metafísica enquanto teoria dos entes, que se pergunta pelo que há de comum entre os entes, suas características fundamentais, ou seja, com quais categorias podemos pensá-los; e, em última instância, há uma “Teoria do Ser” propriamente dita, intuída por Heidegger, mas nunca pensada por ele, ou seja, Ser como aquela dimensão abrangente, aquela dimensão que é o comum a todas as realidades. De modo que esses autores que você citou têm diferentes entradas e perspectivas em que se fala de destruição e recomposição da metafísica.

 

IHU On-Line – As teorias de Wittgenstein tiveram um impacto mais negativo sobre a metafísica?

Manfredo Araújo de Oliveira – Sim, foi um impacto negativo num primeiro momento. Tanto é que ele abandonou a filosofia e foi para um mosteiro, mas o abade conseguiu mostrar a ele que o lugar dele não era na abadia, mas na filosofia (risos). Mas veja, há três momentos no pensamento de Wittgenstein e o terceiro é praticamente desconhecido. O primeiro momento é do Tractatus, no qual ele disse: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar”. Mas isso não quer dizer que as coisas das quais a metafísica, a religião e a moral tratam não sejam as mais importantes, mas não podemos falar sobre elas porque a linguagem é condicionada a falar dos fatos. No segundo momento, Wittgenstein começou a fazer uma crítica muito grande à ideia de linguagem, à ideia de realidade que estava presente no Tractatus, e desembocou num pragmatismo radical. Mas, depois disso, há um terceiro momento em que ele começa a se aproximar muito mais da metafísica anterior a tudo isso. No livro Da certeza, ele toma posição sobre o ceticismo e faz afirmações sistemáticas. Eu fiquei até espantado ao ler essa obra, considerando tudo que ele havia dito antes. Quando li esse livro pela primeira vez, achei que não estava entendendo, porque ele faz afirmações fortes que se contrapõem à outra fase. Recentemente descobri os intérpretes da última fase e vi que eu estava certo (risos).

 

IHU On-Line – Como se faz metafísica contemporaneamente? O que os filósofos entendem por isso?

Manfredo Araújo de Oliveira – A metafísica tinha sido banida da face da terra quando Kant epistemologizou a filosofia, dizendo que antes de se perguntar por qualquer coisa temos de nos perguntar sobre aquele que pergunta sobre qualquer coisa ou sobre as condições de possibilidade do conhecimento de qualquer coisa e, com isso, a filosofia deixou de ser uma teoria do mundo e se fez uma teoria dos pressupostos do conhecimento do mundo.

Desde então a ontologia foi considerada alguma coisa banida da face do universo. Mas, por incrível que pareça, ali onde a metafísica tinha também sido banida de uma maneira violenta por uma concepção que ligou a Reviravolta Linguística e o empirismo filosófico, no seio do Positivismo Lógico, no ambiente da filosofia analítica se recuperou a metafísica. E os americanos, ao contrário dos europeus — que têm até medo de falar a palavra metafísica —, repuseram a metafísica com a maior tranquilidade e passaram a dar um intensivo tratamento. Hoje há uma certa confusão na compreensão do que é a filosofia analítica. Moore [George Edward Moore]  diz com muita clareza que, quando se fala de filosofia analítica, pode-se entender isso de duas formas: como uma filosofia da linguagem, ou seja, que faz da linguagem o seu objeto — e não é essa a perspectiva fundamental da filosofia analítica; ou uma “filosofia através da linguagem”, para dizer que a análise da linguagem é o espaço, a instância em que uma teoria filosófica se articula e então, necessariamente, se passa pela análise da linguagem na consideração de qualquer problema filosófico.

Nesse sentido, é perfeitamente possível conciliar a Reviravolta Linguística com uma metafísica na medida em que se leva em consideração a compreensão de que a mediação linguística é fundamental porque a linguagem é um dos elementos fundamentais de uma teoria. 

 

IHU On-Line – Então não há uma separação entre filosofia analítica e filosofia continental, tal como alguns sugerem que exista, ao menos nesses termos que o senhor explica?

Manfredo Araújo de Oliveira – Não nesses termos. Como diz John McDowell  nos EUA, nada escapa à dimensão do conceitual. Quando você fala de alguma coisa, já está falando e, portanto, já está utilizando conceitos e, nesse sentido, não há lacuna, não há um gap — como diz Putnam [Hilary Putnam]  — entre a linguagem e o mundo. Então, o problema é através da linguagem tematizar o mundo. Nesse sentido você volta a entender que a metafísica não é uma disciplina entre as outras, mas a pressuposta de todas e, portanto, se recupera, de alguma maneira, aquilo que dizia Aristóteles quando questionava: “Por que é necessário levantar a pergunta do ente enquanto ente?” Por que eu devo fazer isso? Porque, dizia ele, tudo aquilo que eu trato em filosofia é ente e, portanto, o que é o ente está pressuposto por todas as outras disciplinas. Nesse sentido, a metafísica trabalha as categorias com as quais nós consideramos toda e qualquer realidade e, nesse sentido, ela é pressuposta por todas as outras.

Tradição metafísica

A grande tradição da metafísica ocidental de fato foi uma teoria ontoteológica, isto é, dos entes, e não teve a intuição, como Tomás de Aquino teve, de que existe uma dimensão mais englobante que a questão do que é o ente enquanto ente. Tomando isso dentro da consciência teórica que temos hoje, as filosofias que saíram da Reviravolta Linguística não têm muita consciência dessa “dimensão primordial” que Heidegger chamava de Ser. Nas filosofias analíticas, as metafísicas reconstituídas nos séculos XX e XXI são teorias dos entes e normalmente nem são uma teoria do ente enquanto tal, mas elas tratam de uma série de problemas, como o problema dos mundos possíveis, o problema do realismo e do antirrealismo, o problema das modalidades, mas normalmente não são teorias que juntem esses problemas de forma sistemática, ao contrário, são trabalhadas algumas questões isoladamente.

Nesse sentido, eu diria que o grande método da filosofia analítica — depois que a filosofia tinha se tornado praticamente uma consideração histórica dos diversos filósofos do passado — foi voltar a uma dimensão sistemática, no sentido de querer trabalhar novamente os problemas e não somente interpretações dos filósofos de nossa tradição. Porém a dificuldade é que os analíticos não têm ainda claramente uma ideia de que há uma integração das diversas questões. Por outro lado, saiu também da Reviravolta Linguística a filosofia fenomenológica hermenêutica, com Heidegger e Gadamer [Hans-Georg Gadamer] , que têm o grande mérito de ter levantado a questão do Ser, mas não conseguem pensá-la por uma série de motivos, entre outros, o fato de ter considerado como momento secundário a dimensão teórica da filosofia. Eles apelam para grandes intuições, que são importantes, mas que não chegam a se constituir teoricamente. Heidegger, nos escritos publicados depois da sua morte, sempre voltou com muita insistência à mesma questão fundamental, de repetidos modos, mas sem ser capaz de articular minimamente, teoricamente, o que ele queria com essa história.

 

IHU On-Line – Alguns filósofos também falam em pós-metafísica. Como o senhor entende isso?

Manfredo Araújo de Oliveira – Habermas , hoje, é um dos filósofos que fala em pensamento pós-metafísico e diz que aí está o passo decisivo do pensamento hoje. Ele diz que o acontecimento teórico mais fundamental da filosofia do século XX foi a Reviravolta Linguística e adota a ideia de Quine [Willard van Orman Quine]  de que ela colocou a filosofia num patamar teórico completamente diferente. Agora, isso significa, para Habermas, que a metafísica se tornou impensável e o problema fundamental é, portanto, articular o pós-metafísico, ou seja, devemos fundamentar tudo pós-metafisicamente. Agora, se você vai atrás para ver o que Habermas pensa sobre pós-metafísica, tem de se perguntar o que é metafísica para ele para poder entender o que chama de pós-metafísico.

Por incrível que pareça, Habermas manifesta uma ignorância enciclopédica em relação a toda a metafísica anterior a Kant. Para ele, metafísica é a tentativa kantiana de reformulação da filosofia, ou seja, da filosofia transcendental clássica que, como ele diz, situa a esfera transcendental no mundo inteligível. Ele diz isso com muita clareza no livro “Verdade e Justificação” (1999), onde diz que retoma os problemas teóricos.

Ele também escreveu “A teoria da Ação Comunicativa” (1981), em que tinha a preocupação de dar uma base teórica e epistemológica às Ciências Sociais, tanto que seus grandes interlocutores nesta obra são todos sociólogos, como Max Weber, Marx, os autores da sociologia dos sistemas. No livro de 1999, ele diz que o grande desafio hoje é uma mudança fundamental de paradigma: passar de um paradigma mentalista (uma filosofia da consciência), que é a metafísica, ou seja, a filosofia transcendental clássica que situou as condições elimináveis do conhecimento humano na esfera do mundo inteligível, para uma filosofia transcendental pragmática, que vai descobrir essas condições de possibilidade do conhecimento humano que se geram nas práticas simbólicas dos mundos vividos em que as pessoas estão inseridas. Então é preciso, como ele diz, descer do mundo inteligível — e por isso metafísico — para a terra, onde se situam as pessoas. Portanto, para Habermas, a tarefa fundamental da filosofia hoje é se tornar um pensamento pós-metafísico, o que significa dizer, superar o modelo da filosofia transcendental clássica e descer às bases do mundo.

Tanto é assim que ele diz que a metafísica clássica foi idealista, porque ela não pensou na prática da construção dos nossos esquemas transcendentais e muito menos pensou que esses esquemas transcendentais vêm de um processo de evolução da natureza (teoria do naturalismo fraco).

Uso da palavra metafísica

Habermas diz que se põe numa tradição transcendental fraca, não vê mais a dicotomia entre o empírico e o transcendental, e diz que na verdade ontologia não é tarefa da filosofia. A filosofia continua tendo como tarefa explicitar os pressupostos do nosso conhecer e nosso agir no mundo. Essa é a pergunta transcendental. Mas chega um momento em que Habermas diz que tem de postular um mundo objetivo. E como é esse mundo? Um conjunto de objetos que têm propriedades e relações. Veja, isto é a ontologia clássica, bem direitinho (risos). Entretanto, ele não diz uma palavra sobre isso. O mesmo acontece com John McDowell, que diz que o grande desafio contemporâneo é o que foi articulado por Putnam, ou seja, superar o “gap” que se criou entre linguagem e mundo, teoria e realidade. Ele diz que nós já ultrapassamos isso e analisa essa questão do ponto de vista da conceitualidade (nada está fora do conceito). Mas ele não articula uma ontologia. Ou seja, diz que a dicotomia tem de ser superada, mas sempre pensa implicitamente de forma transcendental (a partir do conceito e não também a partir do ser).

Hoje acho que se tornou simplesmente caótico o uso da palavra metafísica, e quando recebo um trabalho que trata de metafísica, logo pergunto para a pessoa me dizer o que entende por metafísica. Os norte-americanos de ordem analítica, por exemplo, simplesmente identificam metafísica com ontologia. Michael Loux , por exemplo, faz pura ontologia, mas ele chama isso de metafísica. David Lewis e companhia limitada fazem o mesmo.

Na Europa, quando se fala em metafísica, se escuta xingamento de todos os lados. Então, eu nem digo num primeiro momento que sou um metafísico, porque eu geraria na cabeça das pessoas as mais diferentes interpretações e as piores do que eu sou (risos).

 

IHU On-Line – Por metafísica podemos compreender uma dimensão da filosofia que tem como objetivo compreender os fundamentos últimos da realidade como um todo?

Manfredo Araújo de Oliveira – Num primeiro momento a formulação não é boa porque pode ser entendida no sentido da ontoteologia. Foi essa a pretensão dela desde que nasceu. Agora, é possível entender isso em diferentes níveis: pode ser num nível de afirmar que há entidades no mundo — então, o que é uma entidade é o nível da ontologia —, mas posso pensar a esfera abrangente que é comum a todas as entidades — isso seria propriamente a metafísica dois, ou seja, uma teoria do Ser estritamente falando.

Apareceu na Alemanha um livro do Markus Gabriel , que é o bebê da filosofia hoje, e o neorrealismo dele é decorrente de uma ontologia que surgiu na França, com Badiou.  Ele é importante porque essa nova ontologia parte da seguinte percepção inicial: a Reviravolta Linguística do século XX, quando se tornou pragmática, considerou a linguagem como produção humana, mas considerada como produção humana a linguagem é uma realidade diferenciada, cada povo tem a sua, quer dizer, cairíamos, através disso, num relativismo muito radical. O que importa agora? Esquecer isso, deixar essa história da Reviravolta Linguística para trás e fazer, simplesmente, ontologia. Agora, como? Caída do céu?

Para resolver isso, Badiou diz que temos de fazer duas grandes aproximações: uma da dimensão estática do mundo, e quem dá conta disso é a matemática (a teoria de conjuntos), ou seja, ontologia é matemática. Mas a realidade é mais do que isso, é também evento, ou seja, o novo, o não esperado e, por isso, temos de pensar essas duas dimensões. Markus Gabriel, Slavoj Žižek  e outros agora fazem a filosofia da finitude radical (tese de Meillassoux), dizendo que só existe uma coisa necessária no mundo: a contingência (risos). Todos esses filósofos, como João Branquinho  também em Portugal, fazem esse esforço importante de volta à ontologia. Branquinho acabou de escrever uma obra chamada Metafísica logicamente disciplinada. E o que é logicamente disciplinada? É aquela metafísica que vai pegar os principais problemas que Aristóteles levantou, mas vai trabalhá-los com o instrumental lógico que a Reviravolta Linguística pôs à disposição dos filósofos com a lógica pós-fregeana. Então, para eles, a única coisa que se pode aproveitar da Reviravolta Linguística é o instrumental lógico para dar rigor lógico às considerações metafísicas. Essa nova corrente de ontologia quer passar por cima da Reviravolta Linguística.

 

IHU On-Line – Considerando isso que o senhor disse até agora, de que estão entendendo metafísica por ontologia, e o atual avanço das ciências naturais, ainda há espaço para a filosofia em termos gerais, para a metafísica? Que aspectos da realidade dizem respeito à ciência e o que deve dizer respeito à filosofia e como elas devem dialogar?

Manfredo Araújo de Oliveira – Quando se recuperou a metafísica, ela foi recuperada no nível da ontologia e não da ontologia geral, mas se pegam questões especiais, como a questão da mente, que virou a coqueluche do mundo contemporâneo, mas que no fundo tem uma teoria metafísica fortíssima.

Os saberes devem estar entrelaçados, mas não se pode perder os quadros teóricos a partir de onde os diversos saberes se constituem, porque a partir do respectivo quadro teórico é possível avaliar os saberes. Então, eu não posso ao mesmo tempo fazer uma ciência empírica e filosofia, achando que tudo é a mesma coisa. Esse é o grande problema da filosofia da mente, que já não distingue mais o que diz respeito à ciência, à neurociência, e quais são as questões de ordem ontológica que são postas, porque no fundo a filosofia da mente é uma grande ontologia, uma teoria muito específica do ente. Os dualismos ou monismo que se têm aí são todos ontológicos, embora não se tenha nunca uma clareza explícita da ontologia com que se está trabalhando, ou seja, ficam usando ontologia sem se dar conta dela (risos).

A tese fundamental da filosofia da mente em sua vertente fisicalista é: toda e qualquer realidade é física. Quando se diz isso, não se está mais trabalhando a mente, mas dizendo algo sobre toda e qualquer realidade e fazendo metafísica (no nível da ontologia geral). Como se justifica isso, é outra questão. Hoje implicitamente há uma teoria metafísica materialista, porque a maior parte dos filósofos, implicitamente, acha que o mundo inteiro é físico.

 

IHU On-Line – Implicitamente ou explícita e declaradamente?

Manfredo Araújo de Oliveira – Alguns explicitamente também, mas muitos implicitamente porque eles não trabalham essas questões. A metafísica hoje se desdobra em uma série de problemas e há uma lista de questões que são trabalhadas. É uma metafísica embrionária, mas já é importante porque, como ela foi considerada uma coisa proibida e sem sentido, temos de ver que existe hoje uma boa parte de filósofos que consideram essas questões pensáveis e com sentido.

Hoje é muito importante ter clareza de que toda teoria tem um marco, e o marco determina não só todo o tipo de problema que pode surgir, mas que respostas a teoria pode dar. Então hoje estamos sendo obrigados — infelizmente poucos pensam nisso —, a nos perguntar o que nos dão as ciências da natureza nas suas diversas propostas de compreensão, porque há propostas muito diferenciadas. Na física, por exemplo, existe a mecânica clássica, a mecânica quântica, a relativista, a teoria de todas as coisas. Isso ainda é uma ciência? Até que ponto ela é científica? Stephen Hawking  está até fazendo afirmações sobre Deus a partir da ciência. Mas isso é ciência? A ciência trabalha com esse marco teórico? São perguntas que devem ser feitas.

Se você distingue a filosofia da ciência, você diria que a filosofia teria como tarefa se preocupar com aquilo que são as estruturas universais presentes em todos os campos da realidade, ou seja, na esfera do físico, do biológico etc. Mas existe ainda uma outra dimensão do conhecimento, que é se perguntar quais são as estruturas específicas de determinados campos, ou seja, o que é o orgânico? Essa é uma briga que os biólogos têm de fazer. No meio dessas duas esferas tem uma dimensão intermediária que é filosófica, que consiste em pegar todas as informações do que são as dimensões particulares e pensá-las a partir das estruturas universais. Isso é a nova versão das metafísicas especiais do passado.

Três campos do saber

Então, temos três grandes campos de saber: as ciências de um modo geral, que têm como tarefa tematizar as estruturas específicas e particulares de todos os campos da realidade; tem a filosofia que em última instância é metafísica, pensando as estruturas universais; e tem, por fim, aquilo que fica no meio, que são as ontologias especiais, que são metafísicas, mas que pegam o trabalho das ciências e pensam isso a partir das estruturas universais. Nesse sentido, a ciência não só explica os fatos, como Wittgenstein diz, mas explica o que as coisas são nas suas particularidades, quais são os constitutivos específicos das coisas. Portanto, é uma tarefa muito maior para as ciências.

Se não se diferenciam as diferentes atividades, adota-se o discurso de que existe a neurociência e, portanto, não se precisa mais de filosofia. Trata-se de saber que existem diferentes tipos de saberes e que não podemos encontrar tudo em todos os lugares, porque os quadros teóricos são diferentes. Eu não vejo problema em os saberes dialogarem, mas eles não podem perder as suas especificidades. Um filósofo que ignora a ciência está perdido, embora esse seja um problema enorme, porque há uma multiplicidade de saberes na ciência. O que é física? Há inúmeras propostas. A mesma coisa ocorre com a filosofia, porque há quadros teóricos diferenciados. O filósofo não vai poder contar com a ideia de que existe a filosofia, mas existem filosofias. Mas ele terá de fazer a comparação de por que escolheu uma determinada filosofia e aí o filósofo vai buscar as razões de por que trata a filosofia de determinado modo.

 

IHU On-Line - Que impasses percebe entre aqueles que defendem uma posição realista, que traz consigo uma concepção de que não criamos o mundo, mas o encontramos, que é possível ter uma descrição verdadeira, objetiva , correta e completa do mundo como ele é em si mesmo, e de outro lado, a posição antirrealista, que culmina em aceitar o construtivismo, o relativismo e o estruturalismo epistemológico? Por que as teses antirrealistas parecem ter bastante peso nas humanidades?

Manfredo Araújo de Oliveira – Óbvio que essa posição é mais aceita, porque ela corresponde a uma posição que se estabeleceu – defendi esse ponto de vista na minha tese de doutorado – ainda na Escolástica tardo-medieval com Ockham [Guilherme de Ockham]  e Suárez [Francisco Suárez] . Não dá para entender a metafísica moderna sem entender Suárez, porque todos os modernos aprenderam metafísica com ele.

Uma revolução filosófica não acontece abruptamente, ela se gestou por um longo processo que começou na Idade Média tardia e se articulou de maneira plena em Kant.

Eu digo que a posição hegemônica em filosofia ainda é a transcendental nesse sentido, porque o antirrealismo é uma maneira diferente de dizer que todo conhecimento tem uma mediação e essa mediação é subjetiva ou intersubjetiva. O realismo diz que existe um mundo completamente independente de mim, da minha linguagem etc. Ambas as posições a meu ver são insustentáveis.

Uma posição que diz que há um mundo que é independente da teoria, da consciência, da linguagem é equivocada, porque se autodestrói: estou acabando de falar do mundo e falo dele a partir de conceitos, que são expressos na linguagem. O que não quer dizer que não exista o mundo em si mesmo na sua constituição. Nesse ponto, o antirrealismo tem razão sobre o realismo ao dizer que o conhecimento não mediado não é humano, porque sempre existe a esfera na qual se articula seu conhecimento. Kant achou que era a esfera da consciência. Depois da Virada Linguística, sabemos que é a esfera da linguagem. O problema é que o antirrealismo entende essas esferas de mediação como esferas do sujeito ou da intersubjetividade e com isso se prende, queira ou não, ao modelo anterior; é um esquema transcendental.

O papa é antropocêntrico?

Veja, acusam o papa de antropocêntrico, mas eu digo que o pessoal não entende o que é propriamente antropocentrismo ou se utilizam de outro conceito de antropocentrismo. Para muitos, já se considera antropocêntrico o que distingue o ser humano de outras entidades no mundo. O homem não é a mesma coisa que a ameba e não posso dizer que, porque todas as coisas têm algo em comum, não há uma diversidade fundamental de efetivação daquilo que é comum. Então o homem como um ser que pensa, reage, argumenta, usa conceitos, que decide, delibera, não pode ser igual a uma ameba. Então, o que é específico do antirrealismo enquanto herdeiro da filosofia transcendental é que esses esquemas produzidos pelo homem são determinantes do que seja o real, ou seja, o real é visto a partir do sentido que o ser humano dá a ele. Essa concepção do subjetivo no antirrealismo é que é o problemático. Putnam diz isso com toda clareza: nada existe fora da “nossa” linguagem, dos “nossos” esquemas, então a linguagem é apenas algo “nosso”. Ela é, em primeiro lugar, algo nosso, mas a pergunta é se ela não é uma estrutura do mundo que é anterior a nós. Então, enquanto a linguagem é uma produção humana, japonês é produzido pelos japoneses, e português pelos portugueses, mas a linguagem é uma esfera de expressão e, enquanto tal, ela ultrapassa as diversas produções históricas.

Realismo

Então, eu defendo um realismo não ingênuo. O antirrealismo tem razão em dizer que a tese clássica do realismo é insustentável. É o que Hegel disse de Kant, ou seja, como Kant fala de uma coisa em si que é incognoscível? Se fosse incognoscível, não poderia falar (risos). Nesse sentido as afirmações do antirrealismo têm razão de ser, porque um conhecimento independente de linguagem, de consciência, é impensável: ele se destrói a si mesmo na medida em que se expressa. É o que Apel [Karl-Otto Apel]  sempre chamou de “contradição performativa”: eu me autodestruo no proferimento. O problema é como eu entendo essa mediação.

Então, num primeiro momento o antirrealismo vence o realismo, mas um antirrealismo que se entende numa perspectiva puramente subjetivista/intersubjetivista perde a verdade do realismo, de que existe o mundo, e o mundo fica à mercê do sujeito. E é acerca desse problema que o papa chama atenção quando fala do antropocentrismo. Esses dias eu fui ministrar uma palestra e uma pessoa disse: “O papa é antropocêntrico, porque diz que cultura é algo especificamente humano, mas e a cultura das galinhas?”. Antropocêntrico significa dizer que o homem é o centro do universo, que ele é o princípio de determinação de tudo, ou seja, tudo se determina com referência ao homem, ao “eu penso”. E esse é o problema que o antirrealismo não resolve e acaba caindo numa posição que faz do sujeito a determinação de tudo. Até porque o sujeito é contingente e finito e não pode ser a expressão e a fonte de sentido de tudo. Como posso eu ser a fonte de sentido do mundo? Que pretensão é essa? (risos)

É possível pensar diferente, sem ter de voltar a uma posição objetivista greco-medieval, que não pensava a mediação, embora a intuía. De modo que não podemos dizer que tudo que se fez na modernidade é sem valor, porque se levantou esse problema de que o realismo do estilo pré-Kant não se sustenta mais, embora Kant não tenha razão. Aí é que está a questão.

 

IHU On-Line – A relação entre sujeito e objeto tem de ser objetiva?

Manfredo Araújo de Oliveira – Sim, é objetiva, portanto não é que eu me prenda nas minhas relações subjetivas. O desafio está aí. Puntel  tem, em Estrutura e Ser (Estrutura e ser: um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008), uma consideração muito interessante sobre realismo e antirrealismo. Ele diz que a posição realista clássica é insustentável. E do outro lado tem o problema do antirrealismo, que terminou num pragmatismo fraco, que resolve tudo na linguística.

Aliás, eu acabei de fazer uma recensão de um livro do norueguês A. Eikrem (Síntese, n. 133, p. 315-321) — ele publicou esse livro na Alemanha em inglês —, que se chama Ser na religião. Da pragmática à hermenêutica na direção da metafísica, e é extremamente interessante, embora eu concorde que ele não atinou para o que é o Ser do qual falam Heidegger e Puntel. Hoje, na Noruega, o interesse por parte do pensamento de Puntel se dá entre os teólogos luteranos exatamente por causa da recuperação da dimensão metafísica. Esse livro do norueguês causou um rebuliço nos ambientes luteranos da Noruega, porque a teologia se concentrou na pragmática e na postura pós-moderna, mas como ele diz, se você não chega à dimensão metafísica, tudo fica no ar, porque dimensões pragmáticas, semânticas ou hermenêuticas são subdimensões de uma dimensão maior que é o Ser. Portanto, ele quer mostrar os pressupostos pragmáticos, hermenêuticos e metafísicos da teologia enquanto teoria.

Escrevi um texto sobre o livro dele porque a filosofia da religião no Brasil, quando ela existe, se concentra quase só em considerações da filosofia analítica, ou pragmática, ou hermenêutica, mas nunca metafísica. Quando vi esse teólogo dizendo que sem mediação metafísica não se faz teologia, pensei que isto constitui um bom questionamento para a teologia brasileira também.

 

IHU On-Line – Como vê o uso que Žižek faz da Teologia para elaborar suas teorias?

Manfredo Araújo de Oliveira – Eu não li tudo que ele escreveu, porque ele é um escritor que não se cansa. Mas acho que ele faz uma barafunda enorme. Não quer dizer que ele não tenha intuições importantes, mas não consegui entender seu conceito de emancipação e nem o que ele propõe hoje como ação política etc. Até agora estou em pequenas aproximações porque não consegui descobrir o fio condutor da teoria dele: de um lado está Hegel, de outro está a psicanálise. Então, uma hora eu acho que ele psicanalisa Hegel, outra eu acho que ele hegelianisa a psicanálise e não sei como ele junta tudo isso.

 

IHU On-Line – O que o senhor entende por crise da modernidade? Ela está associada a essas mudanças que foram acontecendo na filosofia?

Manfredo Araújo de Oliveira – Sim, está. Quando se fala em crise da modernidade se fala em crise do paradigma transcendental de pensar, ou seja, a questão da centralidade do ser humano. Hoje essa palavra se alargou e é isso que está presente na Encíclica Laudato Si’ do papa. Quando ele fala em crise da modernidade, se trata de uma determinada concepção de razão na modernidade que os frankfurtianos chamaram de “instrumental”, que é aquela razão que se entende como a possibilitação de uma ação eficaz do homem no mundo para dominar a natureza. Então, a crise da modernidade significa a crise do encurtamento da razão do ponto de vista filosófico, porque se pegou uma dimensão da razão e se disse que a razão é isso e mais nada além disso, de modo que a razão se limitou à ciência e quando ela faz filosofia, ela faz filosofia nos modelos da filosofia transcendental nos seus diferentes matizes. Quando eu escrevi a “Filosofia na crise da modernidade”(Loyola, 3a. ed. 2001), era exatamente nesse sentido dos frankfurtianos, como sendo a razão científica a única possível. Eu também fiquei impressionado com o que eles chamavam de materialismo complexo, que seria algo parecido com o que Edgar Morin  chama de o pensamento complexo.

Hoje, o que se fala de crise da modernidade é a crise da centralidade do sujeito e do que isso significou como uma redução da natureza a puro meio da ação humana e, portanto, a concepção de que a natureza está à disposição da ação humana e que o homem é o possuidor e o senhor da natureza. É essa concepção subjetivista do homem como ser poderoso. O homem participou de uma mentira, como diz o papa, ao dizer que todas as coisas da natureza estão ilimitadamente à disposição do ser humano, não se dando conta de que sem a regeneração das coisas da natureza, tudo se acaba.

Agora, há esse problema: não se pode superar uma unilateralidade com outra unilateralidade. E alguns querem superar isso dizendo o seguinte: o homem e todas as coisas são iguais.

 

IHU On-Line – Mas não são, certo?

Manfredo Araújo de Oliveira – Não são, e o papa chama atenção disso quando fala de biocentrismo, no sentido de dizer que o homem é um ser vivo como outros animais, o que implica ter de se preocupar com todos os seres vivos. Que tenha de se preocupar com todos os seres vivos, é inegável, mas agora, dizer que não haja especificidade, é um problema - eu chamo isso de metafísica abstrata, uma metafísica que não é capaz de pensar as diferenças. Esse é o desafio do pensamento contemporâneo: pensar a unidade fundamental, sim, em todas as coisas, mas há uma diferença num nível profundo que é ontológica.

Quando o papa diz que tudo tem a ver com tudo, tudo está relacionado com tudo, ele não está dizendo simplesmente que é possível haver uma cooperação entre as ciências, mas que há uma visão ontológica que diz que tudo está relacionado com tudo, uma conectividade universal de tudo com tudo. Isso porque tudo tem um mesmo esquema fundamental, pode ser considerado com uma categoria metafísica única e fundamental que pensa todas as coisas e ao mesmo tempo a diversidade imensa de todas as coisas, porque essa realidade se realiza de maneiras diferentes, como estava dizendo antes, nas diversas esferas. O problema que Hegel punha, de pensar a identidade e a diferença, é o problema central da metafísica hoje. De modo que é muito ambígua essa expressão da crise da modernidade, porque você pode cair em outra unilateralidade absurda de dizer que todas as coisas são físicas, por exemplo negando a enorme diferença no real.

 

IHU On-Line – E há uma confusão em relação ao que se entende por razão, também?

Manfredo Araújo de Oliveira – Sim, infelizmente aqui há uma confusão. O que os franceses, a Idade Média e Tomás de Aquino chamavam de razão é o que os alemães chamavam de entendimento, ou seja, o conhecimento científico. O que os gregos chamavam de razão (nous), Kant vai chamar de Vernunft, que é razão literalmente traduzido para o português, mas é o que os medievais chamavam de inteligência. Então, quando os franceses falam de razão, entende-se conhecimento científico, mas os alemães, quando falam de razão, pensam na razão abrangente. Daí a confusão.

Quando se fala em razão, fala-se de uma determinada maneira de a espiritualidade humana se realizar, que é aquilo que hoje chamamos de ciência. Porque razão para os medievais e gregos era o conhecimento de derivação, diferente da intuição. Os gregos diziam que havia o nous que intui os princípios, e tem aquele conhecimento que se deduz a partir dos princípios intuídos. O conhecimento dedutivo hoje se realiza na ciência, que é axiomática-dedutiva. O problema todo está aqui, sempre se tem de apelar para um plano mais fundamental. A tarefa do filósofo é apontar para essa esfera. A razão tem a ver com o logos, tem a ver com teoria e teoria tem níveis, e o último nível é o englobante.

O problema é que aquilo que hoje chamamos de demonstração é o modelo que na filosofia da ciência se chama axiomático-dedutivo, ou seja, pressupõe axiomas e deles tiro conclusões. E para Aristóteles era isso também, mas ele tem outra forma de falar para legitimar coisas, que é legitimar a esfera dos princípios. Ele chamou isso de refutação, ou seja, trata-se de mostrar que o sujeito entra em contradição consigo mesmo. Basta ver que quando alguém diz “não há verdade”, se está dizendo isso, pressupõe-se que pelo menos a frase que ele proferiu é verdadeira. Isso é a contradição performativa que Apel explica como sendo a contradição entre aquilo que estou dizendo e o ato de proferir a sentença, porque no ato eu me entrego. Então, o fato de não poder demonstrar dedutivamente não esgota o problema da legitimação por outros caminhos.

 

IHU On-Line – E como avalia aquelas análises que querem fundamentar toda a realidade na História?

Manfredo Araújo de Oliveira – Isso pode ser tentado sem negar a dimensão metafísica, pois constitui um certo nível de acesso ao real. Há certas coisas que são imutáveis, que aparecem em todas as mudanças, quer dizer, há estruturas universais, apesar da história. As pessoas misturam graus de verdade com relativismo. Não é isso; pode-se conhecer tudo em graus diferenciados de verdade. Ou seja, o conhecimento do real é um processo aberto ao infinito.

 

IHU On-Line – Como está avaliando o pontificado do papa?

Manfredo Araújo de Oliveira – O papa é um barato, porque ele tem atitudes e parece que desceu para a Terra; é um ser humano capaz de viver a dimensão humana e é isso que encanta. Ele desmitificou o papado ao mostrar que é um ser humano como qualquer outro, tem apenas uma missão específica e a missão primeira é humanizar, e isso ele está fazendo. Ele está tocando em questões fundamentais, dialoga com todas as pessoas. É uma “revolução pragmática” no sentido de que ele apresenta uma figura humana do papa. Eu vivi o último ano de João XXIII em Roma e ele era incrível. Lembro que numa audiência ele estava lendo em vários idiomas e quando chegou a hora de ler em inglês, ele disse: “Agora estou frito” (risos). Lembro-me também da história de que ele treinou como deveria tratar com Jacqueline Kennedy enquanto esposa do presidente norte-americano, mas quando ele a viu, gritou simplesmente: “Jacqueline” (risos). Esses gestos de extrema ternura são importantes.

 

IHU On-Line – Qual é o ponto fundamental da Encíclica Laudato Si’?

Manfredo Araújo de Oliveira – Diria que é o quarto capítulo, que trata da ecologia integral, que supera aquela “visão analítica” de que as coisas estão separadas entre si. O papa traz uma visão metafísica sobre a globalidade. Há uma dimensão de contingência, que não se explica por ela mesma, ou seja, trata-se da pergunta de por que existe algo e não nada (Leibniz). Por outro lado, ele repôs, contra todos os dualismos vigentes no nosso mundo, uma visão global sintética, sistemática, de ver as conectividades universais de todas as coisas. Não dá mais para ficar pensando em filosofias que criam dualismos insustentáveis. O papa está diante de um certo anseio que os filósofos norte-americanos também têm, que é superar o gap entre teoria e mundo, linguagem e realidade. Essa é a questão fundamental do pensamento contemporâneo. Mas os filósofos não conseguiram ir adiante.

 

IHU On-Line – Isso significa que tem de ter uma unidade entre ser e pensar? Como o senhor pensa essa identidade?

Manfredo Araújo de Oliveira – Exatamente. A questão é saber como se deve pensar isso. Identidade entre ser e pensar não significa identificação, mas que o pensar é a expressão do Ser e o Ser é expressável, articulável, é em si mesmo inteligível, compreensível. O papa põe-se na linha do que muitos filósofos aspiram hoje. Esse é o ponto que não está sendo visto. Ele deu uma contribuição enorme para pensar os dilemas da COP-21 em Paris,  mas ele está fazendo isso porque abriu a perspectiva que torna isso possível, e é disso que acho que o pessoal não está se dando conta.

Um cientista — que deve ser indiano — falou da ecologia integral como um pensamento “integrado” (não integral). Ele diz que os problemas da natureza são tão graves e complexos, que só um pensamento que seja capaz de integrar os diversos modelos científicos pode dar conta das questões. Aí, nós ainda estamos num nível epistemológico, ou seja, ele não está dizendo que a realidade em última instância é unitária porque tudo tem a ver com tudo, está integrado com tudo. Ele está dizendo apenas que é preciso juntar química, física, matemática, humanidades, tecnicidades. Mas o papa vai muito além disso, apresenta uma visão holística da realidade, que vê a realidade de fato como um todo. Eu quase caí para trás quando li a Encíclica e nem estava esperando isso. O que está embutido na perspectiva ontológica, metafísica, é algo grandioso, porque a filosofia hoje apenas vislumbra superar os dualismos, o dualismo cartesiano, mas não é só isso, temos de superar o dualismo ontológico, porque a realidade foi dividida toda em pedaços e ninguém vê mais relação de uma coisa com outra.

 

IHU On-Line – E para recuperar essa visão totalizante, a filosofia tem de ser sistemática?

Manfredo Araújo de Oliveira – Sim, mas temos de entender sistema de um modo diferente daquele que Spinoza e Hegel fizeram, ou seja, não é pôr um axioma no topo do qual se deriva tudo ou expor a integração de tudo através de contradições. Sistema quer dizer a conectividade, ou seja, pensar o que ética tem a ver com metafísica, o que tem a ver antropologia com ética e filosofia da natureza. Uma vez eu disse para um colega analítico que ele fazia filosofia como se fizesse matemática, ou seja, com problemas segmentados, sem pensar a relação entre eles. Ele, então, respondeu que fazia uma grande coisa porque já tinha saído de uma visão completamente historicista da filosofia. Eu concordo, mas é preciso ir além. As pessoas, às vezes, não entendem e dizem que eu sou um comentador de filósofos, mas não entendem que o que está por trás de comentar um autor é entender de que modo ele pode contribuir para resolver um problema de ordem sistemática.

O filósofo sistemático não é aquele que está interessado somente em ver historicamente o que os outros disseram, mas aquele que pensa conectividades fundamentais em todas as coisas e em última instância descobre uma esfera que liga todas as esferas, a conexão das conexões. É isso que é um filósofo sistemático estritamente, e é isso que eu procuro fazer. Sei que eu sou um extraterrestre, mas isso pouco me importa (risos).

 

IHU On-Line - Quais são as dificuldades de se fazer no Brasil uma discussão filosófica pública, como nos EUA, em que os filósofos fazem referência uns aos trabalhos dos outros? Começou-se a fazer isso no Brasil, minimamente?

Manfredo Araújo de Oliveira – Ainda não começamos isso no Brasil e a primeira grande dificuldade da existência de um debate público. Temos ainda uma cabeça subdesenvolvida; os filósofos brasileiros não se leem a si mesmos. Veja, nos EUA praticamente não existia filosofia, a não ser algumas teorias pragmáticas. Na Europa se dizia que nos EUA não existia filosofia, e hoje os EUA é o lugar no mundo talvez mais importante para a filosofia, tanto que a língua inglesa se tornou obrigatória para quem faz filosofia hoje.

Em Belo Horizonte, num congresso sobre Apel, eu estava caminhando com um dos discípulos dele, que me disse: “Veja que interessante os americanos, eles nos conhecem, mas não nos citam; só citam os antigos, Kant, Hegel, mas eles se conhecem a si mesmos e citam uns aos outros”. No Brasil as pessoas têm medo de citar um colega, porque acham que o seu artigo vai baixar de nível. Então, é impressionante como os filósofos brasileiros não se conhecem e, portanto, não há debate público. Nós escrevemos para quem? Não sei. Sinceramente acho que sou um dos pouquíssimos que lê os filósofos brasileiros e não tenho vergonha de citar e discutir com brasileiros. Recebo uma recensão do meu livro na Espanha e não no Brasil, e acho isso muito estranho. É impressionante como não há debate público no Brasil; é como se tudo que viesse de fora fosse melhor do que o que se tem aqui.

João Carlos Salles, que é reitor da Universidade Federal da Bahia, fez um esforço gigantesco, quando à frente da ANPOF, para estimular a criação de uma literatura filosófica em língua nacional, mas o movimento que existe é contrário a isso, porque muitos filósofos brasileiros acham que têm de falar e publicar em inglês no país.

 

IHU On-Line – Organizar uma literatura brasileira não significa fazer uma filosofia brasileira?

Manfredo Araújo de Oliveira – Claro, temos de fazer filosofia no Brasil, nos EUA, e criar um diálogo, mas não defendo algo como alguns defendem, que estudar filosofia brasileira significa apenas ler filósofos brasileiros ou filósofos latino-americanos, porque isso é um absurdo, uma vez que a filosofia é algo universal. Do mesmo modo, não posso fazer matemática falando de um tipo de matemática que se faz só no Brasil. Agora, ler o que os brasileiros escrevem é fundamental para começar a criar um debate filosófico público no país. ■

Leia mais...
- Filosofia, teologia e autonomia a partir de Rahner. Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira, publicada na revista IHU On-Line nº 446, de 16-06-2014;
- Contingência e liberdade. A aporia fundamental do sistema hegeliano. Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira, publicada na revista IHU On-Line nº 261, de 09-06-2008;
- O Projeto de Ética Mundial de Hans Küng. Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira, publicada nas Notícias do Dia, de 19-08-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;
- O ECOmenismo de Laudato Si’. Revista IHU On-Line nº 469.

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