Edição 471 | 31 Agosto 2015

Financeirização: adubo para agrotóxico e herbicida para saúde e meio ambiente

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João Vitor Santos

Karen Friederich destaca que é preciso subverter a lógica econômica. Somente colocando a saúde e o ambiente em primeiro plano será possível produzir comida sem veneno

A ideia de Financeirização — conforme a IHU On-Line trabalhou na edição 468 — é quando a perspectiva econômica suplanta outras. A supremacia do capital se faz ainda mais nefasta quando é posta à frente da saúde e do meio ambiente. Vejamos o caso do uso de agrotóxicos. A biomédica Karen Friederich, professora da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UniRio, destaca que o argumento que se embute é de que para se produzir mais é preciso dos agrotóxicos. “Se pegarmos hoje exemplos de consultas públicas da Anvisa, veremos argumentos como: ‘se proibir agrotóxico, não vai ser mais possível plantar feijão, soja ou milho’. Aí o agrotóxico é proibido, mas se vê que a plantação continua. Então, vemos que tem um apelo econômico, e que nem por esse apelo se justifica”, destaca. Karen participou do evento de lançamento do Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde precedido do seminário Agrotóxicos: Impactos na Saúde e no Ambiente, no dia 24-08, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos.

A pesquisadora detalhou para a revista IHU On-Line os chamados processos de revisão de registro de agrotóxicos no Brasil. Há 14 tipos de agrotóxicos que hoje são liberados, que estão passando por reavaliações. Entre eles o glifosato, 2,4-D e paraquat. O desafio é, com base em novos estudos, provar que os agrotóxicos ameaçam a saúde e o meio ambiente. Mas, se já há estudos que provam isso, qual a dificuldade em banir essas substâncias? Karen explica que além da comprovação científica é preciso lutar contra essa lógica econômica, em que saúde e meio ambiente são ameaçados em prol, em última medida, do lucro. “Percebo nos últimos anos que, quando a Anvisa toma uma iniciativa (de reavaliar os registros), ou o processo foi atrasado por decisões judiciais ou não finalizou até hoje. Isso nos preocupa. Imagine um agrotóxico que foi registrado na década de 1980, quando não havia tanta tecnologia de detecção molecular e até de população exposta. Hoje se consegue detectar isso, mas há demora em efetivar a restrição ou proibição”. 

A pesquisadora ainda alerta para o risco de se liberar substâncias apenas com dados fornecidos pelas empresas, baseados em estudos laboratoriais que não dão conta da complexidade dos agrotóxicos. Além disso, aponta os transgênicos como fator que aumenta em muito a carga de veneno aplicado na produção. É o que ocorreu quando da liberação de sementes resistentes ao glifosato e o que pode ocorrer com a liberação de sementes resistentes ao 2,4-D. Esse segundo carrega elementos que compunham o agente laranja, usado na Guerra do Vietnã.

Karen Friedrich possui graduação em Biomedicina pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UniRio, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é servidora pública do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde - INCQS da Fundação Oswaldo Cruz e professora assistente da UniRio. Ela é uma das autoras do Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde, juntamente com Fernando Carneiro, Raquel Maria Rigotto, Lia Geraldo da Silva Augusto e André Campos Búrigo.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Você destaca o glifosato, o paraquat e o 2,4-D entre os agrotóxicos mais pesados. Qual é seu uso no Brasil?

Karen Friedrich - Esses três agrotóxicos estão entre os três mais usados no Brasil hoje. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE publicou um documento, agora em 2015, apontando essa grande utilização. Como são três herbicidas de grande uso, estimamos que a população esteja exposta a grandes quantidades. São usados em diversas culturas. 

Já há alguns anos, existem sementes transgênicas resistentes ao glifosato liberadas para uso. Isso torna o glifosato, disparado, o agrotóxico mais usado no Brasil. E o fato de ter semente transgênica resistente a ele faz com que o seu uso aumente ainda mais, sendo aplicado em grandes quantidades. Sobre o 2,4-D, recentemente, a CTN-Bio  liberou a utilização de semente também resistente a esse herbicida. Por isso temos uma preocupação grande de que aumente muito o consumo desse agrotóxico.

 

IHU On-Line - Em que condições se dá essa liberação? 

Karen Friedrich - Para a liberação, são avaliados alguns testes apresentados pela indústria que está tentando obter o registro. No caso, a semente transgênica resistente a esse agrotóxico. Por isso é importante enfatizarmos que os testes apresentados são realizados em condições experimentais, muito bem controladas. Não queremos questionar a idoneidade dos resultados, mas, na verdade, temos dúvidas se os testes de laboratórios condizem com a realidade de exposição humana dessas sementes para compor os alimentos.

Da mesma maneira, a liberação para registros de agrotóxicos é feita baseada em testes feitos em laboratórios, em condições muito bem controladas. Assim, avaliamos que não tem como extrapolar estas condições para condições humanas. Sabemos que os testes são limitados. Só testam um agrotóxico por vez, uma via de absorção por vez em cada animal de laboratório, quando, na realidade de uso, o agricultor acaba usando uma mistura de agrotóxicos. Do ponto de vista da toxicologia, um agrotóxico pode potencializar a ação tóxica do outro.

 

IHU On-Line - Esses registros não são revistos? Uma vez no mercado, podem ser retirados? 

Karen Friedrich - O glifosato e o paraquat estão em processo de reavaliação desde 2008 pela Anvisa . Até hoje, não se finalizou o processo de revisão. Esperamos que esse processo termine logo, principalmente porque a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, o IARC , da Organização Mundial da Saúde, publicou uma revisão dos estudos sobre os efeitos destes dois agrotóxicos. E, ainda, avaliou o 2,4-D como um possível cancerígeno humano. Já o glifosato foi avaliado como um provável cancerígeno humano. Então, o glifosato, segundo estes estudos, tem um potencial cancerígeno ainda maior que o 2,4-D. E como o câncer é um dos critérios proibitivos de registro na legislação brasileira, a Lei 7802/89 , isso já é um indicativo muito forte para proibir esses dois agrotóxicos no Brasil. Já o paraquat tem outros efeitos. São danos oxidativos, danos muito fortes para o sistema respiratório, o sistema reprodutivo e o sistema hormonal, que também são indicativos para revisão e proibição de registro. 

O 2,4-D não estava nessa lista de 2008 para revisão da Anvisa. Mas o Ministério Público Federal, em 2014, exigiu que a Anvisa fizesse a reavaliação toxicológica deste herbicida. Isso por conta da liberação da semente transgênica. Ou seja, a CTN-Bio faz a avaliação da semente transgênica sem considerar outros aspectos como a toxidade do agrotóxico para qual a semente vai ser liberada. Fazer a avaliação desse agrotóxico é papel da Anvisa. Assim, na expectativa de que se vai usar mais 2,4-D, por conta da liberação da semente transgênica, é importante que a Anvisa reavalie os efeitos à saúde à luz dos conhecimentos mais recentes. 

O econômico que sufoca a saúde e o meio ambiente

A decisão de proibir um agrotóxico é de três órgãos: Ministério da Agricultura, Anvisa e Ministério do Meio Ambiente. Se olharmos a Constituição Federal, os Diretos Fundamentais, o direito a saúde e meio ambiente equilibrado devem se sobrepor aos interesses econômicos. Apesar de não estar explicitado na Lei de Agrotóxicos, está na Constituição. O que temos visto, infelizmente, é o interesse econômico se sobrepor aos interesses da saúde e do meio ambiente. É importante termos ciência disso.

 

IHU On-Line - Como você observa esse processo de registro e revisão de registro?

Karen Friedrich – Podemos fazer uma alusão aos medicamentos. No Brasil, quando um medicamento é registrado, ele é submetido a uma revisão de registro a cada cinco anos. O que acontece nesse processo? Se a empresa produziu mais estudos, ela pode apresentá-los. Porém, se for observado que a utilização de medicamento pela população apresentou algum dano sobre a saúde ou apresentou perda ou falta de eficácia, o medicamento tem seu registro suspenso. Isso a cada cinco anos. Todos os medicamentos passam por isso.

Já o agrotóxico no Brasil não passa por isso. Ou seja, temos hoje agrotóxicos com registro desde antes da criação da Anvisa, entre as décadas de 1980 e 90, e que continuam sendo utilizados. E antes da Anvisa esse processo de registro não era muito organizado. Foi ela que trouxe essa organização, e é ela que faz avaliação de todos os testes que a indústria apresenta. Caso seja consenso que não apresenta impacto significativo nem para saúde nem para o meio ambiente, e é interessante para a agronomia, o agrotóxico é registrado. Esse registro é para sempre. Não tem uma revisão periódica prevista em lei. 

Entretanto, a lei indica que se houver novas informações científicas, estudos ou alerta internacional e indicativos de impactos sobre a saúde ou meio ambiente ou perda da eficácia agronômica, aquele registro pode ser revisto. O que percebemos nos últimos anos é que, quando a Anvisa toma uma iniciativa, como essa de 2008  — depois em 2012 o Ministério do Meio Ambiente também tentou reavaliar alguns agrotóxicos que apresentavam impactos sérios para abelhas —, ou o processo foi atrasado por decisões judiciais ou não finalizou até hoje. Isso nos preocupa. Imagine um agrotóxico que foi registrado na década de 1980, quando não havia tanta tecnologia de detecção molecular e até de população exposta. Hoje se consegue detectar isso, mas há demora em efetivar a restrição ou proibição, se for o caso. 

Sobre essa demora, o que temos visto publicamente é que o posicionamento das empresas e de outros grupos está centrado no argumento de que a questão é econômica. Ou seja, que não vai se conseguir produzir o que se produz hoje sem o agrotóxico. Se pegarmos hoje exemplos de consultas públicas da Anvisa, veremos argumentos como: “se proibir o agrotóxico não vai ser mais possível plantar feijão, soja ou milho”. Aí o agrotóxico é proibido, mas se vê que a plantação continua. Então, vemos que tem um apelo econômico, e que nem por esse apelo se justifica. Porque novos agrotóxicos entram no mercado ou existem outras moléculas que podem substituir aquela. 

Caminhar para o fim dos agrotóxicos

E isso quando falamos de um modelo de produção que é químico-dependente. Porque sabemos que, do ponto de vista da saúde e do meio ambiente, não temos como defender agrotóxico. O caminho é que o modelo de agricultura brasileira caminhe gradativamente para o fim do uso de agrotóxicos. Temos a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica , que aponta caminhos nesse sentido. Por isso é importante que saia do papel e tenha financiamento e discussão e informação pública. Ou seja, temos caminhos para seguir na redução gradativa do uso de agrotóxicos.

Nesse fim gradativo, temos que começar a proibir aqueles que são mais tóxicos, que já se tem reconhecimento científico de que causam câncer, alterações hormonais e reprodutivas, neurotoxidade intensa, causando depressão no sistema nervoso central, problemas cognitivos, de memória. Então, levando em conta isso, já temos agrotóxicos que deveriam estar sendo proibidos no Brasil. O glifosato e o 2,4-D são dois exemplos. O fato de o IARC, que é a agência internacional de pesquisa em câncer, reconhecer a probabilidade de o glifosato causar câncer já é um indicativo para a Anvisa proibir essa substância no Brasil. Já o 2,4-D não tem tantas evidências quanto o glifosato. Agora, além de causar câncer, o 2,4-D pode causar alterações hormonais muito severas e alterações sobre o sistema reprodutivo também. Esses também são critérios que deveriam impedir o registro.

 

IHU On-Line - Como avalia a legislação brasileira? Facilita a revisão dos registros ou é posta como mais um empecilho?

Karen Friedrich – Precisamos fazer uma ressalva importante: o Brasil tem uma lei de 1989 que relaciona critérios que levam à proibição de agrotóxicos. Efeitos sobre o sistema hormonal, câncer, mutação no sistema genético, malformações fetais e alterações sobre sistema reprodutivo, por exemplo. Estes itens não constam em legislações internacionais. Somente em 2009 a Comunidade Europeia passou a incorporar esses critérios proibitivos. Então, a lei brasileira, neste aspecto, é bem mais restritiva. Está tão atual que a Comunidade Europeia está copiando.

Agora, certamente estes países têm mais estrutura para poder fazer a restrição funcionar. A gente sabe que a Anvisa, assim como os três órgãos que cuidam disso, tem uma estrutura pequena e tem uma pressão forte das empresas sobre suas ações. A todo o momento, as empresas questionam a Anvisa, por exemplo. Por isso é importante que a sociedade também faça voz. Somos mais numerosos e queremos que o interesse da saúde pública, o papel da Anvisa, se faça.

 

IHU On-Line - Voltando à questão dos transgênicos. O maior problema desse tipo de cultura é o fato de que necessita de uma carga ainda maior de agrotóxicos do que uma cultura sem modificação genética?

Karen Friedrich – Sim, é claro. Existem vários tipos de sementes transgênicas. Vamos pegar, por exemplo, a semente transgênica resistente ao glifosato. Este herbicida mata os vegetais que não interessam na lavoura. Se o agricultor planta uma semente de soja resistente ao glifosato, só a soja vai crescer. Outras ervas morrem. Então a soja cresce sozinha, de forma mais rápida. É obvio que isso aumenta o consumo de glifosato. O que temos percebido é que, quando foi liberado o uso de semente transgênica resistente ao glifosato, houve um aumento muito intenso do uso desse herbicida.

É o que tememos que ocorra especialmente no caso do 2,4-D. Porque ele tem vários efeitos associados que são muito graves. Além disso, tem no seu processo de formação uma geração espontânea de dioxina . Este é um contaminante muito sério também, presente, por exemplo, no agente laranja . Mesmo em pequenas quantidades, pode causar danos à saúde muito graves.

A única coisa sobre a legislação que acho que poderia ser modificado é abarcar a revisão periódica. No caso da Europa, a cada dez anos, é feita a revisão de registro. Isso obriga que a agência reguladora faça uma avaliação sistemática dos estudos científicos publicados e possa concluir, à luz dos conhecimentos atualizados, se aquele agrotóxico deve ou não permanecer no mercado, ou se deve ter seu uso restrito.

 

IHU On-Line - E como a população pode auxiliar nesse processo de diminuição do uso de agrotóxicos?

Karen Friedrich – Buscando informação. Esse é o caminho. Como consumidores, ainda temos um papel importante de regular o mercado. Buscando cada vez mais adquirir alimentos sem transgênicos, sem agrotóxicos, alimentos orgânicos ou ao menos de base ecológica, vamos dar apoio aos produtores e também mostrar ao mercado que não queremos comer veneno.

 

IHU On-Line - A senhora também teve uma contribuição para reavaliação do 2,4-D. Como foi essa contribuição?

Karen Friedrich – Eu participei de uma audiência pública no Ministério Público Federal, onde falei de alguns estudos sobre os efeitos na saúde e no meio ambiente. Encaminhei tudo para a Anvisa. É outra ação importante que todo pesquisador e todo cidadão pode fazer. Se observarem algum caso de contaminação, encaminhem para os órgãos. Por exemplo: encaminhar para o Ministério Público suspeitas de uso muito elevado, que tenham levado à morte e intoxicação. Assim, esses casos podem ser levados para investigação. E os pesquisadores também: tendo novos estudos, novas pesquisas, encaminhem para Anvisa ou Ministério Público. É provocar o órgão e também fazer nosso papel de cidadão e de pesquisador de uma instituição pública. Eu, como pesquisadora de saúde pública, e outros, temos o papel de defender a saúde pública. Nesse sentido, não estamos fazendo mais do que a obrigação. ■

 

Leia mais...

- Estudos epidemiológicos apontam relação entre consumo de agrotóxicos e câncer. Entrevista com Karen Friedrich, publicada nas Notícias do Dia, de 24-08-2015, no sítio do IHU;

- Uso combinado de agrotóxicos não é avaliado na prática. Entrevista com Karen Friedrich, publicada nas Notícias do Dia, de 14-05-2015, no sítio do IHU, disponível em 

- O modelo de produção agrícola em discussão. O 2,4-D e a toxidade dos agrotóxicos. Entrevista com Karen Friedrich, publicada nas Notícias do Dia, de 15-01-2014, no sítio do IHU;

- Agrotóxicos. Pilar do agronegócio. Revista IHU On-Line, edição 368, de 04-07-2011;

- Agrotóxicos. Remédio ou veneno? Uma discussão. Revista IHU On-Line, edição 296, de 08-06-2009;

- Nanotecnologias: possibilidades incríveis e riscos altíssimos. Revista IHU On-Line, edição 259, de 25-05-2008;

- Desperdício e perda de alimentos. Revista IHU On-Line, edição 452, de 01-09-2014;

- Alimento e nutrição no contexto dos Objetivos do Milênio. Revista IHU On-Line, edição 442, de 05-05-2014;

- A financeirização da vida. Revista IHU On-Line, edição 468, de 29-06-2015.

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