Edição 472 | 14 Setembro 2015

As ressonâncias e desestabilidades da presença de Foucault no Brasil

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Márcia Junges e Leslie Chaves

Para Heliana de Barros Conde Rodrigues, as discussões propostas pelo estudioso abalaram algumas certezas propagadas no país, sobretudo no campo da saúde

Desde 2009, Heliana de Barros Conde Rodrigues desenvolve pesquisas sobre os efeitos e a repercussão dos pensamentos de Michel Foucault entre os brasileiros. A psicóloga faz um resgate histórico e analítico das vindas do estudioso ao Brasil, que coincidiram com um período bastante tenso da trajetória política do país, a ditadura militar. Esse contexto não foi impedimento para a manifestação do pensamento crítico de Foucault, como a expressão “fazer viver e deixar morrer”, caracterizadora do biopoder. Em 1975, o estudioso esteve no Brasil e acabou se posicionando quanto aos acontecimentos políticos daquele momento. O regime ditatorial se acirrava, e entre os ditos “inimigos internos” foi eliminado o jornalista Vladimir Herzog. “Em protesto, Foucault suspendeu o curso que ministrava na Universidade de São Paulo e esteve presente às exéquias do jornalista — ato resistencial que reuniu, na Catedral da Sé, milhares de pessoas, apesar da operação dissuasiva montada pela polícia”, conta a pesquisadora. 

A partir desse episódio, as vindas de Foucault ao Brasil passaram a ser vigiadas. Nas discussões feitas nessas passagens, as conferências sobre as questões de saúde pública estiveram entre as mais impactantes para o Brasil, segundo Heliana de Barros Conde Rodrigues, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Pode-se dizer que O nascimento da Medicina Social foi aquela que produziu maiores perturbações nas até então certezas do movimento sanitário brasileiro: contrariando o que pensavam nossos renovadores no campo da saúde, Foucault ali defende que a medicina moderna sempre foi “social”, sendo o “colóquio individual” médico-paciente apenas um, e não o mais importante, de seus aspectos”, explica. A pesquisadora ainda acrescenta que “medicina e corpo são ditos ‘realidades biopolíticas’, na primeira menção foucaultiana a esse famoso (e controverso) conceito. Tais colocações demandavam que os defensores da ‘medicina social’ reconhecessem que seus próprios discursos, dispositivos e práticas talvez tivessem por solo e/ou por efeito aquilo mesmo que diziam combater: a produção de corpos úteis, dóceis, de força política reduzida e a regulação calculada-calculista da vida das populações”.

Heliana de Barros Conde Rodrigues é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo – USP, com pós-doutorado na área de Sociologia, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Atualmente é professora e procientista da UERJ, atuando nos cursos de graduação em Psicologia, especialização em Psicologia Jurídica e pós-graduação em Psicologia Social. Entre suas publicações destacam-se a organização dos livros Clio-Psyché hoje: fazeres e dizeres psi na história do Brasil (Rio de Janeiro: Biblioteca Virtual do Centro Edelstein, 2012), Psicologia e Direitos Humanos: desafios contemporâneos (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008) e Dicionário Biográfico da Psicologia no Brasil – Pioneiros (Rio de Janeiro/Brasília: Imago/CFP, 2007).

No dia 22-09, às 14 horas, no Auditório Central, a professora apresenta a conferência Aproximações preliminares ao problema da Biopolítica: Michel Foucault no Brasil, evento que integra a programação do  XVII Simpósio Internacional IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são as principais aproximações preliminares ao problema da biopolítica traçadas por Michel Foucault?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - Na verdade, creio que o título proposto ficou cheio de ambiguidades. O que eu pretendia dizer era que falaria, no Colóquio, sobre o que hoje se considera a primeira menção de Foucault  ao conceito (ou ao menos ao termo) “biopolítica” — daí a expressão que usei, “aproximações preliminares”. Tal menção foi feita em 1974, na conferência por ele pronunciada no Rio de Janeiro, mais especificamente no Instituto de Medicina Social da UEG (hoje UERJ), depois publicada em Microfísica do Poder  sob o título “O nascimento da medicina social”. 

Vejo agora que a ambiguidade presente no título talvez tenha a ver, igualmente, com meu próprio percurso. Pois embora a biopolítica seja, dentre os problemas focalizados por Foucault, talvez o mais citado na atualidade, quer na França, no mundo anglo-saxão ou no Brasil — ao menos é o que sugerem algumas recensões recentes —, eu mesma nunca lhe dediquei uma exposição ou artigo, visto que tenho mais dúvidas do que certezas quanto a seu uso. Assim, trata-se de “aproximações preliminares” também para mim...

 

IHU On-Line - Qual é a peculiaridade de sua abordagem quando esteve no Brasil?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - Venho desenvolvendo, desde 2009, pesquisas sobre a presença, os efeitos e as ressonâncias de Michel Foucault em nosso país. O “Foucault-corpo” esteve entre nós nos anos de 1965, 1973, 1974, 1975 e 1976 — sempre durante a ditadura civil-militar, portanto. O intervalo entre a primeira visita (1965), momento em que concluía a redação de As palavras e as coisas , e a segunda (1973), quando já participara das lutas políticas junto aos estudantes na Tunísia, chefiara o Departamento de Filosofia na Universidade Experimental de Vincennes, engajara-se na defesa dos imigrantes, fundara o Grupo de Informações sobre as Prisões - GIP e fora eleito para a cátedra de “História dos Sistemas de Pensamento” no Collège de France, no qual já ministrara três cursos; corresponde a uma das tantas mutações na vida de Foucault, que o tornaram, desejavelmente, sempre “diferente de si”. Certa vez, ao escrever sobre isso, resumi a ocorrência em uma curta frase: “Quando volta, já é outro”. Em 1973, embora o papel da Literatura na ruptura com a ordem do presente não o entusiasmasse como antes, o convite provém do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ. Ao invés de eruditas discussões sobre o estruturalismo e a morte do homem, contudo, suas conferências versaram sobre “A verdade e as formas jurídicas” (uma alusão cifrada à situação política brasileira?).

No que tange à biopolítica, porém, interessa particularmente a visita de 1974, a convite do recém-criado Instituto de Medicina Social - IMS da então Universidade do Estado da Guanabara - UEG, hoje do Rio de Janeiro - UERJ. Foucault pronuncia então seis conferências, três das quais — O nascimento da medicina social, O nascimento do hospital e Crise da medicina ou crise da antimedicina? — foram sem grande demora publicadas em periódicos latino-americanos e circularam, mimeografadas, em traduções para o português, por iniciativa do filósofo Roberto Machado. Este, desde 1973, amigo, companheiro de viagem e estudioso do pensamento foucaultiano, tendo inclusive acompanhado em Paris, em 1973-1974, juntamente com Jurandir Freire Costa , o curso “O poder psiquiátrico” no Collège de France e organizado a publicação, em 1979, da coletânea Microfísica do Poder, composta de artigos, entrevistas, aulas e conferências de Foucault, dentre as quais as duas primeiras dentre as acima mencionadas. 

Pode-se dizer que O nascimento da medicina social foi aquela que produziu maiores perturbações nas até então certezas do movimento sanitário brasileiro: contrariando o que pensavam nossos renovadores no campo da saúde, Foucault ali defende que a medicina moderna sempre foi “social”, sendo o “colóquio individual” médico-paciente apenas um, e não o mais importante, de seus aspectos. Medicina e corpo são ditos “realidades biopolíticas”, na primeira menção foucaultiana a esse famoso (e controverso) conceito. Tais colocações demandavam que os defensores da “medicina social” reconhecessem que seus próprios discursos, dispositivos e práticas talvez tivessem por solo e/ou por efeito aquilo mesmo que diziam combater: a produção de corpos úteis, dóceis, de força política reduzida e a regulação calculada-calculista da vida das populações. Para usar uma expressão que Foucault só virá a adotar em 1976, não estariam nossos renovadores, ao lutar pela implantação de uma Reforma Sanitária cujo caráter era o de uma Medicina Social, programando uma forma de exercício do biopoder, ou seja, uma condução de condutas voltada a “fazer viver e deixar morrer”? Porém à época, para acolher essas postulações de Foucault, há um “dilema” em pauta: como fazê-lo sem abandonar o marxismo, que fornecia as bases político-doutrinárias das práticas de esquerda no campo da saúde?

Foucault retornará ao Brasil em 1975, em visita de grande relevância política: a linha mais dura do regime ditatorial avançava então sobre o Partido Comunista, exibindo, uma vez mais, a face thanatopolítica  dos exercícios do biopoder: “em defesa da sociedade”, ou seja, de certas formas de vida em detrimento de outras, eliminavam-se nos porões os ditos “inimigos internos”, dentre eles o jornalista Vladimir Herzog . Em protesto, Foucault suspendeu o curso que ministrava na Universidade de São Paulo e esteve presente às exéquias do jornalista — ato resistencial que reuniu, na Catedral da Sé, milhares de pessoas, apesar da operação dissuasiva montada pela polícia.

Anteriormente, mencionamos o ano de 1976, ligando-o à expressão “fazer viver e deixar morrer”, caracterizadora do biopoder e presente tanto no último capítulo de História da Sexualidade I — a vontade de saber  quanto na última aula do curso Em defesa da Sociedade. Nesse mesmo ano, Foucault retorna ao Brasil. No entanto, julgando-se vigiado pelas forças de segurança do governo brasileiro desde os protestos pelo assassinato de Herzog — nossa pesquisa confirmou, através de documentos do Serviço Nacional de Informações - SNI , que essa suspeita não era fantasiosa —, ele evita o Sul-Sudeste e concentra suas atividades, patrocinadas pela Aliança Francesa, em Salvador, Recife e Belém. Na primeira dessas cidades, pronuncia a conferência “As malhas do poder”, na Universidade Federal da Bahia, campus de São Lázaro. Ali, uma vez mais, o problema da biopolítica estará em pauta, notadamente através dos contrapontos entre a analítica do poder foucaultiana e as concepções psicanalíticas e/ou marxistas (ou mesmo freudo-marxistas). 

Quanto a isso, vale dizer que a grande imprensa do Rio e de São Paulo ignorou solenemente a presença de Foucault em 1976. Mesmo a Folha de São Paulo, que a noticiou, o fez em termos de suspeição: “o que estaria ele fazendo no Brasil?”. Por outro lado, a imprensa nanica ou alternativa acompanhou o filósofo. Primeiramente Opinião, em um exemplar que inclui a reportagem “Interlocutores ou inimigos?”, um artigo sobre o vindouro História da sexualidade 1 – a vontade de saber e a tradução de um texto foucaultiano recente. No caso da reportagem, ressaltam-se os desencontros com o “marxismo acadêmico”, bem como a liberdade com que Foucault utilizava conceitos freudo-lacanianos, em um momento em que nossa intelectualidade parecia obrigada a uma eterna exegese dos termos psicanalíticos em alemão. 

Ainda através dos nanicos, destaca-se a vertente anarquista dos mesmos: o alternativo baiano Barbárie, em duas edições tardias (publicadas em 1981 e 1982), garantirá a preservação da conferência “As malhas do poder”. À época o texto teve circulação restrita — era pequena a tiragem do periódico —, mas continuou a ser lido em sucessivas reproduções xerográficas pelos estudantes baianos, tornando-se um texto cult para muitos deles nas gerações subsequentes e garantindo a presença da conferência nos Dits et Écrits, em tradução (agora para o francês!).

Voltando à primeira pergunta sobre as “aproximações preliminares”, pretendo, na conferência do Colóquio, correlacionar/comparar as conferências de 1974 no IMS-UEG com a de 1976 em Salvador no que tange ao problema da Biopolítica, assim como abordar as circunstâncias em que ocorreram as visitas de Foucault ao Brasil como eventuais analisadores de nossos então exercícios biopolíticos (com sua necessária contraface thanatopolítica e/ou necropolítica, para usar termos hoje em voga).  

Para concluir este tema, lembro ainda que as passagens do filósofo por Recife e Belém foram também intensamente vigiadas. No primeiro caso, talvez “autovigiadas” pelas próprias pessoas interessadas: antes da chegada de Foucault, muitos compromissos tinham sido agendados com profissionais e acadêmicos da cidade; entretanto, às vésperas dos encontros previstos, alguém sempre telefonava para desmarcá-los, num claro indicativo do temor que as pessoas experimentavam em se verem a ele associadas. No caso de Belém, por sua vez, além do desaparecimento da gravação das conferências, ocasionalmente roubada do carro de uma participante, deve-se frisar o risco de desaparecimentos outros: conforme relata o Professor Benedito Nunes, que organizara os encontros na Universidade Federal do Pará, o diretor da Faculdade de Filosofia se dirigiu a ele, após a partida de Foucault, para, a mando do SNI, pedir-lhe a relação dos frequentadores. Não foi atendido — ação de recusa que gosto de denominar “a coragem do silêncio”. 

 

IHU On-Line - Que legado teórico fundamental esse autor deixa em sua incursão por nosso país?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - O termo “legado”, a meu ver, não combina muito com Foucault (embora tenhamos uma bela coletânea, oriunda de um colóquio brasileiro, justamente com o título “o legado de Foucault”). Ele costumava dizer — e disse mais uma vez no Brasil, em entrevista a um outro “nanico” baiano chamado Invasão, que por sinal teve uma única edição —, que não tinha teoria, pensamento ou obra, mas “obsessões”, ou seja, coisas que o perturbavam, atormentavam, inquietavam. Nessa mesma entrevista, por sinal, Foucault declarou, acerca do marxismo — perguntas sobre o marxismo eram inevitáveis então, fosse qual fosse a posição política do periódico —, que dele se poderiam fazer dois “usos”: um uso recodificador, produtor de uma representação filosófica sintética e totalizante da história; e um uso tático e estratégico de um certo número de conceitos para analisar uma situação determinada, um certo tempo histórico. Para Foucault, no primeiro caso, teríamos o tão criticado por ele marxismo “acadêmico” ou “universitário”, com todo o efeito inibidor que carregam as grandes teorias, as teorias globais que reivindicam “a” verdade e “a” cientificidade. Já no segundo caso, teríamos talvez, e desejavelmente, a teoria como “caixa de ferramentas”, conforme a expressão famosa oriunda de uma conversa entre Foucault e Deleuze. 

Julgo que o que Foucault disse sobre os usos do marxismo poderia ser transposto para os usos de Foucault. Entretanto, apesar dessas advertências, nunca se está imune a que um pensamento se veja transformado seja em panteão para poucos frequentadores ilustres, seja em conjunto de clichês razoavelmente inócuos — o eventual destino da expressão “caixa de ferramentas”, que acabo de citar, é um bom exemplo do destino quiçá funesto de noções de início muito potentes. Nesse sentido, quanto menos “foucaultiano” for o Foucault que utilizamos, melhor, e creio que é justamente desse uso heterotópico, inquietante, ligado menos a doutrinas que a obsessões, que, paradoxalmente, têm medo aqueles que recusam a Foucault uma “cátedra”, conforme recentemente ocorrido na PUC-SP — justamente o espaço acadêmico em que Foucault talvez goze de maior prestígio no Brasil. Eis o problema dos “legados”, o que me leva a privilegiar os “usos” e a dizer, muito brevemente, que certos usos de Foucault facultam que percebamos que somos muito mais livres do que pensamos ser, e que possamos eventualmente agir, cotidianamente, em consonância com essa liberdade.    

 

IHU On-Line - Qual é a atualidade do conceito de biopolítica que ele aborda ao longo de sua obra?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - A atualidade é total, o que pode ser uma rima, mas nunca uma solução. Curiosamente, um conceito como o de biopolítica, que podemos dizer “magro” em termos de presença em textos e falas de Foucault — quiçá limitado ao período 1976 a 1979, se deixarmos de lado as já mencionadas conferências no Brasil —, tornou-se um enorme sucesso, hoje, nas ciências sociais. No mundo anglo-saxão, por exemplo, em torno da biopolítica e/ou da “governamentalidade”, seu complemento invariável, organizou-se um campo de estudos muito valorizado, os “governamental studies”, apto a incorporar todos aqueles âmbitos em que processos vitais estão articulados a práticas de governo de si e/ou de governo dos outros, públicos ou privados, estatais ou não, ligados à vida nua (processos biológicos estudados em laboratório, como as sequências de código genético e as técnicas imunológicas, por exemplo), ou à vida socializada (políticas de proteção social e securitárias, políticas demográficas ligadas à imigração, ao asilo, à acolhida de refugiados, ações ligadas aos direitos humanos, etc.).

Em meio a essa proliferação, diviso uma certeza e muitas dúvidas. A certeza (momentânea, como todas) remete ao fato de que se pode compreender facilmente o sucesso da biopolítica nas ciências sociais, já que a primeira é condição de existência das últimas, como tão bem expôs Foucault no curso Segurança, território, população (1978). Ali, retomando a polêmica em torno do homem de As palavras e as coisas, as ciências ditas “humanas” (ou sociais, não importa tanto) são remetidas à regulação das populações, ou seja, a modos privilegiados de as “fazer viver”, a ponto de se as poder “deixar morrer” caso se afastem demais de certas médias, parâmetros, limiares. Creio que não é difícil compreender isso com uma simples olhadela para as discussões hegemônicas atuais dos cientistas sociais e políticos, no Brasil, sobre a polícia, o tráfico de drogas, os “crackudos”, a violência, as manifestações de protesto, as punições, a maioridade penal, a questão dos imigrantes, etc. Há exceções, é claro, mas a “razão de Estado” e, eventualmente pior que isso, a “razão de Estado de Polícia” está de tal modo pressuposta como algo indiscutível nesses debates, que não se duvida muito da análise foucaultiana sobre a relação estatística-polícia-população-ciências humanas ou sociais.

Já as dúvidas são muitas, e as formulo na forma de perguntas. O interesse intenso pela biopolítica provém predominantemente da crítica à regulação contemporânea dos modos de viver, ou do fascínio um tanto acrítico pela contraface genocida do biopoder? Há efetivamente um contraponto atual entre biopoder e biopotência das multidões, como defendem autores como Agamben, Esposito, Negri e Hardt, por mais que diferentemente de Foucault e com as diferenças que marcam suas posições respectivas? O interesse das ciências sociais pela biopolítica visa a atiçar resistências e contracondutas no que remete aos poderes sobre a vida ou, ao contrário, a dar legitimidade a suas próprias análises sapientes, restringindo o campo dos possíveis a um espaço previamente regulado, obediente e ordeiro? Soberania, disciplina e biopolítica correspondem a etapas temporais sequenciais do exercício do poder ou, como prefere Foucault em Segurança, território, população, apenas a dominâncias, o que implica considerá-las todas a cada situação em análise? As críticas foucaultianas aos exercícios do poder sobre a vida, destacando-se, por exemplo, a formulação do Plano Beveridge (durante a Segunda Guerra Mundial!) e os Estados-Providência, permitem, como muitos defendem, ver nele um convertido ao par liberalismo-neoliberalismo como modos de governar? Ou Foucault somente tem interesse efetivo na máxima liberal-neoliberal “sempre se governa demais”, já que indaga repetidamente, nos cursos de 1978-1979, se existe ou não um “modo socialista de governar”? São questões, todas, atuais, e debatê-las, mesmo que sem atingir certezas, constitui, a meu ver, um dos objetivos do Colóquio da Unisinos.     

 

IHU On-Line - Quais são as principais expressões da captura biopolítica em nosso tempo?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - Há muitas capturas, mas há também — e disso sabemos menos e falamos menos — inúmeras resistências e contracondutas. Em um artigo muito citado, “O sujeito e o poder”, escrito no início dos anos de 1980 especialmente para o livro dos norte-americanos Dreyfus e Rabinow (Além do Estruturalismo e da Hermenêutica. São Paulo: Forense Universitária, 2012), Foucault propõe que estudemos os exercícios do poder justamente a partir dos movimentos de resistência. Naquele momento, fala de “lutas transversais”; melhor dizendo, daquelas lutas que implicam uma recusa ao tipo de individualidade (ou de individualização) que nos é proposta há alguns séculos, e que propõem a invenção de modos de vida sem modelos predeterminados ou predefinidos. Essas lutas são críticas do poder: não para eliminá-lo em definitivo — o poder não é uma coisa ou substância que possa ser descartada, o poder é um exercício, são ações sobre ações dos demais ou sobre as próprias ações —, mas para recusá-lo em seu exercício específico, exercício por estas pessoas, segundo esses princípios, a esses custos, etc.

Sendo assim, creio que nos resta insistir em afirmar a agonística inevitavelmente presente entre certas contracondutas que inventam liberdades, mesmo que dispersas e parciais, e certas conduções biopolíticas de condutas, ou seja: a gratuidade de certos gestos (face aos empreendedorismos de si), a escultura artesanal de formas de amizade (face à capitalização rentável das relações), o caminhar preguiçoso, atento à estética e desatento à utilidade (face à conversão do tempo da vida em tempo de trabalho), a invenção de modos generosos de viver (face às solidariedades obrigatórias de razões humanitárias instituídas), as práticas contrassexuais, esquisitas, queer (face aos sexismos, generismos, identidades cristalizadoras e heteronormativas de todo tipo), as ações anárquicas que nos reúnem, a todos, como um “nós”, os governados (face a governantes e hierarquias de todas as formas, tipos, justificativas e regimes), a defesa, no pensamento, na ação e nas práticas de si, da univocidade do ser (face ao “deixar morrer” contemporâneo, por mais que este tente se legitimar em nome da vida de alguns, que seriam a verdadeira população, ou os melhores, contrapostos ao povo, à plebe, à canalha, bem como à natureza e às demais espécies que não a humana). 

 

IHU On-Line - Quais são as novas formas ou expressões de resistência e liberdade que surgem a partir da desinstitucionalização psiquiátrica?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - Aqui nos voltamos para um problema mais específico e talvez a pergunta se deva ao fato de eu ser psicóloga, feliz ou infelizmente, de resto... Em primeiro lugar cumpre dizer, voltando a minhas investigações sobre Foucault no Brasil, que é muito comum em nosso país que, quando se fala de psiquiatria, assistência em saúde mental etc., o nome de Foucault (e sua presença-corpo entre nós) seja associada à de Franco Basaglia , que nos visitou em 1978 e 1979, pouco antes de falecer, o que ocorreu em 1980. Em Belo Horizonte, principalmente, onde Foucault esteve em 1973, em sequência à estada no Rio de Janeiro, a dupla Foucault-Basaglia tornou-se signo de desinstitucionalização psiquiátrica, como pude perceber a partir de algumas entrevistas e da exploração das ações de Foucault à época, quando pronunciou conferências não apenas na Universidade Federal de Minas Gerais (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH), como em dois hospitais psiquiátricos mineiros (Hospital André Luís e Casa de Saúde Santa Clara).

Essa associação é interessante para responder a sua pergunta, pois, como diz Pierangelo Di Vittorio, um filósofo italiano que frequentou Trieste por muito tempo, ao falar de Foucault e Basaglia colocamos em cena “uma estranha semelhança” mediante o encontro entre a genealogia e os movimentos de base, respectivamente associados a cada um deles. Nas palavras de Di Vittorio, Basaglia e Foucault são “intelectuais que não se bastam”: os movimentos de desinstitucionalização demandam a análise genealógica como forma radical de historicização, ao passo que esta última ganha sua verdade, presente ou futura, nesses movimentos desinstitucionalizantes. Hoje, porém, como também pontua Di Vittorio, os intelectuais se tornaram “inteiros”, e é disso que sofrem. Talvez sua dimensão única seja, segundo a expressão usada por Edson Passetti , a de “intelectuais moduladores” — portadores de novos direitos, propositivos de reformas cosmético-midiáticas que têm por única meta “melhorar o possível”.

É claro que há coisas ainda mais graves: a que mais me assustou nos últimos tempos foi saber, ao participar da banca de uma defesa de tese, que em uma oficina de costura de um Centro de Atenção Psicossocial - CAPS são fabricadas, pelos usuários, faixas de contenção a serem usadas em outros usuários que eventualmente entrem no que se chama “crise”. 

 

IHU On-Line - No Brasil, qual é a origem dessa desinstitucionalização e qual é seu nexo teórico com Foucault?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - Creio que já esbocei a resposta no item anterior: embora a desinstitucionalização deva muito a Foucault teoricamente, principalmente à sua tese História da loucura, os que a efetivaram no Brasil tampouco se “bastavam”, sendo ao mesmo tempo estudiosos e práticos. Para acrescentar algo, porém, retorno a Foucault. Em 1984, numa entrevista (“Polêmica, política e problematizações”) concedida a Paul Rabinow  justamente quando a noção de consenso, nas formulações de Habermas  e Arendt , recebia especial destaque — recordemos os “intelectuais moduladores”, segundo Passetti —, Foucault discorreu longamente sobre o problema de haver, ou não, entre eles, Laing , Cooper  e Basaglia, alguma comunidade ou consenso apriorístico. Sua resposta é negativa: não haveria qualquer “nós” prévio e o problema colocado, tanto para eles quanto para os que os haviam frequentado ou lido, fora o de saber se seria possível constituir esse “nós” a partir do trabalho realizado — um nós sempre futuro, em suma, resultado importantíssimo, conquanto inevitavelmente provisório, de questões colocadas de maneira nova. Lembro que Foucault admirava muito o poeta René Char , para quem “aquilo que vem ao mundo para nada perturbar não merece respeito nem paciência” — frase a ser sempre lembrada se julgamos ter, por equipamento ético-teórico, a desinstitucionalização.

 

IHU On-Line - Em que medida o conceito de biopolítica pode nos ajudar a entender a relação entre a captura das subjetividades e a “produção” de doenças mentais?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - Respondo de forma bem sintética: tomando a biopolítica apenas no sentido de regulação das populações, ela incita, no que tange à sua face subjetivante, a nos relacionarmos com nossos pensamentos, sentimentos e ações a partir de uma valoração fundada na axiomática do capital — vale lembrar que o saber relacionado aos dispositivos de segurança, correspondentes à biopolítica das populações, é a Economia Política. Nesse sentido, se nos sujeitamos sem crítica a esse exercício de poder sobre a vida, qualquer experiência menos capitalizada/capitalizável será vivida como fracasso ou mal-estar, estando assim disponível para a “captura”, por assim dizer. Muitos anos atrás, Suely Rolnik  caracterizou a síndrome capitalística fundamental como “síndrome de carência-captura” e, a despeito das modulações desse regime de governamento, acho que a categoria mantém sua validade: devemos nos viver como sempre carentes, como invariavelmente “em falta” e, para tanto, os produtos-valores a consumir, inclusive na forma de subjetivação, devem ser permanentemente atualizados — o que é “capital humano” hoje não necessariamente o será amanhã e o preço do empreendedorismo de si, por exemplo, é o eterno risco, a eterna angústia.

 

IHU On-Line - Nesse sentido, pode-se detectar um nexo objetivo entre o neoliberalismo e o surgimento de patologias como a esquizofrenia e a depressão, por exemplo?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - A pergunta já está mais ou menos respondida, a meu ver, porém li recentemente (e gostei da formulação) que as atuais expressões de mal-estar, que remetem com frequência a expressões em linguagem neuroquímica, seriam a contraparte subjetivante — a da relação a si — da expansão tanto das neurociências como da indústria de medicamentos psiquiátricos. Hoje não se fala tanto de esquizofrenia ou de depressão, mas de “transtornos” de todo tipo, conforme listados nos DSMs , para cujo diagnóstico se pode apelar, inclusive, para o uso prévio da medicação: se ela funcionar, é esse o seu distúrbio!

O neoliberalismo atual, nesse sentido, não “causa” esquizofrenia, depressão ou transtornos vários em função de algum fator determinante de dissociações ou de perdas, por exemplo: ele forja dispositivos que têm por efeito objetivações e subjetivações codificáveis-codificadas como patologias mentais, no caso predominantemente descritas e pensadas como neuroquímicas. Cumpre acrescentar que as subjetivações não constituem simples interiorização das objetivações: elas implicam modos de cuidado, modos de relação a si e aos demais, dos quais o neoliberalismo, como modo de governar, tenta igualmente ser o gestor — sem nunca o conseguir totalmente, pois se inventam modos resistenciais em permanência, e eles nos interessam sobremaneira.     

 

IHU On-Line - Qual é o espaço para o exercício da autonomia nesse contexto biopolítico de classificação de sujeitos e condutas?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - Leio a pergunta e penso em meus alunos da Universidade: eles costumam dizer que o curso de Psicologia pouco lhes ensina que sirva para lidar com os problemas que enfrentam, digamos, nas ações públicas de saúde, educação, assistência, etc. Lembro-me em seguida de uma aula do curso Hermenêutica do Sujeito, em que Foucault traz à cena algumas reflexões de estoicos  e epicuristas  quanto aos saberes. Em linhas gerais, eles distinguem os saberes inúteis ou ornamentais daqueles que podem funcionar como um “equipamento” para a vida, para enfrentar as provas da vida, para forjar uma arte de viver. Foucault insiste, nesse momento, que a distinção não corresponde, de forma alguma, àquela que diferencia o saber sobre o mundo do saber sobre o sujeito — como se propôs modernamente, por exemplo, falando de ciências explicativas (mundo) versus compreensivas (sujeito), ou em ciências nomotéticas (mundo) versus idiográficas (sujeito). 

Para estoicos e epicuristas, o que qualifica um saber, seja ele relativo ao mundo ou ao sujeito, é que possa ser poiético , ou melhor, que possa engendrar um “agir como se deve”. Suponho que essas reflexões conduzam a uma boa maneira de desenvolver a questão proposta e que iluminem, inclusive, a afirmação foucaultiana de que o cuidado de si é a forma primordial de resistência ao poder político: por cuidado de si, vale ressaltar, não se entende saber sobre o sujeito, mas saber poiético, aquele que equipa para as provas do viver (inclusive, mas de forma decerto singular, no contexto biopolítico...).

 

IHU On-Line - Por outro lado, como podemos compreender a desinstitucionalização psiquiátrica no contexto da área de saúde mental brasileira?

Heliana de Barros Conde Rodrigues - A desinstitucionalização não vai nada bem, infelizmente. Mas há que defendê-la, sem tornar-se, por isso, acrítico quanto a suas eventuais reinstitucionalizações, hoje tão frequentes.■

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