Edição 475 | 19 Outubro 2015

A politização do combate à pobreza e o precipício da desigualdade

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João Vitor Santos

Para Flavio Comim, o enfrentamento da pobreza não pode ser bandeira política. Assim, pensa-se somente no curto prazo e não se efetiva um combate às desigualdades do País

É preciso ter em perspectiva que a busca da redução das desigualdades tenha no combate à pobreza um de seus vértices. Mas o que fez o Brasil, já que investiu no combate à miséria e não viu o encolhimento do precipício da desigualdade? O economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS Flavio Comim aponta: “o Brasil politizou o combate à pobreza. As políticas públicas do Governo Federal são importantes para a diminuição do sofrimento dos pobres, mas não têm alcance nem profundidade para a redução efetiva da pobreza enquanto não tivermos investimentos pesados na educação brasileira”. Comim entende que o problema não é a transferência de renda, mas a falta de complementaridade de programas que possam se articular com a transferência de renda enquanto política pública de longo prazo. “O problema da nossa política pública de combate à pobreza é sua irregularidade e falta de planejamento”, completa.

Comim é um dos palestrantes do Ciclo de Estudos O Capital no Século XXI – uma discussão sobre a desigualdade no Brasil. No dia 29 de outubro, proferirá a conferência “Políticas públicas de regulação do capital e possibilidades para um Estado social no Brasil”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor sugere como o Brasil pode assumir o papel propositivo no debate sobre a regulação internacional do capital, como uma das formas de reduzir a desigualdade. “Talvez a tributação de grandes fortunas não seja viável se somente o Brasil fizer isso, mas o Brasil pode liderar um esforço na América Latina e participar de esforços internacionais para a tributação de riqueza”, aponta.

Flavio Comim é graduado em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo – USP e pela Universidade de Cambridge, doutorado em Economia pela Universidade de Cambridge e Pós-doutorado pela Universidade de Cambridge e pela Universidade de Harvard. Trabalhou para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (2008-2010). Atualmente é professor adjunto da UFRGS e professor visitante da Universidade de Cambridge. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia da Pobreza. O Ciclo de Estudos O Capital no Século XXI – uma discussão sobre a desigualdade no Brasil é realizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Além da conferência de Comim, estão programadas mais duas palestras até o final do Ciclo, em 11 de novembro.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como entender a desigualdade brasileira num contexto histórico?

Flavio Comim - A desigualdade brasileira não é apenas uma desigualdade de renda, ou de riqueza, ou de níveis educacionais. A desigualdade brasileira é estruturante, com uma persistência intertemporal significativa e multidimensional. Poderíamos voltar à origem de nossos problemas, examinando o tipo de colônia que fomos, mas acredito que esse tipo de contexto histórico poderia explicar, mas não justificar por que continuamos com níveis de desigualdade tão altos na nossa vida econômica, social e pública. A questão chave é: por que não mudamos? Por que continuamos com níveis tão altos de desigualdade? As respostas estão nas estruturas de poder da sociedade brasileira, é isso que precisamos discutir.

 

IHU On-Line - Como pensar em políticas públicas de regulação do capital? Em que medida esse controle contribui para um Estado social no Brasil?

Flavio Comim - Para fazer um omelete são necessários ovos. Não se faz omelete de pão. Do mesmo modo, para um problema global é necessário o desenvolvimento de instrumentos de política pública que tenham alcance global. Não acredito, portanto, na eficácia de políticas nacionais de regulação do capital. No entanto, isso não quer dizer que não se possa ter controles internacionais, principalmente de capital especulativo. Não há, no entanto, relação direta entre regulação do capital e a promoção de um Estado social no Brasil, pois já dispomos de recursos suficientes para a promoção de políticas sociais, se assim o desejarmos.

 

IHU On-Line - De que forma a discussão proposta por Thomas Piketty  pode influenciar o debate acerca da tributação de grandes fortunas no Brasil? E quais as demais contribuições da obra que podem ser, imediatamente, transpostas para a realidade brasileira?

Flavio Comim - O primeiro ponto é reconhecer que temos uma desigualdade que talvez seja muito maior na riqueza do que na renda (que já é muito alta). Ou seja, a teoria de Piketty nos mostra que o problema da desigualdade econômica no Brasil é muito maior do que normalmente pensamos. Talvez a tributação de grandes fortunas não seja viável se somente o Brasil fizer isso, mas o Brasil pode liderar um esforço na América Latina e participar de esforços internacionais para a tributação de riqueza, ou de um conjunto de incentivos para que os milionários e bilionários brasileiros invistam suas riquezas em fundações, hospitais, universidades, etc., como acontece em outros países.

A obra de Piketty traz a economia política de volta à economia. Ao destacar o poder e influência do 1% mais rico do mundo, seu trabalho sugere que podemos ser escravos de uma elite internacional e nacional. Ele critica nossa baixa autocrítica e como nos contentamos com migalhas.

 

IHU On-Line - Como equalizar crescimento econômico e desenvolvimento?

Flavio Comim - Precisamos superar o mito de que o crescimento econômico importa pelo seu tamanho e quantidade e focar na qualidade do crescimento. Mais especificamente, crescimento para quem? Precisamos pensar em como o crescimento reduz pobreza, em maneiras inovadoras de ter crescimento com baixo nível de desigualdade e, principalmente, em pensar crescimento com desenvolvimento tecnológico e capacitação de mão de obra no longo prazo. O crescimento econômico precisa ser inclusivo para promover o desenvolvimento.

 

IHU On-Line - De que forma a geração de renda impacta no desenvolvimento? Em que medida as políticas de transferência de renda podem fomentar o desenvolvimento?

Flavio Comim - Não se pode construir desenvolvimento sem renda. Mas a renda não esgota o que pode ser feito para o desenvolvimento. Nas políticas de transferência de renda condicionada, como o Bolsa Família, o importante é o impacto de longo prazo na redução intergeracional de pobreza. Cabe, no entanto, ver que esses programas de transferência de renda fazem muito pouco para a criação de um ambiente de igualdade de oportunidades, por isso o investimento em uma educação de qualidade se faz tão necessário.

 

IHU On-Line - Conhecemos a pobreza no Brasil? Que pobreza é essa? Em que medida as políticas públicas do Governo Federal atendem a esses pobres?

Flavio Comim - O Brasil politizou o combate à pobreza. As políticas públicas do Governo Federal são importantes para a diminuição do sofrimento dos pobres, mas não têm alcance nem profundidade para a redução efetiva da pobreza enquanto não tivermos investimentos pesados na educação brasileira. O problema não é da transferência de renda por si, mas da falta de complementaridade e articulação da política pública. A politização da pobreza jogou a classe média contra o Bolsa Família, estigmatizando seus beneficiários.

 

IHU On-Line - Em que medida a lógica da financeirização impede o desenvolvimento pleno das pessoas através das políticas públicas? Como compreender que as políticas de transferência de renda tenham relação tão estreita com o sistema financeiro?

Flavio Comim - O problema da nossa política pública de combate à pobreza é sua irregularidade e falta de planejamento. Os recentes cortes em bolsas, salários de professores, financiamento para a educação, etc., promovem um ajuste fiscal curto-prazista que desestabiliza o planejamento das pessoas pobres e investimento na sua educação ou de seus filhos. Outro problema diferente seria a bancarização de várias transferências, que por um lado inclui as pessoas mais pobres no sistema bancário, mas por outro pode forçá-las a comprar produtos financeiros que não necessitam.

 

IHU On-Line - Como avalia o atual cenário brasileiro de arroxo e ajuste fiscal? Qual a sua opinião sobre a necessidade de um equilíbrio fiscal como forma de superar uma crise econômica?

Flavio Comim - Um ajuste fiscal era necessário, mas não esse ajuste fiscal míope, voltado a resultados de curto prazo, preservador de interesses menores da nação e feito de maneira tão brusca e tão gentil com o capital financeiro, deixando desprotegidos milhões de trabalhadores com mudanças em programas sociais, como o Farmácia Popular, o seguro-desemprego, etc. O governo deveria ter preparado um plano de ajuste de médio prazo, evitando cortes na educação principalmente, aumentando os juros, mas nem tanto, fazendo um corte mais agressivo em áreas não sociais como infraestrutura e gastos militares. Estamos fazendo um ajuste que compromete o futuro do país, no modo que é feito.

 

IHU On-Line - Como, hoje, superar um cenário de crise no Brasil, sem perder conquistas, com políticas que contribuem para diminuir a desigualdade?

Flavio Comim - Não há como superar. As conquistas não foram conquistas sustentáveis e logo veremos que o 'rei estava nu' e não tínhamos nos dado conta. As políticas de combate à pobreza monetária foram feitas de modo curto-prazista, sem perspectiva estruturante, baseadas em consumo e valores muito baixos de renda. Vamos ver nos próximos anos um retrocesso, prova da falta de sustentabilidade na nossa política pública.

 

IHU On-Line - Como pensar um projeto de nação a longo prazo, aliando desenvolvimento e redução das desigualdades?

Flavio Comim - Precisamos pensar o desenvolvimento de uma forma humana e inclusiva. Precisamos investir pesadamente em bens públicos, na saúde, na educação, no transporte coletivo, no saneamento, na construção de áreas públicas e infraestrutura, como bibliotecas, telecomunicações, e fazer tudo isso chegar aos mais pobres. Precisamos pensar o desenvolvimento além do crescimento econômico. Mas isso dificilmente vai acontecer se a população brasileira não demandar esses serviços e se nossa política pública não for mais decentralizada. Precisamos reconhecer no Brasil várias nações para o resgate da razão pública e do sentido da coisa pública no desenvolvimento nacional. Isso passa por resgatar valores humanos na formação de nossas crianças e na política pública.■

 

Leia mais...

- O consequente casamento entre a desigualdade e a pobreza. Entrevista com Flávio Comim publicada na revista IHU On-Line, nº 449, de 04-08-2014; 

- Sem miséria, mas com fome. Artigo de Flávio Comin reproduzido nas Notícias do Dia, de 15-05-2014, no sítio do IHU; 

- O IDH e o conto do imperador sem roupa. Artigo de Flávio Comin reproduzido nas Notícias do Dia, de 17-03-2013, no sítio do IHU; 

- Amartya Sen, o ser humano e a alternativa do diferente. Entrevista com Flávio Comin publicada na revista IHU On-Line, nº 379.

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