Edição 472 | 14 Setembro 2015

O exercício da liberdade como cuidado de si

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Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução Karen Monique Souza

Os pesquisadores Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez analisam a forma pela qual o cuidado de si representa uma relação intrínseca com o outro

Não há cuidado de si sem reconhecimento ao outro, isso porque, logicamente, reconhecer a si próprio implica perceber o outro. Assim como liberdade não implica a possibilidade de fazer o que se quer pessoalmente, tampouco submeter-se a um sistema externo de estímulos. “A liberdade implica criar nossas próprias leis, ou seja, criar junto com outros nossas leis. Se isso não é possível nas democracias representativas, pelo menos pode ser uma possibilidade no âmbito das relações singulares”, sustentam os professores Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Neste sentido, consideramos que as democracias vigentes em nossos países e no mundo são o contrário à liberdade. Precisamente por isso é importante retomar e refletir sobre o ‘dizer veraz’, a verdade e a liberdade que coloca Foucault”, complementam.

Ao refletir sobre a liberdade desde o ponto de vista apresentado pelos professores, é preciso considerá-la não como um ponto de chegada, mas como um processo micropolítico de resistência. “Particularmente nós, os latino-americanos, sabemos o que isso significa, pois ajustar-nos a normas e exigências estranhas aos nossos costumes nem sempre resulta em um bom caminho”, propõem. “Pensar em outro mundo não é negar este mundo, não é acreditar no paraíso ou inferno, pensar em ‘um mundo outro’ é aceitar que o paraíso e o inferno estão aqui mesmo. Como diria Ítalo Calvino em sua novela Cidades invisíveis (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), o inferno está aqui nesta terra e o que fazemos é construir e alongar, até o limite, espaços que nos permitam viver de outra maneira”, avaliam. 

Marco Antonio Jiménez García é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Autônoma Metropolitana Xochimilco - UAM-X, professor em Ciências Humanas e Sociais na gradução e pós-graduação da Universidade Autônoma do México – UNAM e da Universidade Autônoma da Cidade do México – UACM. Integra a Academia de Teoria e Filosofia da Educação, é membro da Associação Filosófica do México e do Conselho Mexicano de Pesquisa Educacional e Investigação Rede Foucault.

Ana María Valle Vázquez é doutora em Educação pela Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM. Atualmente é professora e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Ensino em Ciências Humanas de Morelos e da UNAM. Integra a Academia de Teoria e Filosofia da Educação, a Associação Americana de Filosofia da Educação e a Rede Internacional de filósofos da Educação.

No dia 24-09, às 9 horas, no Anfiteatro Pe. Werner, o professor Marco Antonio Jiménez García apresenta a conferência Educação e cuidado de si, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacional IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são as relações fundamentais que podem ser estabelecidas entre a educação e o cuidado de si?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Existem várias atividades nas relações humanas que se caracterizam pelo cuidado de si, por exemplo, o que na atualidade chamamos esporte, o cuidado dos doentes e o ensino. Três atividades que se caracterizam por um exercício contínuo, em busca da melhoria das condições do corpo, da saúde e do conhecimento. O cuidado de si mesmo sempre implica no cuidado com o outro, particularmente na educação, não poderia haver cuidado de si sem a atenção ao outro. Educar é tanto o cuidado de si, como o cuidado do outro.

Se relacionarmos a educação com a pedagogia, que não são iguais, poderemos dizer que as ciências, tanto as chamadas exatas como as denominadas do espírito (entre as quais se encontra a pedagogia) estão prescritas em um pensamento cartesiano, ou seja, o sujeito e a subjetividade se fundamentam na autoconsciência de si e com relação à ideia de verdade como conhecimento de si mesmo. Pareceria ser que o preceito délfico “conhece-te a ti mesmo” nos instruiu, mas não nos educou nessa tarefa. De alguma maneira, Platão  não faz senão afirmar, a seu modo, o imperativo de que “a verdade” está nas ideias e de que todo conhecimento não é nada mais que a contemplação da verdade absoluta. No entanto, este modo de ver o preceito gnothi seauton se transforma com a luz lançada pelo trabalho que Foucault  realiza com respeito ao conceito de epiméleia heautou (cuidado de si).

Sobre o dito anteriormente, as relações que podemos estabelecer entre o cuidado de si e a educação são: 1) todo o cuidado de si é um cuidado com o outro; 2) o cuidado de si não implica puramente autoconsciência, mas também a realização de certas práticas com outros; 3) Na educação, a relação com o outro se refere a singularidades e não em um sentido universal absoluto; 4) são práticas constantes que vão desde o pensamento até o exercício corporal; 5) a relação cuidado de si e educação de modo algum implica relativismo ou universalismo, e sim uma pragmática do sujeito na história; 6) o cuidado de si e a educação supõem a parrhesía (dizer a verdade), é uma tensão constante em busca da verdade, e não as autocomplacentes fórmulas da verdade universal, nem do relativismo do verossímil.

 

IHU On-Line - Como podemos compreender adequadamente o conceito de cuidado de si a partir do pensamento foucaultiano?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - A noção de cuidado de si em Foucault diz respeito a “dizer a verdade”, aspecto que nos vincula com a interpretação ética, que desde Nietzsche  não tem a ver com o bem ou o mal, no seu sentido abstrato ou metafísico, mas com práticas concretas do que é bom e do que é mal. Assim, cuidar de si, de nenhuma maneira, é uma noção que deve ser entendida como um bem em si mesmo, e sim como uma possibilidade de experiência com os outros. O valor, o resultado, os benefícios e os prejuízos dessas experiências, produto do resultado de si, correspondem a singularidades e a conjunturas, e não são resultado de causalidades e muito menos se convertem em causas de outras coisas. A noção de cuidado de si mesmo em Foucault nos permite reconhecer uma circunstância diferente sobre o controle de outros sobre nós mesmos e, ao mesmo tempo, nos sugere o controle de si. Tal questão nos introduz ao terreno da biopolítica.

 

IHU On-Line - Em que medida Foucault dá prosseguimento ao trabalho de Pierre Hadot  com sua pesquisa arqueo-genealógica sobre a prática ética do cuidado de si (epimeléia heatoû) das sociedades antigas?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Honestamente não conheço Hadot, sei da influência que teve em Foucault, sobretudo, com respeito às práticas do cuidado de si, ao compromisso com a transformação da própria vida, sua crítica aos filósofos como profissionais. Em particular, a observação que faz Hadot quando apareceu o terceiro volume de História da sexualidade (Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985), com respeito à má tradução do título do livro para La Inquietud de si, neste sentido não é o mesmo inquietar-se que cuidar-se. Sem dúvida, o primeiro termo tem conotação profundamente psicológica, questão que Foucault não desdenhava, mas a ênfase dos últimos trabalhos de Foucault, em consonância com Hadot, tem relação com o cuidado de si como práticas de cuidado aos demais. Até onde sei, a influência de Hadot em Foucault foi fundamental para os seus últimos trabalhos.

 

IHU On-Line - Qual é a dimensão da liberdade ante a ética do cuidado de si?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - A ética do cuidado de si implica uma melhora, mas, ao mesmo tempo, o cuidado de si como o cuidado do outro sugere uma submissão. Se considerarmos que nenhuma ética é boa em si mesma, nem dona do bem, então este vem a ser um dos erros clássicos da filosofia e do humanismo. Pelo contrário, a ética do cuidado de si se divide entre o projeto coletivo e a submissão ou controle de uns sobre outros. Não há liberdade sem heteronomia ou autonomia. Toda liberdade implica disciplina, decisão individual e singularidade. Não existe cuidado de si, como cuidado de outros, sem autonomia.

A liberdade não é fazer o que cada um deseja. Muito menos, submeter-se a um sistema de mando externo. A liberdade implica criar nossas próprias leis, ou seja, criar junto com outros nossas leis. Se isso não é possível nas democracias representativas, pelo menos pode ser uma possibilidade no âmbito das relações singulares. Neste sentido, consideramos que as democracias vigentes em nossos países e no mundo são o contrário à liberdade. Precisamente por isso é importante retomar e refletir sobre o “dizer veraz”, a verdade e a liberdade que coloca Foucault.

Toda liberdade singular que não é coletiva, não é liberdade, assim como toda liberdade coletiva que não se refere ao singular não é liberdade. A liberdade não é o ponto de partida, nem o ponto de chegada, e sim um processo que se faz e se desfaz a todo momento, é um conjunto de práticas e de exercícios coletivos e individuais que implica o cuidado de si. Quando Kant  diz que a ética é conduzir-nos de tal maneira que nossa ação seja lei de conduta universal, e quando John Stuart Mill  diz que a felicidade é possível, desde que todos os demais o sejam, nos dizem que tanto a ética como a liberdade não são um ponto de chegada, uma condição exclusiva de alguém, mas, sim, que o ético está nas ações singulares dos sujeitos em coletivo, e que a felicidade é possível somente como alegria e de maneira circunstancial. Ninguém pode ser livre, ético e feliz o tempo todo. A liberdade, a felicidade e a ética são costumes, práticas, exercícios e experiências únicas, que são o cuidado de si. Se as práticas do cuidado de si, como o cuidado do outro, não nos mostram esta condição de singularidade e ao mesmo tempo de universalidade da ética, então isto não é cuidado de si.

 

IHU On-Line - Em que sentido o cuidado de si nessas sociedades antigas era uma forma de subjetivação que ajudava a construir a liberdade como modo de vida?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Eu me pergunto se o cuidado de si é um tema exclusivamente grego relacionado com a liberdade grega, com a democracia grega e a filosofia ou se o cuidado de si pode implicar práticas, experiências e exercícios que permitiram a sociedades antigas permanecerem e ter vigência, de maneira muito diferente e criativa, diferenciando-se de outros grupos sociais que desapareceram. Isto não quer dizer que nós somente gostamos de histórias no sentido hollywoodiano de grandes pirâmides e grandes exércitos, pois reconhecemos que não existem, na atualidade, grupos sociais de origens remotas que tenham sobrevivido com suas próprias formas culturais e que não foram, necessariamente, os autores da majestosidade que, às vezes, a alguns historiadores lhes surpreende. Penso nos ciganos e outros grupos sociais que sobreviveram.

Liberdade

Se pensarmos que a ideia de liberdade corresponde somente ao mundo grego e ocidental, como forma de vida, e que os demais povos antigos jamais souberam dela, pode complicar-se, porque de um modo ou de outro, teríamos que assumir que os europeus são os únicos que conhecem sobre liberdade e esse caminho teríamos que seguir todos os povos do mundo. Em poucas palavras, para ser livres teríamos que aspirar ser como os franceses, os ingleses ou os alemães. Tal fato não quer dizer que neguemos a influência e a importância que tem o ocidente, incluindo os Estados Unidos. Porém, a liberdade não é única e nem um bem universal, e sim uma prática concreta que hoje, mais do que nunca, se exerce na singularidade. Particularmente nós, os latino-americanos, sabemos o que isso significa, pois ajustar-nos a normas e exigências estranhas aos nossos costumes nem sempre resulta em um bom caminho.

Diferença

A liberdade é sinônimo de diferença e não somente de identidade. O que seria dos gregos sem os persas? Inclusive as marcantes diferenças em um mesmo povo como aqueus, espartanos, troianos ou atenienses. O cuidado de si, nas antigas sociedades, baseava-se na diferença de costumes, no enriquecimento entre culturas que não negavam o domínio e a guerra entre elas. Justamente na guerra, no controle e na afirmação da diferença é possível a liberdade. Perguntamo-nos como poderia ser possível a liberdade e o cuidado de si dentro de uma paz perpétua e sem diferença alguma. Se houvesse paz eterna e igualdade, não haveria por que cuidar-se. 

 

IHU On-Line - Nos dias de hoje, como se expressa o cuidado de si?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Na época atual existem duas formas de falar do cuidado de si. Por um lado a chamada “autoajuda” que vai desde a Igreja “Pare de sofrer”, até a psicanálise mais sofisticada, passando pelos livros de autoajuda, os florais de Bach, ioga, e demais fórmulas e práticas que oferecem a melhora da vida, a cura. Porém, por outro lado, e talvez o mais grave da nossa situação atual, é uma espécie de cuidado de si autista, indiferente, cínico e oportunista, que invade todos os campos de atividade social, que não reconhece a alteridade, nem a diferença quando atua somente em benefício próprio.

Hoje, cuidar de si mesmo não pode estar alheio ao pragmatismo e ao utilitarismo desta época e, quando utilizamos estas duas noções, não somente nos referimos ao senso comum que estamos acostumados, mas também no sentido filosófico e profundo que nos remete a experiências históricas de povos antigos, particularmente aos mitos e rituais que ainda perduram. Hoje, o cuidado de si é um cuidado pragmático e utilitário, no melhor sentido de ambos os termos. Ou seja, da necessidade de assumirmos a nós mesmos sem esperar nada de um Estado benfeitor ou um pai protetor. Entretanto, assumindo as diferenças políticas e, sobretudo, o reconhecimento dos inimigos. Um erro grave da nossa época é a opacidade e o relativismo oportunista que se confundem com o cuidado de si. O cuidado de si, hoje, como em outras épocas, implica o compromisso com a verdade, para a qual não se requer ser universitário ou filósofo, inclusive pode ser ineficaz. Qualquer homem, mulher, ou grupo de pessoas pode estar em condições para as práticas do cuidado de si.

Compromisso

O compromisso com a verdade implica esforço, coragem e riscos, porém isto não depende de um estado de consciência, e sim, fundamentalmente, de situações particulares ou gerais, que possam provocar alterações da vida singular ou coletiva. Não resta dúvida de que, hoje, estamos marcados pela necessidade que a própria realidade nos impõe, a necessidade de mudar nossa vida, recordando Sloterdijk.  O como e em que direção não dependem de doutrinas, crenças, ideologias e outros supostos, e sim das condições mesmas em que a vida se realiza. Este século XXI iniciou com uma má notícia, acabou o liberalismo e o socialismo, já não existem mais “ismos”, mas também iniciou com uma boa notícia: hoje todos nós somos responsáveis de nossa própria vida em conjunto com os demais e isto significa o cuidado de si mesmo. Como fazemos ou não fazemos, isto não depende de alguma profecia ou bons desejos.

 

IHU On-Line - Quais são os principais limites e possibilidades do cuidado de si num tempo marcado pela biopolítica e por uma financeirização de todas as esferas de nossa vida, em última instância, em técnicas de governamentalidade?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Não há como esquecer que Foucault passou a entender a biopolítica como um controle que alguns exercem sobre outros, para interessar-se pelo modo como nós controlamos a nós mesmos. De nenhuma maneira o fato de ser controlados por outros é um mal em si mesmo, muito menos o fato de controlarmos a nós mesmos significa um bem em essência. Precisamente, em uma sociedade disciplinar somos governados por outros e, em uma sociedade de controle, somos governados por nós mesmos. Em ambas as sociedades existe o cuidado de si. De maneira alguma se trata de considerar que viemos de um descuido de nós mesmos, de um descuido de si e que progredimos de um cuidado de nós mesmos ou cuidado de si. O cuidado de si não é um assunto evolutivo, nem progressista, nem civilizatório. Assim como a biopolítica não é um desejo maligno, que provém de uma mente, de uma pessoa, de um grupo ou de uma classe social que, com nefastos interesses, dedicam-se a submeter e aniquilar a outros. O que Foucault põe em relevo com o termo biopolítica é a condição de “Estado de polícia”, que se refere ao caráter ilimitado do Estado no controle que regula o comportamento dos indivíduos. O que, aqui, Foucault nos mostra é como a razão do Estado é ilimitada no exercício e controle dos súditos ou cidadãos, porém esta concepção de biopolítica transpõe a outra forma de biopolítica e que tem a ver com o controle de si; o que se põe em terreno de discussão é até onde o que eu faço de mim mesmo tem a ver com a minha própria vontade e desejo, e não simplesmente é um mecanismo de adaptação à vontade dos outros.

Biopolítica e biopoder

O que nos interessa, como a Foucault, é considerar a biopolítica como biopoder, ou seja, como uma condição da vida, da vida humana. Portanto, não há como conceber o cuidado de si como um antídoto contra a biopolítica. Pelo contrário, biopolítica e cuidado de si andam de mãos dadas. Pensar que o capitalismo, tal e como o conhecemos, está a ponto de desaparecer e que há uma crise que não permite sua permanência é como pensar que este sistema econômico e político é eterno e que as coisas seguirão assim pelos séculos dos séculos. O que Foucault nos ensina é que nem uma ou outra resposta fundamentalista, mágica, essencialista, relativista ou absolutista é verdade. Que a realidade social não depende da extinção do sol, ou de sua eterna existência, e sim das condições mesmas que os indivíduos produzem em sua prática, suas experiências e em sua vida. Portanto, o cuidado de si não depende das expectativas e muito menos de ilusões ou fantasias que criamos, e sim, das práticas de nossos atos e de nossas experiências com outros. 

 

IHU On-Line - Qual é o espaço para a autonomia, liberdade e para subjetividade a partir de um cenário como este?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Como citamos, um modo de olhar a realidade e a subjetividade nesta época é possível em concordância com o que Foucault chamou de biopolítica. Não existe um novo mundo, e sim “um mundo outro”, ou seja, nestas condições, com o mundo em que vivemos, temos que fazer outras coisas. Pensar em outro mundo não é negar este mundo, não é acreditar no paraíso ou inferno, pensar em “um mundo outro” é aceitar que o paraíso e o inferno estão aqui mesmo. Como diria Ítalo Calvino  em sua novela Cidades invisíveis (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), o inferno está aqui nesta terra e o que fazemos é construir e alongar, até o limite, espaços que nos permitam viver de outra maneira. A vida não está em outra parte, nem além de nossas possibilidades, está aqui mesmo, contra ou a favor de outros, porém juntos.

 

IHU On-Line - Ainda nessa perspectiva de autonomia, liberdade e subjetividade, como se entrelaçam o cuidado de si e o cuidado dos outros em nosso tempo, pensando no recrudescimento da intolerância em suas mais variadas formas?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Um dos temas que está na moda em nossos países, juntamente com os direitos humanos, a paz e a democracia, é a tolerância. Não nos é estranho que nos anos setenta do século passado, supomos erradicada a escravidão, o tráfico de seres humanos e a discriminação racial. Aconteceram protestos muito importantes nos Estados Unidos e outras partes do mundo contra a discriminação racial e movimentos pela paz como o do Vietnã; e o que hoje vemos na vida política e social do mundo: tráfico de seres humanos, discriminação racial, violência contra crianças, mulheres, idosos e indígenas; fatos que tentam ocultar-se com discursos a favor da paz, da tolerância e da democracia. Se todo cuidado de si implica coragem e verdade e dizer a verdade, muito cuidado deveríamos ter quando, de modo automático, aprovamos certos discursos em favor da tolerância, da paz ou da democracia que, na verdade, são formas de encobrir a verdade, o reconhecimento e a diferença e o diálogo com os outros.

 

IHU On-Line - Em que medida o cuidado de si cedeu espaço, na Modernidade, para o conhecimento de si? O que isso representa?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Conhecer a si mesmo é um dos elementos constitutivos do cuidado de si. Conhecer a si mesmo, de maneira nenhuma, significa conhecer a essência do indivíduo, muito menos significa ter todos os elementos racionais para saber como proceder e também não é uma resposta unívoca a todas as nossas perguntas na vida. Sequer é uma questão de pura consciência, senão que implica a tensão constante entre a situação, o afeto e a razão. Para conhecer a si mesmo, seguindo os preceitos délficos, é necessário não perguntar mais do que se suporta saber e não comprometer-se com o que não se possa cumprir. Por isso nunca se deve confundir o cuidado de si com a inquietação de si. Como mencionamos no princípio, não se trata de um assunto psicológico, mental ou espiritual, alheio ao corpo. O cuidado de si, como o conhecimento de si, tem a ver com práticas muito concretas. ■

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