Edição 471 | 31 Agosto 2015

A China, o AIIB e a nova ordem financeira em gestação

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Diego Pautasso

#Crítica Internacional – Curso de RI da Unisinos

 “Em outras palavras, a transição sistêmica tem em seu seio o renascimento econômico da Ásia oriental desenvolvido a partir de três ondas: primeiro o Japão nos anos 1950-80, depois os Tigres Asiáticos de primeira geração (Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong) e os de segunda geração (Tailândia, Indonésia, Malásia, Vietnã) a partir dos anos 1990. Desde os anos 1980 a China começou a acompanhar tal dinâmica regional e na virada do século XXI começou a liderá-la”, explica Diego Pautasso.

Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política com ênfase em Relações Internacionais e graduado em Geografia, sendo todos os títulos obtidos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. É docente e pesquisador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos e da ESPM-RS no curso de Relações Internacionais, sendo especialista em China, Rússia e Relações Sul-Sul.

Eis o artigo.

A criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (Asian Infrastructure Investment Bank - AIIB) é muito mais do que um banco. É, sem sombra de dúvida, parte do renascimento da Ásia oriental cujo centro volta a ser a China depois do “século de humilhações” que se estendeu da Guerra do Ópio à Revolução Chinesa (1839-1949). Isso porque o AIIB é parte de uma ampla iniciativa chinesa para redefinir a arquitetura financeira global. Tal importância deve-se ao fato de um dos pilares da hegemonia dos EUA ter se constituído exatamente a partir do sistema de Bretton Woods (dólar, BIRD e FMI, além dos bancos regionais de fomento, como BID, BAD, etc.). 

Ter assumido a condição de maior PIB mundial em poder de paridade de compra em 2014 é a base de sua crescente capacidade financeira. Essa capacidade chinesa tem se manifestado i) nas suas reservas internacionais de cerca de 4 trilhões de dólares; ii) na importância global de seus bancos, que em 2004 não possuíam nenhum entre os 10 maiores do mundo e em 2013 já havia o primeiro, segundo, sétimo e nono (Industrial and Commercial Bank of China - ICBC, China Construction Bank, Bank of China e o Agricultural Bank of China); e iii) na participação ativa na criação e fortalecimento dos bancos de desenvolvimento, como o China Development Bank (CBD-1994), o China-Africa Development Bank (CAD Fund-2007), o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS (NBD-2014) e agora o AIIB. 

A criação oficial do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) se deu em outubro de 2014, projetado para ter, inicialmente, um capital social de 100 bilhões de dólares, sendo metade alocado pela China. É um banco de desenvolvimento multilateral (MDB) tendo como foco o desenvolvimento de infraestrutura e outros setores produtivos na Ásia, complementando e cooperando com os bancos multilaterais de desenvolvimento existentes. Até o final de outubro de 2014, 22 países asiáticos assinaram um Memorando de Entendimento (MOU) para estabelecer o AIIB, tendo Pequim como sede e Jin Liqun como seu primeiro Secretário-Geral Interino. 

Embora tenha sido uma iniciativa voltada à região, como sugere o nome do banco, foi criado com 57 membros fundadores, incluindo aliados norte-americanos na Ásia (Coreia do Sul, Tailândia, Filipinas), na Europa (França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Luxemburgo, Espanha), na Oceania (Austrália) e no Oriente Médio (Egito, Turquia, Arábia Saudita, Catar). O fato é que a iniciativa ganhou uma importância muito maior e demonstrou a reduzida capacidade dos EUA de dissuadirem seus aliados. Reconheceu o ex-secretário do Tesouro dos EUA, Lawrence Summers, que a China pode abalar a hegemonia econômica dos EUA.

Embora a maturação dessas iniciativas chinesas e seus desdobramentos sejam incertos, o fato é que as obras em infraestrutura na Ásia tendem i) a aprofundar a integração infraestrutural e econômica da região, ii) a projetar a liderança regional (e global) da China e iii) a fortalecer novos sistemas de governança na economia mundial. O objetivo é integrar a Eurásia recriando uma nova Rota da Seda, cujas diretrizes já foram explanadas pelo presidente Xi Jinping no Fórum Boao para a Ásia em março de 2015. 

Assim, a integração da Eurásia, por seus mecanismos político-diplomáticos (Organização para a Cooperação de Xangai) e econômico-infraestruturais (AIIB), estão a redefinir a ordem mundial e recolocar desafios à superpotência global (EUA). O caso do AIIB — e dos demais fundos e bancos — criado pelo governo chinês sinaliza sua assertividade, bem como a compreensão de que o financiamento é uma ferramenta crucial para alavancar a internacionalização de suas empresas, criar mecanismos de concertação política e projetar seu poder regional e globalmente. Mais do que isso: são concepções de Estado, de desenvolvimento e de governança global que estão em conflito. Enquanto os EUA focam prioritariamente em elementos táticos e operacionais de cunho militar, o mundo segue a multipolarização e a emergência de novos polos de poder. E certamente o AIIB só pode ser compreendido como parte do renascimento da Ásia, da ascensão chinesa e da multipolarização em curso, do qual sua nova arquitetura geoeconômica e financeira é uma das facetas mais evidentes.

Em outras palavras, a transição sistêmica tem em seu seio o renascimento econômico da Ásia oriental desenvolvido a partir de três ondas: primeiro o Japão nos anos 1950-80, depois os Tigres Asiáticos de primeira geração (Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong) e os de segunda geração (Tailândia, Indonésia, Malásia, Vietnã) a partir dos anos 1990. Desde os anos 1980 a China começou a acompanhar tal dinâmica regional e na virada do século XXI começou a liderá-la. Deve-se ressaltar que a China não possui as limitações geopolíticas e geoeconômicas dos demais países asiáticos citados, além de ter atributos fundamentais para o longo prazo, tais como grande território e população; um Estado com uma elite com tradição e projeto definidos; diplomacia apta a desenvolver uma inserção global não subordinada; poder militar dissuasório; e matriz cultural milenar capaz de projetar-se além do espaço nacional. Esses elementos de cunho regional e sistêmico permitem entender com maior abrangência e alcance algumas das iniciativas chinesas e, sobretudo, seus significados de longo prazo. 

Enfim, é preciso compreender a ascensão da China — bem como a atuação do BRICS — como forças progressistas no processo de reordenamento do poder no mundo. Embora eivado de contradições, como é da natureza da política, aliás, tal processo marca, a um só tempo 1) a afirmação da questão nacional em países emergentes, 2) uma alternativa (muita mais do que uma ameaça) aos países periféricos, 3) uma força relevante no combate às políticas liberalizantes produtoras de exclusão e vulnerabilidades e 4) um ‘freio’ importante às ações unilateralistas e militaristas desencadeadas a partir do centro do sistema mundial (EUA e seus aliados europeus). As lutas sociais e políticas são complexas porque se desenvolvem de maneira entrelaçada, em diversas escalas e numa multiplicidade de atores. ■

Expediente

Coordenadora do curso: Profa. Ms. Gabriela Mezzanotti

Editor da coluna: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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