Edição 471 | 31 Agosto 2015

A experiência da realidade intensificada pela arte

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Ricardo Machado | Tradução André Langer

Para o professor e crítico de arte Ticio Escobar, a arte não serve para esclarecer a realidade, mas para descobrir os flancos invisibilizados pelo nosso tempo

Tal como a cultura, a arte latino-americana se constitui por constelações complexas que resistem, há séculos, às classificações, aos lugares prefixados, enfim, à razão instrumental global de mercado. “A arte apresenta de maneira oblíqua as problemáticas desses contextos; não se refere literalmente à realidade histórica e social, nem pretende atuar diretamente sobre ela. A arte atua como sintoma da realidade, não como sua expressão”, sustenta o professor e pesquisador Ticio Escobar, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “(A arte) manifesta-se como sinais obscurecidos da realidade, marginalizados. Essa é a sua limitação, mas também a sua força: a arte não esclarece a realidade, mas intensifica a experiência que se tem dela e permite, desse modo, descobrir flancos invisíveis para um olhar frontal”, aponta.

Por outro lado, há tensionamentos à produção artística em nosso tempo, o que produz um certo grau de agenciamento. “A globalização constitui um condicionamento da arte contemporânea, como qualquer um daqueles que ocorreram ao longo de suas múltiplas histórias: pode atuar positivamente promovendo o intercâmbio (...), mas também pode atuar como puro princípio de rentabilidade em nível mundial, que converte a obra em fetiche mercantil”, critica. “Em geral, na América Latina (como em grandes zonas do mundo) temos um déficit de Estado e sociedade civil e um superávit de mercado; então, a globalização age como um fator dissolvente da diversidade cultural. Mesmo assim, a arte contemporânea tirou muito proveito das imagens e circuitos da globalização, apropriando-se de recursos massificados para convertê-los em aliados das novas políticas visuais”, contrapõe.

Ticio Escobar é um crítico e pesquisador de arte, foi secretário de cultura no governo de Fernando Lugo no Paraguai. Formou-se em Filosofia na Universidade Católica de Assunção e dirigiu o Museu de Arte Indígena até 2008. É autor de diversos livros, entre eles Una interpretación de las artes visuales en el Paraguay (Asunción: Centro cultural paraguayo americano, 1982-1984), El arte en los tiempos globales (Asunción: Ediciones Don Bosco, 1997) e El arte fuera de sí (Asunción: CAV Museo de Barro, 2004). Em 2009, recebeu a distinção de Cavaleiro da Ordem Francesa de Artes e Letras.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como se deu a formação cultural da América Latina e como isso se reflete em nossos processos artísticos?

Ticio Escobar - Não creio que exista uma formação cultural homogênea na América Latina: existem múltiplas configurações de culturas, muitas delas em situação de conflito. Em geral, essas formações se entrecruzam criando tramas heterogêneas ou então entram em oposição, em aliança, ou produzem, em seus cruzamentos transculturais e influências mútuas, novas configurações. Não creio que se possa falar de uma cultura latino-americana: esta se encontra constituída por constelações culturais complexas e desiguais que produzem intrincados conjuntos de símbolos, discursos e imagens.

 

IHU On-Line – De que forma o mundo globalizado reconfigura a produção artística contemporânea?

Ticio Escobar - A globalização constitui um condicionamento da arte contemporânea, como qualquer um daqueles que ocorreram ao longo de suas múltiplas histórias: pode atuar positivamente promovendo o intercâmbio, a difusão e o acesso às grandes audiências, mas também pode atuar como puro princípio de rentabilidade em nível mundial, que converte a obra em fetiche mercantil, insumo da sociedade do espetáculo, da informação e do entretenimento fácil. Os diferentes dispositivos e formatos da cultura globalizada poderiam contribuir para a democratização cultural, caso houvesse condições de fortalecimento social e políticas públicas capazes de promover a criação local e regular a invasão do mercado.

Mas, em geral, na América Latina (como em grandes zonas do mundo) temos um déficit de Estado e sociedade civil e um superávit de mercado; então, a globalização age como um fator dissolvente da diversidade cultural e um elemento que promove o crescimento da brecha social (o acesso à criação está reservado aos agentes das indústrias culturais, ao passo que ao grande público é reservado o consumo massivo, formatado em registro de mercado). Mesmo assim, a arte contemporânea tirou muito proveito das imagens e circuitos da globalização, apropriando-se de recursos massificados para convertê-los em aliados das novas políticas visuais.

 

IHU On-Line – Como o estudo das culturas populares latino-americanas se converte, também, em um manifesto político a favor das populações tradicionais, sobretudo os indígenas?

Ticio Escobar - Os estudos das culturas populares podem resultar em grandes aliados de sua causa; mas a emancipação só pode provir das próprias culturas populares: de seus processos autogestionados e suas demandas de participação e inclusão. Obviamente, estes processos não são suficientes: precisam do apoio da população, da sociedade civil organizada e do Estado. Precisam de leis, acordos, canais adequados através dos quais se formalizem as denúncias.

 

IHU On-Line – Considerando a estética, no âmbito ético e político, da arte latino-americana, de que forma nossas manifestações artísticas expressam o contexto histórico e social de nosso continente?

Ticio Escobar - Considero que as manifestações artísticas não traduzem diretamente seus contextos sócio-históricos. A arte apresenta de maneira oblíqua as problemáticas desses contextos; não se refere literalmente à realidade histórica e social, nem pretende atuar diretamente sobre ela. A arte atua como sintoma da realidade, não como sua expressão. Ou seja, manifesta-se como sinais obscurecidos da realidade, marginalizados. Essa é a sua limitação, mas também a sua força: a arte não esclarece a realidade, mas intensifica a experiência que se tem dela, e permite, desse modo, descobrir flancos invisíveis para um olhar frontal.

A arte não muda a realidade, mas promove sua problematização e seu questionamento, impulsiona atitudes críticas e criativas que permitem detectar questões. E esse desvelamento, sim, pode ter consequências sobre a ordem social. A arte permite ver relações invisibilizadas pelo establishment: mostra por um instante o mapa secreto da realidade. E essa imagem dialética pode constituir um fator desestabilizador das certezas que sustentam um ordenamento específico.

 

IHU On-Line – Como a arte é capaz de tensionar modos hegemônicos de perceber o mundo? Em contrapartida, como ela é capaz de propor novas subjetividades? Quais as particularidades da arte latino-americana?

Ticio Escobar - A arte atua questionando as maneiras estabelecidas de ver o mundo, o que significa que refuta o modelo hegemônico de conceber um mundo baseado em significados traduzíveis para seu melhor consumo. Essa ação converte a arte em contra-hegemônica: não aceita as percepções estabelecidas, nem a “divisão do sensível”, nas palavras de Rancière. 

De acordo com este autor, esse é o gesto político da arte: recusar a ordem das classificações, os lugares prefixados e a direção única marcados pela razão instrumental global (o mercado). Mediante este gesto, a arte amplia o campo do sensível e deixa aflorar subjetividades, formas diversas, que apareciam invisibilizadas pelo sistema hegemônico. Essa é a jogada contra-hegemônica da arte.

Na América Latina, em geral, são invisibilizados os indígenas, os setores populares, as práticas marginais e dissidentes e a arte das mulheres, assim como formas alternativas de sensibilidade não propostas em chave de custo-benefício. Tudo o que não pode ser absorvido pelo mercado fica fora do sistema da arte hegemônica. A contra-hegemonia propõe abrir espaço para formas que não sejam regidas pela lógica rentável dos mercados globais.

 

IHU On-Line – De que forma a arte pode tornar-se uma ferramenta de educação cultural sensibilizando o reconhecimento do Outro (especialmente os indígenas)?

Ticio Escobar - Com a participação dos próprios indígenas. Só eles podem nos ensinar sobre seus próprios mundos e sobre o valor da diferença. Obviamente, o sistema formal de ensino também deve estar orientado, independentemente, para promover o respeito da diversidade. Hoje, a educação crítica é pensada segundo enfoques de direitos culturais (direitos humanos), que incluem fortemente o direito da diferença.

 

IHU On-Line – De que forma a arte contribui para a construção de uma cultura da tolerância e civilidade? 

Ticio Escobar - A arte sempre é um aliado da diferença. Trabalha no limite de um e de outro, do que é e do que não é. No plano da arte, mais que enunciar o direito à diferença, esta deve ser exercida através do próprio jogo das imagens: da colocação em prática do outro de si. ■

 

Leia mais...

- “A emancipação deve passar por construções coletivas”. Entrevista com Ticio Escobar publicada nas Notícias do Dia, de 17-05-2015, no sítio do IHU.

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