Edição 473 | 28 Setembro 2015

O legado da escravidão

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Mônica Dias Martins com a colaboração de Bruno Lima Rocha

“Os protestos contra a violência policial nos Estados Unidos, atingindo especialmente homens afro-americanos, refletem a revolta da base da pirâmide social na superpotência contra o racismo estrutural ainda presente mesmo sob o governo Barack Obama. A deterioração dos bairros negros e hispânicos reflete distribuição desigual de riquezas no país mais rico do mundo, fazendo com que o controle social se dê através do pauperismo crescente e violência estatal”, argumenta Mônica Dias Martins.

 

Mônica Dias Martins é doutora e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará - UFC, pedagoga graduada na PUC-RJ, professora da UECE, Coordenadora do Observatório das Nacionalidades e editora da revista Tensões Mundiais.

Eis o artigo.

Em 19 de abril de 2015, Freddie Gray, de 25 anos, faleceu em um hospital de Baltimore, depois de uma semana em coma, resultado de maus tratos quando estava sob custódia de agentes responsáveis por manter a ordem e cumprir a lei. O que teria feito antes, durante ou após a prisão que justificasse sua morte? A resposta é coisa nenhuma, assim como nada fizeram Walter Scott (50 anos, Charleston 04/2015), Tamir Rice (12 anos, Cleveland 11/2014), Michael Brown (18 anos, Ferguson 08/2014) e Eric Garner (43 anos, Nova York 07/2014) ou centenas de vítimas anônimas, entre elas a grávida que testemunhou um espancamento ou o idoso que vendia bilhetes para uma rifa na igreja. Seus crimes? A cor da pele que os identifica, ainda hoje, com seus ancestrais arrancados da África e escravizados nas colônias do Novo Mundo! 

Os protestos raciais em Baltimore e em dezenas de outras cidades reivindicam o reconhecimento dos direitos civis que, nos anos sessenta, levou Martin Luther King a liderar a grande marcha à Washington. Os manifestantes querem aquilo que os Panteras Negras exigiam, na década de setenta: fim da coerção policial e iguais oportunidades. Em outras palavras, lutam por igualdade e liberdade, valores caros à democracia na América que tanto encantou o francês Tocqueville, em 1831. Certamente, a violência endêmica na sociedade estadunidense não atende às expectativas de uma nação com pessoas livres e vivendo em condições de igualdade. 

Comentadores da Fox News e colunistas do New York Post repetem insistentemente a palavra “thugs” (bandidos) e expressões como “Black Guerrilla Family” para se referir aos que participam dos protestos em Baltimore. Esses ataques verbais contra membros de um determinado grupo são uma clara tentativa de influenciar ações e atitudes da opinião pública. Integram a agenda política conservadora que culpa os sindicatos, os programas sociais e a legalização do casamento homoafetivo pela radicalização dos conflitos urbanos. Já o comportamento criminoso das polícias raramente constitui objeto de pronunciamentos ou investigações.

Acompanham a narrativa convencional da mídia o presidente Barack Obama e a prefeita de Baltimore Stephanie Rawlings-Blake, ambos democratas, com formação universitária e “afro-americans”. Parlamentares se revezam nas entrevistas, pedindo que as manifestações sejam pacíficas. No entanto, são incapazes de apresentar uma justificativa plausível para as incontáveis prisões e mortes de cidadãos negros. Tais apelos chocam por partirem de autoridades governamentais a quem caberiam iniciativas concretas para acabar com a vergonhosa discriminação racial. 

Entre os chamados líderes políticos a reação tem sido inadequada e desrespeitosa. Poucos reconhecem que, nas últimas quatro décadas, a elite estadunidense levou milhares de famílias da classe trabalhadora à ruína econômica e diminuiu a proteção aos direitos humanos (consagrada pela ONU na Declaração de São Francisco) da empobrecida população. Pregar a não violência da comunidade em face de um Estado cada vez mais militarizado e agressivo é, no mínimo, uma atitude hipócrita! 

Um caldeirão étnico-cultural que é racializado de propósito

A estrutura societária dos Estados Unidos da América é, de fato, racializada. Poucas cidades são pluriétnicas, ultrapassando a fronteira dos guetos e as relações sociais para além das raízes familiares. Como o ciclo de imigração não é interrompido, vemos a sucessão de levas de novos imigrantes, operando a superpotência como um enorme aspirador de recursos verificado na propriedade de pequenos novos negócios. Em maio de 2013, Barack Obama defendia uma visão ampliada da política migratória dizendo que o país recebia por ano mais de 500 mil novos imigrantes com grande qualificação profissional ou aporte de capitais para operar pequenos empreendimentos. Este constante reposicionamento e a ausência de políticas públicas de redistribuição de renda, iniciada com o progressivo corte de impostos e a inflexão da economia do país para o capital financeiro, fez com que o governo central dos EUA reforçasse o pior do federalismo oligárquico e gerasse tensão permanente nos bairros pouco valorizados. Logo, um pequeno negócio que antes pertencia a um afro-americano, nos anos 80 e 90, pode ter passado para controle de coreanos ou vietnamitas e vinte anos depois para indianos ou paquistaneses. 

O auge desta tensão recente iniciara com o crime policial de Ferguson (Missouri) e culmina com o levante de Baltimore (Maryland). A última onda de levantes começou em 1992, com o espancamento de Rodney King, em Los Angeles, um taxista afro-americano brutalizado por quatro patrulheiros (sendo três caucasianos e um chicano) em maio de 1991 e absolvidos em 29 de abril de 1992. Os incidentes varreram primeiro a costa oeste, cortando o país de costa a costa, e gerando o interessante processo de unidade entre as grandes famílias de gangues negras (Crips e Bloods), além de contar com a participação massiva de comunidades hispano-americanas.

Uma das razões para a vitória de Bill Clinton nas eleições presidenciais daquele ano, cortando o ciclo de presidentes republicanos ao derrotar Bush pai, foi a interrupção das tensões sociais e raciais. Passados mais de vinte anos e a estrutura permanece, sendo agora o gestor da desigualdade e injustiça estrutural um presidente afro-americano, embora egresso de duas instituições da Ivy League. Barack Hussein Obama fez cair por terra o mito da “era pós-racial” sendo o racismo parte da cultura política estadunidense. 

O legado permanente 

A história demonstra que o linchamento e o assassinato de negros por brancos fazem parte da experiência cultural construída ao longo de dois séculos e meio de escravidão, abolida no ano de 1863 em meio a uma guerra civil, e alimentada por incontáveis formas de segregação racial vigentes nos Estados Unidos. Com o recente desenvolvimento do capitalismo, amplia-se a concentração de riqueza e poder em poucas mãos, aprofundando as tensões sociais que, na ótica da classe dominante, só podem ser contidas mediante uso de repressão massiva. Esse é o sentido da sistemática brutalidade contra a população negra, particularmente sua parcela mais jovem. A rebeldia nas ruas de Baltimore revela não apenas o repúdio à morte de Freddie Gray, mas a revolta contra as atuais condições de vida da grande maioria dos trabalhadores. Afinal, o fim da escravidão não foi uma dádiva dos poderosos e a liberdade se conquista e se mantém com lutas. 

 

Expediente

Coordenadora do curso: professora doutora Gabriela Mezzanotti

Editor da coluna: professor doutor Bruno Lima Rocha

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição