Edição 470 | 17 Agosto 2015

A encruzilhada do Curdistão socialista

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Bruno Lima Rocha

“Após o início da guerra civil da Síria, vem chamando atenção do Sistema Internacional a possível construção de uma sociedade de base igualitária na região mais conflitiva do planeta. Na região oeste do Curdistão (Rojava) e ao sul do Curdistão iraquiano, a esquerda curda está implantando um sistema social cooperativo, democrático e não sectário. Os inimigos deste projeto são muitos, consistindo hoje em uma encruzilhada de possibilidades e desafios políticos e militares”, destaca Bruno Lima Rocha, professor de Ciência Política e de Relações Internacionais.

Bruno Lima Rocha tem doutorado e mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e graduação em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atua como docente de Ciência Política e Relações Internacionais e também como analista de conjuntura nacional e internacional. É editor do portal Estratégia & Análise, onde concentra o conjunto de sua produção midiática, analítica e acadêmica. 

 

Introdução

O advento da primavera árabe e a rebelião sunita contra o governo Assad na Síria oportunizou o exercício de soberania da população curda residindo dentro dos limites deste Estado falido. Em novembro de 2013, isto se concretizou no estabelecimento dos três cantões de Rojava (oeste em curdo), Efrin, Kobane e Cyzire, implicando na construção de uma sociedade de tipo socialista, democrática e feminista. As instâncias de poder são de acesso coletivo, os cargos executivos rotativos e a economia tem base familiar, cooperativada e com experimentos de coletivização.

A resposta à tamanha ousadia societária veio com o avanço do jihadismo mais brutal, operado através do Estado Islâmico (ISIS), cujo cerco a Kobane durou mais de 120 dias, resultando no equivalente à Batalha de Stalingrado para os povos do Curdistão. Com a vitória da esquerda em Kobane e as seguidas derrotas militares impostas aos wahhabitas comandados por Al-Baghdadi (líder do ISIS cuja origem vem de um racha da Al-Qaeda, no Iraque), chamaram a atenção mundial para a luta armada iniciada em 1984 e cuja repressão na Turquia implicou em mais 40 mil mortos e em 3.800 vilas e vilarejos removidos pelas forças armadas kemalistas (os militares turcos têm sua origem moderna na reconstrução do Estado promovida por Kemal Ataturk). Desde o início do conflito na Síria, o governo de Ankara apoia de forma implícita e por vezes explícita o Estado Islâmico e faz o possível para aumentar a repressão sobre Rojava e as linhas de apoio do outro lado da fronteira.

A partir de julho de 2015, após a vitória eleitoral do HDP (Partido Democrático do Povo), frente política da esquerda do Curdistão dentro da Turquia, o Poder Executivo vem utilizando suas potestades especiais e intensificando a incidência militar contra as forças curdas. Alegando bombardear e reprimir o ISIS e tendo o aval da OTAN (a Turquia tem o segundo maior contingente da Aliança do Atlântico Norte) para criar uma zona tampão de 100 quilômetros a partir da fronteira com o Estado falido da Síria, Erdogan e os conspiradores militares do alto-comando (as conhecidas redes Ergenekon) praticamente obtiveram carta-branca de seus pares para exterminar esta impressionante experiência democrática.   

Breve trajetória e contexto do PKK

O Oriente Médio vive um momento dramático, dando sequência aos mais de cem anos de conflitos ininterruptos, boa parte destes promovido pelo interesse das potências ocidentais, como também pelo jogo realista e amoral das potências regionais. Os países com ascensão regional e atualmente com status de Estados-pivô na região são Israel, Arábia Saudita, Turquia e Irã. Neste seleto clube outrora participava o Egito no período de Nasser, mas desde os acordos de Camp David (1978), selando a paz entre Egito e Israel tendo em troca a plena devolução do deserto do Sinai, o país que foi o berço do moderno pan-arabismo inclinou-se para os interesses de sua nobreza e cleptocracia de Estado, abandonando os discursos de emancipação dos árabes. 

O pensamento e a postura mais à esquerda vêm sendo progressivamente abandonados por uma concorrência de tipo sectária entre as elites dirigentes dos Estados ali localizados. A grande exceção a esta regra é a esquerda curda, representada pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), cujo embrião remonta ao ano de 1973 e a fundação fora em 1978. Os curdos são considerados a maior nação sem Estado no planeta e a busca pela criação de um Estado-nacional de maioria curda e modelo socialista centralizado foi o objetivo estratégico do PKK até o ano de 1999. Desde então, esta força político-militar passou por dez anos de reconstrução e debates internos, remodelando seu programa e ultrapassando qualquer marco de luta nacionalista. A partir de 2010, o PKK tornara-se o núcleo duro e irredutível de um gigantesco movimento social e popular dos povos do Curdistão (curdos e não curdos) vivendo — majoritariamente — como cidadãos de segunda categoria debaixo da soberania e opressão de Turquia e Irã, e de forma mais autônoma dentro dos territórios dos Estados falidos da Síria e do Iraque.  

A força político-militar a rivalizar com o PKK é oriunda do domínio oligárquico do clã Barzani, líder inconteste do Partido Democrático do Curdistão (KDP) e homem forte do regime à frente do Governo Regional Curdo (KRG), cuja capital é Irbil e ocupa uma mancha territorial no Curdistão iraquiano. Ao contrário da força liderada por Abdullah Ocalan, o KDP é considerado coirmão do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), legenda do presidente islamita turco, Recep Erdogan e inimigo estratégico do PKK. Após a primeira guerra do Iraque, a região onde hoje se localiza o KRG passou por uma guerra civil entre a direita curda (KDP e os clãs oligarcas aliados) e o PKK. Os primeiros foram apoiados pela Turquia, Irã, financiados por empresas transnacionais de petróleo — detentoras de contratos de exploração — e com auxílio da aviação militar dos EUA. Isto resultou em uma vitória pontual da direita e uma trégua armada com a esquerda curda. O empate estabilizou os santuários do PKK nas montanhas do Curdistão, controlando suas rotas e podendo operar como autodefesa de massas contra os ataques da Turquia e do Irã.

O objetivo estratégico da Turquia

O provérbio oriundo desta região e mais conhecido internacionalmente é emblemático da situação. Este afirma que “os curdos não têm outros amigos além de suas montanhas”. Logo, controlar as montanhas implica em salvaguardar tanto a reserva estratégica do PKK como o local de treinamento de novos militantes do partido e voluntários das forças de autodefesa popular (o HPG). A partir dos acampamentos, o PKK alimenta as forças coirmãs do PJAK (Partido da Vida Livre no Curdistão) no Irã e o PYD (Partido da União Democrática) na Síria. 

Pela lógica do conflito, o avanço turco por terra na Síria e sobre as montanhas do Curdistão rompe — de fato — com o cessar-fogo estabelecido pelo PKK e visa tanto acabar com a soberania popular no oeste do Curdistão como aniquilar as bases político-militares de seus adversários permanentes. Diante do avanço da Turquia, o governo da direita curda aplaudira a iniciativa, vendo nesta ofensiva militar a chance ideal para dar fim à única força política capaz de quebrar a hegemonia pró-ocidental nos domínios do KRG. A única saída para o Curdistão socialista é garantir um impasse militar contra a Turquia e, na sequência da vitória definitiva sobre o ISIS, também derrotar a direita curda em todos os níveis.   

Expediente

Coordenadora do curso: Profa. Ms. Gabriela Mezzanotti

Editor da coluna: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha 

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