Edição 473 | 28 Setembro 2015

A polifonia dos saberes e de agentes na política pública

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João Vitor Santos

Para Renata Bichir, compreender os processos de produção do campo requer olhar transdisciplinar e articulação entre agentes públicos e privados, estatais e não estatais

A constituição de políticas públicas requer conhecimento profundo do campo. E apreender esse campo se torna um desafio na medida em que envolve diversas áreas de conhecimento — desde Ciência Política, Administração Pública, Sociologia, Economia, Direito, Antropologia, etc. Para a professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades e do Centro de Estudos da Metrópole - CEM da Universidade de São Paulo – USP Renata Bichir, isso não pode ser confundido como se várias áreas olhassem para um mesmo objeto. “O ‘estado da arte’ do campo é ainda mais ‘multidisciplinar’ — com contribuições de diversas áreas sem profunda interligação das disciplinas — do que um diálogo interdisciplinar, no sentido da criação de uma macrodisciplina de análise de políticas públicas”, avalia. E sobre implementação? É comum ver política pública como dever do Estado. Renata entende que “compreender políticas públicas implica ir além da análise do ‘Estado em ação’ como ator isolado, uma vez que temos distintos arranjos de produção de políticas, com maior ou menor participação de atores estatais e não estatais nas várias fases da produção das políticas”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Renata parte dessas premissas para pensar as políticas públicas brasileiras no atual contexto. “De um modo geral, há avanços importantes nas últimas décadas, em especial quando consideramos indicadores de pobreza e desigualdade. Por outro lado, não é possível ignorar os desafios colocados pela magnitude e pela persistência das desigualdades em um país heterogêneo e complexo como o Brasil”, avalia. Ainda sobre os desafios do campo no Brasil, analisa as dificuldades impostas por um momento de dificuldades econômicas. “Há riscos importantes de reversão de direitos e retração de políticas públicas em contextos de recessão e ajuste fiscal”, reconhece. Porém, entende que a forma de estancar retrocessos é a mobilização. “Beneficiários e usuários de políticas públicas diversas, bem como burocratas, organizações diversas da sociedade civil e outros atores relevantes podem se constituir como importantes pontos de veto a tentativas de reversão de direitos e políticas”.

Renata Bichir é graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP e mestre em Ciência Política pela mesma instituição, com doutorado em Ciência Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Coordenou o Departamento de Avaliação da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Atualmente é professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Também é pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole - CEM.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais os avanços e limites das políticas públicas brasileiras hoje?

Renata Bichir - De um modo geral, há avanços importantes nas últimas décadas, em especial quando consideramos indicadores de pobreza e desigualdade. A queda da desigualdade no Brasil — explicada muito mais pela melhoria das condições de vida da população mais pobre, com importante persistência da desigualdade quando observamos o topo da distribuição de renda — deve-se a uma combinação de fatores e políticas. Isso com destaque para a estabilização econômica, controle da inflação, melhorias reais no valor do salário mínimo, formalização de vínculos no mercado de trabalho, expansão de benefícios sociais vinculados ao salário mínimo e programas sociais como o Bolsa Família.

Quando consideramos a desigualdade em sua multidimensionalidade — ou seja, desigualdades, no plural, para além da dimensão da renda —, também temos avanços importantes. Por exemplo, redução de desigualdades de gênero e melhorias nas condições de acesso a políticas e serviços públicos. No caso de políticas sociais como saúde e educação, avançamos especialmente em termos de cobertura da atenção básica de saúde e ensino fundamental. Entretanto, há desafios ainda significativos quando abordamos indicadores de qualidade e de satisfação dos usuários. Políticas urbanas e de infraestrutura avançaram tanto em termos de provisão quanto em regulação e legislação específica — Estatuto da Cidade, Planos Diretores —, além de contarem com maior participação da população nas decisões por meio de orçamentos participativos e conselhos diversos. Porém, outras políticas públicas, como saneamento, avançaram em ritmo muito mais lento nas últimas décadas.

Desafios

Por outro lado, não é possível ignorar os desafios colocados pela magnitude e pela persistência das desigualdades em um país heterogêneo e complexo como o Brasil. Há muito a avançar em termos de desigualdades regionais e intramunicipais no acesso a políticas públicas — os serviços não chegam da mesma forma, com a mesma qualidade, em todas as regiões do país, assim como não atingem diversas áreas de metrópoles complexas, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. A agenda de pesquisas do Centro de Estudos da Metrópole  tem avançado no entendimento dessas dinâmicas nas últimas décadas.

 

IHU On-Line - Como compreender política pública na complexidade da horizontalidade e não no reducionismo da verticalidade? E como articular essa compreensão com um projeto de nação e de desenvolvimento para o Brasil?

Renata Bichir - Em primeiro lugar, é necessário entender os sentidos de “horizontalidade” e “verticalidade”. Na análise de políticas públicas, relações horizontais referem-se às interações entre atores em um mesmo nível, remetendo à discussão sobre as relações intersetoriais (entre diferentes setores do governo, ou então entre atores governamentais e não governamentais para provisão de políticas específicas). Essa é uma agenda de pesquisa emergente e cada vez mais importante: entendimento dos arranjos intersetoriais de formulação e implementação de políticas públicas diversas, em particular políticas de combate à pobreza. Essa literatura parte do reconhecimento da multidimensionalidade da pobreza — fenômeno que também não se limita à insuficiência de renda, incluindo dimensões relacionais, sociais, etc. — e da necessidade de uma abordagem integral no seu combate para então tentar entender se e como diferentes áreas de políticas sociais estão sendo articuladas. 

Por sua vez, a questão das relações verticais remete à discussão dos efeitos do nosso tipo de federalismo sobre as políticas públicas. Mais especificamente, remete às relações entre os diferentes níveis de governo — União, Estados e municípios — no processo de produção de políticas públicas e ao debate sobre descentralização e desafios da coordenação federativa. Desde a Constituição de 1988, houve um importante processo de descentralização do governo central para Estados e municípios, que se traduziu, especialmente, em um processo de municipalização da provisão de uma série de serviços básicos. É o caso da atenção básica de saúde e educação fundamental.

Horizontalidade

Naquele contexto histórico, os conceitos de descentralização, democratização e participação eram tratados praticamente como sinônimos. Houve grandes expectativas em relação às possibilidades de transformação social a partir do nível local. De fato, nos anos 1990, importantes inovações em matéria de políticas públicas surgiram a partir de experiências locais — tais como experiências de orçamento participativo, programas de transferência de renda, entre outros — e depois se disseminaram pelo país.

Reduzidas as grandes expectativas iniciais, e considerando a necessidade de regulamentar uma série de direitos previstos na Constituição de 1988, começou-se a questionar os possíveis efeitos deletérios de tamanha descentralização associada a outras dimensões institucionais do nosso país: presidencialismo de coalizão, multipartidarismo, etc. Surgiram então, nos anos 1990, diferentes teses sobre as dificuldades dos processos de reformas de políticas sociais e diferentes formas de adjetivação do nosso tipo de federalismo — predatório, centrífugo, anárquico, dominado por “barões da federação” —, com compartilhamento do temor de ingovernabilidade e dificuldade de coordenação federativa.

Entretanto, como a literatura especializada — particularmente na Ciência Política, por meio dos trabalhos de autoras como Marta Arretche  e Maria Hermínia Tavares de Almeida  — tem reconhecido que em período recente houve muito mais um processo de descentralização da provisão/implementação dos serviços do que descentralização do poder decisório sobre essas políticas. Esta é que permaneceu centralizada no nível federal. Diversos autores têm demonstrado, em diferentes políticas públicas, os mecanismos à disposição do governo federal para garantir a coordenação de ações com Estados e municípios. Por exemplo, no meu doutorado abordo os mecanismos de coordenação federativa desenvolvidos no caso do Bolsa Família.

Centralidade

Essa centralização de poder de agenda, regulação, mecanismos de financiamento e indução de ações ajuda a entender a redução de desigualdades territoriais na provisão de políticas sociais diversas, como saúde, educação, saneamento. Essa centralização justifica-se, por exemplo, diante da grande desigualdade de capacidades — administrativas, financeiras, de recursos humanos — dos municípios na provisão de políticas públicas.

Desse modo, avançamos nas últimas décadas na definição de padrões nacionais mínimos para a provisão de políticas. Padrões estes que são mais ou menos pactuados em instâncias de negociação federativa, com variações importantes por área de política. Isso não significa, de modo algum, que não há espaços para modificações e agendas próprias no nível municipal — mesmo porque já sabemos que a implementação pode modificar as políticas formuladas.

 

IHU On-Line - Como conceber a política pública enquanto campo multidisciplinar e pensar para além dos programas sociais?

Renata Bichir - As políticas públicas são cada vez mais complexas, envolvendo diversidade temática, grande número de atores estatais e não estatais e públicos variados. Especialmente no contexto brasileiro, federativo, multipartidário, heterogêneo e desigual, entender o processo de produção das políticas e suas consequências não é uma tarefa trivial. As análises devem compreender as dinâmicas do Estado, mas ir além, considerando as múltiplas dinâmicas societais e as motivações para os comportamentos, ao longo de processos históricos. Isso implica, para além de perspectivas simplistas que por vezes permeiam o debate público, a combinação de olhares disciplinares distintos e potencialmente complementares, como muito bem colocado no livro organizado por Eduardo Marques  e Carlos Aurélio Pimenta de Faria , A Política Pública como Campo Multidisciplinar .

Compreender problemas complexos como a produção de políticas públicas e avançar em sua avaliação multidimensional requer a combinação — teórica e metodologicamente coerente — de arsenais disponibilizados por disciplinas como Ciência Política, Administração Pública, Sociologia, Economia, História, Direito, Relações Internacionais, Psicologia, Antropologia entre outras. Como os organizadores deste livro alertam, o “estado da arte” do campo é ainda mais “multidisciplinar” — com contribuições de diversas áreas sem profunda interligação das disciplinas — do que um diálogo interdisciplinar, quanto mais “transdisciplinar”, no sentido da criação de uma macrodisciplina de análise de políticas públicas.

Entretanto, avanços importantes têm sido observados nos últimos anos com a multiplicação de cursos de graduação e pós-graduação multidisciplinares no chamado “campo de públicas”. Nestes, os estudos de políticas públicas já nascem multidisciplinares. E, certamente, o avanço das abordagens interdisciplinares abrange não apenas políticas sociais, mas muitas outras políticas públicas, como política econômica, industrial, inovação, infraestrutura, etc.

 

IHU On-Line - Como avalia os programas de transferência de renda no Brasil? Quais as semelhanças e dissonâncias com programas da Argentina e África do Sul, estudados por você? Como pensar para além dos programas?

Renata Bichir - O Brasil conta com programas de transferência de renda sob a responsabilidade de municípios, Estado e governo federal. Mas, cada vez mais, há articulações com o principal programa do gênero, o Programa Bolsa Família, criado em 2003 a partir da unificação de programas federais anteriores e ampliação do escopo e cobertura do programa, que atualmente beneficia quase 14 milhões de famílias. É importante destacar que este é um dos programas mais avaliados e monitorados no país, para além dos diversos processos de fiscalização pela Controladoria Geral da União - CGU, Tribunal de Contas da União - TCU e outros órgãos. O Ministério do Desenvolvimento Social conta com uma secretaria voltada para a avaliação e o monitoramento de todos os seus programas e políticas, incluindo o Bolsa Família, e muitos dados estão publicamente disponíveis para análises complementares.

O Bolsa Família também é amplamente estudado pela academia, não só no Brasil como internacionalmente, sob os mais diversos ângulos. E vai desde impactos na segurança alimentar, economias locais, mortalidade infantil, resultados eleitorais, até desafios da articulação com outras políticas sociais (em particular educação e saúde), passando pelo debate sobre desigualdades de gênero (uma vez que as mulheres são as principais titulares do cartão), questões relativas a teorias de justiça e possibilidades de inclusão produtiva dos beneficiários. Em meus estudos sobre o tema tenho ressaltado a importância de uma análise histórica e institucional sobre a evolução do programa e a ampliação de seus objetivos principais.

O próximo passo

Uma vez que os objetivos de cobertura e focalização foram atingidos, cada vez mais temos uma ampliação do debate para além da dimensão de transferência de renda em direção às possibilidades de articulação com outras políticas e programas. Essa dimensão da intersetorialidade está prevista desde o início no desenho do Bolsa Família, especialmente por conta do acompanhamento das condicionalidades de saúde e educação que foram sendo aprimoradas, mas tem sido reforçada nos últimos anos, sobretudo por meio do processo de implementação do Sistema Único de Assistência Social - SUAS — cujos equipamentos servem de “porta de entrada” para o Bolsa nos municípios — e após a instituição do Plano Brasil Sem Miséria  em 2011.

A partir deste Plano, a articulação intersetorial de inciativas sociais entra com mais força na agenda. Há perspectiva de articulação da transferência de renda, do acesso a serviços e da inclusão produtiva, tanto no meio urbano como no rural. Logicamente, os desafios na implementação desses princípios são imensos, e devem ser acompanhados com atenção, de modo a avaliar a efetividade das ações. Mas, em síntese, pensar para além da transferência de renda está na agenda atual.

Argentina e África do Sul

Em meu estudo comparativo sobre os programas nacionais de transferência de renda no Brasil, na Argentina e na África do Sul — Bolsa Família, Asignación Universal por Hijo e Child Support Grant, respectivamente —, procurei analisar as condições político-institucionais para o surgimento e desenvolvimento desses programas, bem como as articulações destes com outras políticas sociais, visando entender problemas de coordenação e articulação intersetorial nesses três países. Esses programas de transferência de renda guardam similaridades como pilares da proteção social não contributiva em seus respectivos países, dado seu peso orçamentário, sua cobertura e seus potenciais de coordenação e articulação com outras políticas sociais — sendo que o caso brasileiro se destaca por uma agenda mais explícita de articulação intersetorial e desenvolvimento de capacidades, instrumentos e mecanismos para efetivar esse objetivo.

A tentativa de contraposição a “padrões tradicionais de política social” está no cerne da construção institucional desses programas. Eles seguem, em linhas gerais, os principais mecanismos de gestão que foram desenvolvidos, nos países em desenvolvimento, para entregar benefícios monetários, superando fraudes e relações de clientelismo. Nos três casos, o desenho dos programas, sua forma de entrega — via cartão magnético — e a busca de uma relação direta entre o governo e os beneficiários visam superar um passado marcado pela intermediação clientelista na entrega de benefícios, pela patronagem. Entretanto, esse macro-objetivo enfrenta desafios distintos em cada contexto.

 

IHU On-Line - De que forma é possível articular a concepção de política pública mobilizando atores estatais e não estatais, públicos e privados? Qual o papel de cada um?

Renata Bichir - Cada vez mais compreender políticas públicas implica ir além da análise do “Estado em ação” como ator isolado, uma vez que temos distintos arranjos de produção de políticas, com maior ou menor participação de atores estatais e não estatais nas várias fases da produção das políticas, desde a definição das agendas até processos de monitoramento e avaliação. Os atores não estatais — tanto organizações diversas da sociedade civil, sem fins lucrativos, quanto atores privados — podem estar envolvidos na provisão direta dos serviços, na realização de estudos diagnósticos, monitoramento e avaliação, na formação de agendas e atendimento de públicos específicos. Essa interação entre atores estatais e não estatais muitas vezes ocorre, inclusive, em espaços institucionais desenhados para tal, como os conselhos de políticas públicas existentes nos três níveis da federação.

Algumas políticas públicas são completamente baseadas na contratação pública, por meio de processos licitatórios, de empresas privadas, tais como políticas de infraestrutura viária — canalização de córregos, pavimentação de vias, etc. — e mesmo em muitas modalidades de programas habitacionais, como o Minha Casa Minha Vida. Em diversos casos de políticas, temos combinação de provisão estatal e privada de serviços públicos — saúde, educação, cultura, habitação. Na saúde, por exemplo, temos a presença cada vez mais expressiva de organizações sociais na provisão de serviços públicos, bem como a presença de provisão privada articulada ao Sistema único de Saúde - SUS , que pode ser caracterizado como um “sistema híbrido”.

No caso da política de assistência social, a qual venho estudando nos últimos anos, temos um interessante processo de aumento da presença do Estado na provisão direta dos serviços e na regulação das entidades privadas sem fins lucrativos que historicamente dominaram a provisão de serviços assistenciais no Brasil. Em síntese, os arranjos são diversos e complexos, então é difícil estabelecer um padrão geral.

 

IHU On-Line - Programas habitacionais, como Minha Casa Minha Vida, dão acesso à casa própria, mas também ao crédito, e impõem a participação das pessoas no sistema financeiro. Quais os riscos e limites de uma política pública que tem o sistema financeiro como aporte para acesso a direitos sociais?

Renata Bichir - Em primeiro lugar, é preciso considerar que o Minha Casa Minha Vida não é o único — e nem necessariamente o principal — programa de inserção de pessoas no sistema financeiro. Isso ocorre por meio de diversas políticas públicas de acesso a microcrédito e mesmo a partir do Bolsa Família, por exemplo (não é necessário ter conta corrente para acessar o benefício, mas estimulou-se a abertura de contas simplificadas na Caixa Econômica Federal). De modo complementar, é importante considerar que o Brasil apresenta indicadores crescentes de bancarização e acesso ao sistema financeiro, e esses processos não são estimulados somente por políticas públicas, mas também por intensas campanhas privadas de acesso ao sistema financeiro.

O problema não reside, em si, na participação no sistema financeiro, mas como esse processo se dá, em termos de: processos de educação financeira, esclarecimento sobre os parâmetros de endividamento, quando este é o caso; prevenções contra endividamento excessivo das famílias, etc. No caso específico do Bolsa Família, houve um estímulo à abertura de contas simples na Caixa Econômica Federal associado a um processo de avaliação do grau de conhecimento e de práticas de educação financeira por parte dos beneficiários. No caso do Minha Casa Minha Vida, destaca-se o importante subsídio financeiro às famílias da chamada “faixa 1” — com renda mensal de até 1.600 reais —, tradicionalmente excluídas da provisão privada e muitas vezes mantidas fora do radar das políticas públicas de habitação. Uma vez que há um longo prazo para amortização do empréstimo, não há taxas de juros e é bastante baixo o comprometimento da renda das famílias — 5% da renda familiar mensal, no máximo —, pode-se afirmar que se trata de uma política altamente subsidiada que evita alguns dos riscos tradicionalmente apontados.

 

IHU On-Line - Como fugir da lógica de inserção social via consumo? E como equalizar esse modelo em um país em recessão econômica?

Renata Bichir - Em primeiro lugar, cabe questionar se, de fato, assistimos nos últimos anos a um processo de “inclusão via consumo”. Certamente, a melhoria das condições de vida e renda dos mais pobres, bem como o estímulo a diversas fontes de crédito subsidiado, ajudou a aquecer a economia interna e a nos proteger, relativamente, dos efeitos da crise econômica internacional — processo que parece estar se esgotando no momento atual. E, sim, uma parte importante desse processo de inclusão passou ao largo de noções de direitos: direito à proteção social, à participação na redistribuição da riqueza socialmente produzida, à cobrança dos governantes por mais e melhores políticas e serviços, que não são dádivas, são direitos.

Entretanto, ao contrário de muitos autores, sou bastante crítica dessa perspectiva, a qual tende a ressaltar a dimensão do aumento da renda das famílias mais pobres em detrimento de uma análise mais abrangente, que considere também dinâmicas de acesso a mercado de trabalho, políticas e serviços diversos, que ajudam a compreender se houve, de fato, processos de melhoria de condições de vida para além do consumo. A ideia de inserção social via consumo é particularmente simplista quando associada ao Bolsa Família: não só porque o programa não está baseado somente na transferência de renda, mas também na articulação com outras políticas sociais — educação, saúde e, mais recentemente, inclusão produtiva, no caso do Pronatec /Brasil Sem Miséria —, mas principalmente porque, em muitos casos, estamos falando de famílias que, finalmente, tiveram acesso a condições adequadas de alimentação e segurança alimentar, com impactos positivos, inclusive, na redução de indicadores de mortalidade infantil. Então, de qual “consumo” estamos falando mesmo?

Logicamente, investimentos sociais importantes dependem, também, de processos de crescimento econômico, já que é necessário financiar as políticas diversas. Quando há retração econômica, como no momento atual, reduz-se a disponibilidade de recursos para investimentos diversos, com riscos de contingenciamentos, reduções e mesmo interrupções de políticas diversas. Entretanto, não se pode perder de vista que a definição de agendas prioritárias de políticas públicas é sempre uma questão política e conflituosa — nos termos de um dos pais fundadores das análises de políticas públicas, Harold Lasswell , é preciso compreender quem ganha o que, por que, e com quais consequências. Ou seja, os constrangimentos econômicos são uma variável necessária, porém não suficiente, para compreender transformações nas agendas de políticas públicas ao longo do tempo. 

 

IHU On-Line - Num cenário de ajuste fiscal, quais os riscos para implementação, e até manutenção, de políticas públicas com base nos processos de financeirização? E como assegurar, e evitar retrocesso, as políticas diante desse quadro? 

Renata Bichir - Conforme mencionado na resposta anterior, há riscos importantes de reversão de direitos e retração de políticas públicas em contextos de recessão e ajuste fiscal. Como no momento atual, a depender de processos políticos de priorização de políticas. Não se pode desconsiderar, entretanto, que beneficiários e usuários de políticas públicas diversas, bem como burocratas, organizações diversas da sociedade civil e outros atores relevantes podem se constituir como importantes pontos de veto a tentativas de reversão de direitos e políticas.

 

IHU On-Line - Quando e como uma política pública se torna elemento de segregação?

Renata Bichir - Os modos de provisão de serviços e políticas públicas podem ajudar a mitigar ou reforçar mecanismos de segregação. Este também é um conceito polissêmico, o qual remete à ideia de separação/isolamento de grupos sociais específicos. Também é importante definir qual é o grupo social de referência — grupos étnicos, raciais, sociais, de gênero.

No caso brasileiro, temos importantes estudos sobre a segregação residencial, sobre os padrões de distribuição espacial de grupos sociais, sejam estes definidos em termos de renda (segregação entre pobres e ricos), seja em termos de categorias ocupacionais. Destaque para os trabalhos do professor Eduardo Marques. Em termos muito gerais, uma política promove segregação residencial quando estimula a separação de grupos sociais no espaço — caso típico dos grandes conjuntos habitacionais construídos nas periferias metropolitanas nos anos 1970 e 1980, distantes dos centros urbanos, em locais desprovidos de transporte público e outros serviços (tanto em cobertura como em qualidade), distantes das oportunidades de trabalho e de outras amenidades essenciais à vida urbana. Como contraponto, políticas públicas que promovem mistura social de grupos sociais diversos — tanto levando serviços e políticas de qualidade para áreas tradicionalmente desprovidas, como estimulando o convívio e a permanência de distintos grupos sociais em áreas tradicionalmente ocupadas por grupos sociais privilegiados — ajudam a reduzir a segregação. Temos exemplos importantes que vão desde ações afirmativas, cotas nas universidades públicas, até programas de habitação social em áreas centrais.

Entretanto, no entendimento dos processos que contribuem para promover ou reduzir a segregação dos grupos sociais no espaço, devemos incluir não somente a atuação do Estado. Também é preciso levar em conta o papel de diferentes capitais privados associados à construção do espaço urbano.

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Renata Bichir - Para finalizar, gostaria de ressaltar que há muitos estudos de qualidade sendo produzidos no campo de análise de políticas públicas, sob as mais diversas perspectivas teóricas e metodológicas e abarcando diferentes olhares disciplinares. Entretanto, temos que avançar na disseminação e comunicação (em linguagem acessível) desses estudos de modo a melhorar a qualidade do debate público sobre políticas no Brasil, que ainda é muito impressionista e superficial. ■

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