Edição 472 | 14 Setembro 2015

Financeirização, o ácido que corrói a democracia

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Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução Walter O. Schlupp

Michael Peters argumenta que a dívida tornou-se um procedimento sofisticado de domesticação populacional na contramão de uma postura mais ética

Ao pensarmos a biopolítica devemos compreender as radicais mudanças entre o que o conceito representava na Grécia Antiga, depois na Modernidade com o renascimento e, contemporaneamente, em um espaço global marcado pelo neoliberalismo. “O nascimento da biopolítica assume uma forma mais radical com o neoliberalismo como racionalização do governo via meios econômicos, em que sujeitos com direitos são obrigados a ser livres, isto é, fazer opções dentro de um estado limitado onde o bem-estar é reduzido ou modificado a cada viravolta do mercado ou de arranjos semelhantes a mercado”, analisa o professor pesquisador Michael Peters, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Disto decorre que a relação credor-devedor, longe de ser uma mera operação econômica, trata-se de um processo ético e político capaz de criar um “novo” tipo de sujeito social: o endividado. “Dívida tem prioridade sobre a troca, ao se passar a entender que o capitalismo financeiro e a economia da dívida neoliberal se baseiam e atuam por meio da produção moral de indivíduos endividados. O neoliberalismo é o mecanismo de controle mais eficiente que, através de dívida, mantém sob controle a resistência por parte dos trabalhadores e estudantes”, pondera o professor. “A financeirização é uma nova modalidade de subjetividade que cria normas e valores que estruturam a nossa vida diária. Um aspecto dominante é seu elemento especulativo, onde cada vez mais os cidadãos comuns ‘jogam nos mercados’”, avalia. Ao pensar a situação das populações da União Europeia – UE, Michael Peters critica. “A política financeira e os interesses que impelem o processo financeiro muitas vezes são implementados por organismos não diretamente eleitos pelos cidadãos da UE, nem responsáveis perante eles. O pacto de crescimento, o pacto para o euro e os diferentes memorandos de entendimento parecem sacrificar a soberania fiscal, necessariamente comprometendo também a possibilidade de qualquer cosmopolitismo democrático.”

Michael Peters é doutor em Filosofia da Educação pela University of Auckland, Nova Zelândia. É professor de Educação na University of Illinois. É editor de "Educational Philosophy and Theory" (Blackwell) e "Policy Futures in Education and E-Learning". 

No dia 22-09, às 9 horas, no Anfiteatro Pe. Werner, o professor apresenta a teleconferência A Biopolítica Pós-Colonial no Império do Capital: Linhas foucaultianas de investigação nos Estudos Educacionais, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacional IHU / V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em que consiste a biopolítica pós-colonial no Império do Capital?

Michael Peters - "Biopolítica pós-colonial no Império do Capital" foi o título de uma palestra que dei no ano passado em Bogotá, na Colômbia, numa conferência sobre Foucault  organizada pelo professor Carlos Noguera. Usei esse título sintético para sinalizar três linhas de pesquisa segundo Foucault que eu achei mais significativas, especialmente na última década. Tentei rastrear os seguintes pontos: o discurso do pós-colonialismo que data de Edward Said;  a noção de biopolítica na obra de Giorgio Agamben;  e o modo pelo qual Antonio Negri  e Michael Hardt  usam Foucault no seu trabalho. Em cada caso, temos um grande e importante teórico que deu início a um novo discurso e inventou uma nova linguagem para falar sobre o mundo, mas que ainda deve algo a Michel Foucault. 

Edward Said

Said foi significativamente influenciado por Foucault em sua compreensão do colonialismo como discurso, sendo que o trabalho de Foucault sobre a ordem do discurso proporcionou a ele os meios para analisar as relações de poder que existem no Orientalismo: a construção discursiva do Ocidente sobre o Oriente, a qual nos diz muito sobre o Ocidente e sua imagem distorcida. Enquanto o próprio Foucault escreveu surpreendentemente pouco sobre o colonialismo, seus métodos podem ser fácil e proveitosamente aplicados: o colonialismo é o exemplo paradigmático de um sistema de biopolítica que se transformou ao longo dos anos. 

Agamben

Pensando na América Latina e na variação histórica nos processos coloniais entre a Espanha e Portugal, pode-se argumentar que o sistema colonial, como o "campo" de Agamben, envolveu a própria substância do controle da "vida, morte e cópula", como T.S. Eliot  diria, [ou seja], sobre todos os aspectos da vida e da morte. Ao mesmo tempo, a biopolítica do colonialismo passou por muitas transformações diferentes durante sua história de 500 anos na América Latina. No entanto, podemos dizer que abordagens da biopolítica nos ajudam a entender o funcionamento de administrações coloniais.

Antonio Negri e Michael Hardt

Negri e Hardt, em comparação, examinaram formas de capitalismo pós-moderno e as maneiras pelas quais o neoliberalismo serve para inventar e sustentar novas formas de autocapitalização, onde tudo, inclusive o trabalho, é teorizado no lado do capital. Eles também falam com mais otimismo sobre os bens comuns e o desenvolvimento do trabalho imaterial.

Biopolítica pós-colonial no Império do Capital era, então, um termo complexo que incluía três conceitos e três conjuntos de teóricos para resumir as pistas mais promissoras na pesquisa baseada no trabalho de Foucault que leva a uma melhor compreensão do nosso mundo contemporâneo e sua emergência em algo diferente. Na verdade, também fornece um meio para falar sobre os últimos 500 anos da história do mundo de uma forma que Foucault ignorava — a história dos Outros do Ocidente —, história do mundo como história do colonialismo enquanto lógica dominante para tipos evolutivos de ordem mundial. Eu naturalmente não estou dizendo que esta é uma história sem consequências para hoje; implícitas nas relações coloniais são as sementes de instituições de hoje; implícitos no arranjo político são modelos de administrações do Estado, formas de educação moderna, sistemas de transporte destinados a explorar recursos, atitudes sociais, sistemas de classe e assim por diante. Biopolítica realmente serve como abordagem que pode abarcar toda a transformação dos sistemas mundiais.

 

IHU On-Line - Quais as relações que podemos estabelecer entre a biopolítica num mundo globalizado e a governamentalidade neoliberal?

Michael Peters - Devemos lembrar que as preleções de Michel Foucault no Collège de France sobre Governamentalidade Neoliberal foram intituladas "O Nascimento da Biopolítica", onde ele discute o liberalismo pós-guerra alemão e a reconstrução da economia alemã, de um lado, e o liberalismo da escola de Chicago e o desenvolvimento da teoria do capital humano sob Gary Becker,  por outro. Governamentalidade é um conceito que Foucault usa para analisar a "arte de governar" — racionalidade do governo — com base na produção da subjetividade dos cidadãos, direcionada para o controle biopolítico das populações. Foucault utiliza esse conceito para analisar a sociedade grega antiga, a modernidade e sua forma mais recente na roupagem do neoliberalismo. Ele se refere a um novo tipo de poder exercido pelo Estado para produzir cidadãos autônomos (auto significando si-mesmo, nomos significando lei), ou seja, cidadãos autorreguladores. O nascimento da biopolítica também se ocupa do nascimento do Estado moderno e com a introdução de uma nova forma de conhecimento chamada economia política, que se torna a base para o controle do Estado sob o neoliberalismo.

Nascimento da biopolítica

O nascimento da biopolítica assume uma forma mais radical com o neoliberalismo como racionalização do governo via meios econômicos, em que sujeitos com direitos são obrigados a ser livres, isto é, fazer opções dentro de um estado limitado onde o bem-estar é reduzido ou modificado a cada viravolta do mercado ou de arranjos semelhantes a mercado. Isso envolve a "responsabilização" dos indivíduos, tornando-os responsáveis por si mesmos mediante ênfase sobre a escolha individual na praça. Excelente exemplo disso é o desenvolvimento da teoria do capital humano por Schultz e mais tarde por Becker, da terceira geração da Escola de Chicago,  fornecendo uma análise de educação, crime, casamento e bem-estar social em termos de capital humano, responsabilizando os cidadãos por cuidarem de si próprios, deixando o Estado livre para privatizar todos os ativos estatais, permanecendo como legislador ou regulador do sistema dentro do qual a escolha é exercida [pelo cidadão]. Parece que não há fim para este processo: primeiro, as empresas estatais, depois os ativos estatais são privatizados; segundo, o Estado do bem-estar social [welfare state] é desmontado e as instituições sociais são privatizadas parcial ou completamente; terceiro, parcerias público-privadas são vistas como meio de inserir a lógica da privatização mais fundo no tecido social.

O capital humano, primeiro sugerido por Becker em 1962, muda de investimento do Estado no indivíduo para investimento do indivíduo em si mesmo, com base no tedioso argumento de que a educação, especialmente nos níveis superiores, não é um bem público, mas privado; ou seja, [trata-se de] ganho individual mais para seu próprio avanço com base na educação, sendo que as coisas exteriores [externalities] são mínimas e difíceis de se medir.

 

IHU On-Line - Como podemos compreender o paradoxo entre o aprofundamento da biopolítica e da governamentalidade e os limites que se apresentam à autonomia do sujeito em nosso tempo?

Michael Peters - Esta análise leva naturalmente à sua terceira pergunta. É fácil ver-se a aplicação do argumento de Foucault, especialmente nos países ocidentais que se afastaram do ensino universitário livre para autofinanciamento e financeirização dos estudantes conduzidos pelo consumidor, onde os alunos assumem dívida para frequentar a universidade e ficam endividados ao longo de seu estudo e carreira. Atualmente, a dívida dos estudantes, por exemplo, nos EUA, expandiu-se para mais de US$ 1,3 trilhão, a segunda maior forma de 'hipoteca' depois da habitação e maior do que a atual dívida no cartão de crédito. Neste sentido, o neoliberalismo em sua última fase, desde meados da década de 2000, representa uma nova etapa na evolução do capitalismo enquanto desenvolvimento da financeirização e da sociedade da dívida. A relação credor-devedor torna-se um processo ético e político de criação de sujeitos endividados e, portanto, de criar um certo tipo de subjetividade com o nascimento da cultura de financiamento. Dívida tem prioridade sobre a troca, ao se passar a entender que o capitalismo financeiro e a economia da dívida neoliberal se baseiam e atuam por meio da produção moral de indivíduos endividados. O neoliberalismo é o mecanismo de controle mais eficiente que, através da dívida, mantém sob controle a resistência por parte dos trabalhadores e estudantes.

 

IHU On-Line - Em que consiste a economia biopolítica da dívida? Qual é a importância do mecanismo da dívida no capitalismo financeirizado?

Michael Peters - Tanto para as sociedades quanto para os indivíduos, a economia biopolítica da dívida leva a que a dívida e as finanças substituam a força de produção sob o capitalismo industrial, onde a economia global acaba se estruturando em torno de crédito e taxas de crédito. Assim, a atual batalha da Grécia é um exemplo paradigmático de como os direitos e a democracia são dominados por relações de crédito e débito, por decisões tomadas pelos grandes bancos e agências internacionais que emprestam enormes quantias. Como indica David Graeber  (2011) em Debt: The First 5,000 Years [Dívida: Os Primeiros 5000 Anos]:

Todos os estados-nação modernos são construídos sobre gastos deficitários. Dívida passou a ser a questão central da política internacional. Mas ninguém parece saber exatamente o que é, ou como pensar sobre isso... Se a história mostra alguma coisa, é que não há melhor maneira de justificar relações fundadas na violência, para fazer tais relações parecerem morais, do que reformulando-as na linguagem da dívida-acima-de-tudo, porque isso imediatamente faz parecer que é a vítima que está fazendo algo errado (p. 6).

Na Islândia vimos um certo padrão emergindo, em seguida, nos países mediterrâneos europeus Espanha, Irlanda, Portugal, Chipre e Grécia. A crise financeira levou à reestruturação dos bancos, a seus formidáveis resgates pelos governos e às políticas de "austeridade", onde os benefícios sociais são reduzidos, a idade da aposentadoria é aumentada, e a educação, privatizada. O centro global real é naturalmente Wall Street e a City de Londres, que fixam as taxas interbancárias e têm sido condenadas por fraude maciça após a desregulamentação do setor financeiro. O último empréstimo de US$ 85 bilhões para a Grécia, argumentam muitos economistas, servirá para pagar os empréstimos existentes, e sem crescimento e com desemprego elevado, há pouca probabilidade de se colocar a dívida nacional e do governo sobre uma base sustentável.

 

IHU On-Line - A partir da contribuição de Nietzsche em "A Genealogia da Moral", como se apresentam hoje as novas modalidades de subjetivação em conexão com uma economia geral da dívida?

Michael Peters - A grande contribuição de Nietzsche é a de ter previsto [sic] a antiga conexão entre dívida, culpa e moralidade da punição enquanto pagamento. Diz ele que [o termo alemão para] "culpa" [Schuld] foi derivado de "dívida" [Schulden], e "punição" tornou-se "pagamento", da época do "sujeito legal" no mundo antigo. Seria o prazer do credor, que pode exigir toda espécie de condições para, finalmente, tomar o que lhe agrada, até mesmo tendo, de certa forma, prazer com a violação do endividado? O conceito moral de obrigação, juntamente com a culpa, a consciência e o dever, têm seu início nesta relação contratual, marcada com sangue e tortura. Dívida torna-se uma nova forma de subjetividade. Devemos perguntar quais formas assume o sujeito endividado e como isso configura formas de relação de poder onde a economia moral é a base da economia geral. Podemos ver isso na criação de prisões para devedores nos dias de hoje, onde pessoas pobres são detidas e encarceradas por inadimplência.

 

IHU On-Line - Em que medida podemos falar de uma financeirização que atinge todos os setores de nossa vida? Quais são suas implicações fundamentais?

Michael Peters - A financeirização da vida começou com o surgimento do cartão de crédito no início dos anos 1950, mas tornou-se extremamente importante em nossa vida como meio de se viver: comprar mantimentos ou mesmo qualquer mercadoria, determinar as taxas de crédito [sic], tomar empréstimos, investir em si mesmo na educação, etc. O cartão de crédito é um método de pagamento baseado na promessa de pagamento. Crédito tornou-se um método de crédito rotativo e, em meados da década de 1960, tinha-se tornado uma característica arraigada de nossas vidas. Na década de 1990 o cartão de crédito era um fenômeno global e agora vemos os primeiros passos rumo a cartões digitais. Claro que todos nós sabemos das consequências de não pagar a dívida, a qual, com juros elevados, pode levar à falência. É uma característica necessária da sociedade de consumo. O cartão de crédito representa apenas um aspecto da financeirização. A financeirização é uma nova modalidade de subjetividade que cria normas e valores que estruturam a nossa vida diária. Um aspecto dominante é seu elemento especulativo, onde cada vez mais os cidadãos comuns "jogam nos mercados." Acabamos de ver as consequências disso com o mercado de ações interno chinês, onde a volatilidade levou a um declínio de US$ 3 trilhões em pouco mais de três semanas. Cada vez mais, novos instrumentos financeiros são inventados, como o surgimento de derivativos financeiros. 

Economia real e economia financeira

Tem-se uma ideia do poder desses sistemas ao se fazer uma comparação entre a economia real produtiva (cerca de US$ 70 trilhões de dólares na escala global) e o mercado de derivados financeiros (US$ 1,3 quatrilhão, cerca de 10 a 14 vezes mais que o PIB mundial). Capital entra na esfera privada, que gira em torno de lucrar com finanças em vez de ativos ou de trabalho próprio de cada um. Negociar títulos lastreados em hipotecas leva à financeirização da casa. O risco torna-se um modo de ser, uma forma de cálculo diário, medido em termos de altos e baixos do mercado de ações ou [em termos] dos próprios fundos de pensões. Chegamos a entender imóvel como investimento e uma forma de capital, ao invés de uma casa, e negociamos para cima ou para baixo. A dívida das famílias é delicadamente equilibrada conforme usamos débito e crédito como meio de prover educação e aposentadoria futura.

 

IHU On-Line - A partir do conceito de economia da dívida, como analisa a hegemonia da economia sobre a política em nosso tempo? 

Michael Peters - Esta é uma questão importante, porque as obrigações de dívida internacionais, encargos, reestruturação, consolidação escapam das exigências da democracia em nível mundial e conflitam com a vontade das pessoas em nível local. Bancos e agências internacionais de crédito, que atuam em concerto, interferem com as estruturas democráticas nacionais, ignorando as pessoas e passando por cima de governos que tenham atrasado pagamentos. 

Chipre

Por exemplo, a crise de Chipre estava fortemente relacionada a um tipo de capitalismo financeiro neoliberal que é cosmopolita, mas não democrático. A orientação de Bruxelas sempre tem visado o pacto para o euro, que aponta o caminho para a austeridade fiscal institucionalizada, dando prioridade ao pagamento das dívidas. Esses objetivos monetizados também ajudam a desestabilizar a negociação salarial coletiva e a promover cortes nos gastos públicos e nas pensões. Na crise espanhola, a estratégia de austeridade da União Europeia - UE mais parecia ser socorro [bailouts] para os bancos privados mediante garantias estatais para saldar a dívida para com credores estrangeiros, em detrimento de seus próprios recursos [estatais]. 

Esta é uma visão ético-política em que interesses financeiros têm conseguido uma espécie de aprisionamento institucional com a finalidade de socializar as perdas de bancos privados. A política financeira e os interesses que impelem o processo financeiro muitas vezes são implementados por organismos não diretamente eleitos pelos cidadãos da UE, nem responsáveis perante eles. O pacto de crescimento, o pacto para o euro e os diferentes memorandos de entendimento parecem sacrificar a soberania fiscal, necessariamente comprometendo também a possibilidade de qualquer cosmopolitismo democrático. Esta é uma receita para agitação social com forte sentimento anti-UE entrar no discurso político dominante, acompanhada do desejo de autonomia econômica local. Isto certamente também pode ser analisado em termos de sentimentos cosmopolitas com componente ético-político, particularmente quando esses sentimentos populares acabam punindo a relação com o resto da Europa.

América Latina

Na América Latina, a crise da dívida na década de 1980 — a década perdida — também demonstrou o que acontece quando a dívida externa excede a capacidade de ganho e a capacidade de pagamento da dívida. Eu gostaria de ouvir de estudiosos brasileiros se o enorme empréstimo estrangeiro utilizado para financiar a industrialização foi uma estratégia sensata. Essa dívida inchou por um fator de quatro em menos de uma década. Quanto eu saiba, as rendas caíram, o desemprego aumentou, o crescimento estagnou e a inflação brasileira subiu para níveis perigosos. Hoje, a presidente Dilma Rousseff enfrenta uma dívida externa cada vez maior, de quase US$ 350 bilhões, numa combinação de altas taxas de juros e uma taxa crescente de inflação, atualmente acima de 8%. Juntamente com a desaceleração na China (maior parceiro comercial do Brasil) e na Rússia, isso leva os críticos a reavaliar o potencial dos mercados emergentes, dos quais se esperava que "salvassem" o Ocidente, e a refletir sobre o futuro papel dos BRICs. 

Nessas situações de crise financeira, a democracia facilmente pode ser suspensa, revogada ou podada com legislação de emergência. Quão robusta a democracia moderna é perante a finança internacional é uma questão interessante, inclusive porque operam em diferentes ciclos de tempo: uma é instantânea, a outra reage num ciclo eleitoral.

 

IHU On-Line - Que formas políticas e de resistência surgem a partir do cenário de desterritorialização da dívida?

Michael Peters - A resistência à dívida como movimento popular está aumentando em todo o mundo, motivada pela prepotência, pela natureza fraudulenta de boa parte do sistema bancário internacional, e pela injustiça da dívida com seus cronogramas de amortização. Por exemplo, a Rede Cidadã para Fiscalização da Dívida Internacional – ICAN,  com seu slogan "Não devemos — Não pagamos", entende dívida como mecanismo central do sistema capitalista, que "representa uma ameaça para ativos monetários, mas também baseia seu crescimento no abuso da força de trabalho, da natureza, na violação dos direitos humanos, na conquista de países 'em desenvolvimento' e na relegação do trabalho frustrante a determinados setores, com discriminação de gênero". Trata-se de um movimento internacional antidívida e antiausteridade. Existem muitos movimentos específicos, inclusive o movimento antidívida-de-estudantes nos EUA, além de um número cada vez maior de movimentos internacionais que associam a questão da dívida a apelos por justiça social.  

 

IHU On-Line - Em que aspectos a recusa do pagamento das dívidas a países credores é uma forma de resistência contra um dispositivo de poder econômico? Nesse sentido, como analisa o caso da Grécia?

Michael Peters - A recusa em pagar a dívida era central para a estratégia da esquerda na Grécia. Um relatório recente do parlamento grego argumenta em termos inequívocos:

Todas as provas que apresentamos neste relatório mostram que a Grécia não só não tem a capacidade de pagar essa dívida, mas também não deve pagar essa dívida; em primeiro lugar, porque a dívida resultante do regime da Troika é uma violação direta dos direitos humanos fundamentais dos moradores da Grécia. Assim, chegamos à conclusão de que a Grécia não deve pagar essa dívida, porque é ilegal, ilegítima e odiosa. 

Muitos economistas têm argumentado sistematicamente que o alívio da dívida tem que ser uma parte importante da recuperação econômica da Grécia. A situação está muito fluida. Como se sabe, o primeiro-ministro Alexis Tsipras pediu novas eleições, a fim de debelar a revolta em suas próprias fileiras e reforçar o apoio ao programa de resgate. Muitos dentro de Syriza  estão questionando sua meia-volta.

Resultado das eleições

Seja qual for o resultado das eleições, uma questão candente é a insustentabilidade da dívida grega e sua incapacidade de pagar, o que sugere que o problema não vai desaparecer e que agora é estrutural, no sentido de que ele não vai ser resolvido pelos resgates em curso. Infelizmente os abutres estão esperando para comprar ativos estatais gregos a preço de banana. Entretanto, os problemas da Grécia não são exclusivos — eles são parte de um problema maior de uma cultura financeira global emergente caracterizada por risco, incerteza, especulação e volatilidade, o que significa que, com a mesma rapidez com que um mercado cai, de repente pode subir novamente montado numa nova bolha. Volatilidade marca o mercado financeiro global, e suas consequências estão castigando a população local, que pode perder tudo muito rapidamente e só conseguirá existir precariamente na marginalidade.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Michael Peters - Num artigo que escrevi alguns anos atrás, “The Crisis of Finance Capitalism and the Exhaustion of Neoliberalism” ["A Crise do Capitalismo Financeiro e o Esgotamento do Neoliberalismo"], relacionei o seguinte:

O colapso sistemático das instituições financeiras globais é, em parte, resultado de uma série de problemas inter-relacionados, que evidenciam as numerosas dimensões da crise do capitalismo financeiro e o esgotamento do modelo neoliberal de desenvolvimento:

1. O fracasso e subsequente recapitalização, nacionalização ou resgate de grandes bancos, o que suscita uma era de "política de austeridade" na Europa;

2. O enorme crescimento do mercado global de derivativos e consequente expansão excessiva dos sistemas bancários nacionais em comparação com a "economia produtiva";

3. O aumento dos níveis insustentáveis de dívida soberana e nacional, resultando em sequestro [de bens de inadimplentes] e políticas de flexibilização quantitativa nos Estados Unidos;

4. A tentativa feita de regulamentar as estratégias de evasão fiscal por parte das empresas multinacionais;

5. A evasão fiscal por indivíduos ricos num sistema de paraísos fiscais e trustes internacionais;

6. O excesso de bônus e ações preferenciais dadas aos CEOs, mesmo quando houve mau desempenho;

7. A forma como a UE (agindo junto com o Banco Central Europeu e o FMI) exerceu pressão fiscal e econômica considerável sobre os governos democraticamente eleitos no sentido de mudar as políticas;

8. O rápido crescimento das novas tecnologias da informação, que produz uma nova complexidade mundial de negociação de alta frequência (HFT) a uma velocidade que escapa do controle eficaz ou regular das agências nacionais e regionais;

9. A perda de confiança e o desalinhamento dos incentivos no âmago da cultura financeira dos mercados de ações;

10. A cultura fraudulenta e criminosa nos níveis mais altos da indústria financeira, onde se inclui a manipulação deliberada da taxa de câmbio Libor, com poucas condenações penais, exceto para esquemas Ponzi e corretagem de insider. 

Posteriormente, escrevi um artigo intitulado “Speed, Power and the Physics of Finance Capitalism” ["Velocidade, Potência e a Física do Capitalismo Financeiro"], onde observei:

A financeirização caracteriza a política do capitalismo neoliberal tardio, permitindo-lhe extrair valor dos bens comuns: invadir a previdência social e o seguro-saúde, privatizar a educação e infraestrutura, monetizar a medicina e o seguro médico, hipotecar maciçamente a dívida dos estudantes, confiscar fundos dos depositantes, tirar recursos das empresas estatais. Estas todas são as formas de enclausuramento [enclosure] que permitem uma pequena mas poderosa minoria saquear o bem comum, da mesma forma como essa elite global saqueou a riqueza pessoal da maioria via bolha imobiliária, com enorme queda nas posses de todas as famílias, exceto de muito, muito poucos. O capitalismo das finanças impõe-se ao capitalismo industrial, mas o que se impõe ao capitalismo financeiro? Esta é a primeira crise planetária de tal magnitude global e está ligada intimamente a uma crise ecológica, social e de desemprego mais ampla. Tanto a escala quanto a velocidade de seu desenvolvimento inexorável pode indicar que nada consegue salvar o sistema, e as coisas devem continuar assim até o colapso final inevitável.  ■

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