Edição 470 | 17 Agosto 2015

Núcleo inegociável da identidade: residência da intolerância

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Márcia Junges e João Vitor Santos | Tradução Sandra Dall’Onder

Para Dimitri D’Andrea, a rejeição do outro, e sua não aceitação, se dá quando há uma ideia de ameaça e de algo que não se está disposto a renunciar

A ideia de intolerância pode ser associada à concepção de identidade. É quando se está filiado a um grupo ou ethos — portanto, tendo uma identidade constituída — e não se aceita outro, de identidade distinta. Dessas raízes solidificadas e da irredutibilidade de mudá-las é que germina a intolerância. É nessa linha que vai o pesquisador em Filosofia italiano Dimitri D’Andrea. Para ele, numa rápida definição, “intolerância é a incapacidade de aceitar e de reconhecer igual dignidade a indivíduos ou a grupos cujas ações ou crenças são divergentes das praticadas”. Assim, entende que a intolerância “é um fenômeno inevitavelmente ligado à definição de uma identidade individual ou coletiva”. “Cada indivíduo e cada grupo humano, quando caracterizado pela sua própria identidade, também são definidos por um núcleo de crenças e comportamentos que consideram inaceitáveis ou, vice-versa, irrenunciáveis. Não existem identidades incondicionalmente inclusivas ou ilimitadamente abertas à alteridade”, explica.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele parte desse conceito e mergulha na percepção de intolerância na atualidade. É sempre comum associar intolerância à perspectiva religiosa. Porém, a religião é uma das facetas que constituem a identidade. Sendo assim, há ainda outros elementos que entornam seu caldo, terreno fértil para intolerância. “Há manifestações de intolerância muito ligadas à questão religiosa. Porém, há também quando os cidadãos, na esfera política, não se sentem tocados por uma causa ou por uma realidade. É ensurdecedor o silêncio e a indiferença da opinião pública quando acontecem fenômenos ou eventos que não envolvem direta ou indiretamente os interesses dos cidadãos (como no caso do ataque à redação de Charlie Hebdo ou dos fenômenos migratórios ligados à guerra no Iraque e na Síria)”, destaca.

E como pensar o contrafluxo da intolerância? A reflexão também aparece na entrevista. Para D’Andrea, um caminho pode ser a ideia de igualdade, sem submissões. “No mundo global e nas sociedades contemporâneas, o desafio é pensar em igualdade sem aprovação, sem assimilação”, pontua. Assim, é aceitável que as formas de dirimir a intolerância passem pela igualdade. “Precisamos pensar a igualdade em termos de igual respeito e iguais oportunidades. Claro, a integração não é apenas um fato cultural, e as políticas custam muito. Nos países de crescimento lento, as oportunidades são sempre mais escassas e os recursos financeiros para as políticas de integração cada vez mais reduzidas”, avalia. E, ainda, para D'Andrea, pensar em políticas igualitárias é não tornar isso uma questão jurídica, impondo a tolerância via igualdade. “Não credito na utilidade das proibições legais no combate à intolerância. O caminho da luta contra a intolerância parece-me ser o da máxima liberdade de opiniões (todas) e ao mesmo tempo a máxima vigilância civil e os testemunhos pessoais”.

Dimitri D'Andrea é pesquisador em Filosofia Política do Departamento de Filosofia da Universidade de Florença, na Itália. Sua linha de atuação é acerca de questões políticas e de identidade, em particular a relação entre identidade étnica, globalização e conflito. É um dos autores de Identità e conflitti. Etnie, nazioni, federazioni (Franco Angeli, 2000). Também desenvolveu pesquisa sobre a relação entre a antropologia e a política em Thomas Hobbes e sobre a relação entre ética e política em Max Weber. Desde 2005, coordena o Seminário de Filosofia Política do Departamento de Filosofia da Universidade de Florença.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Antes da modernidade e suas Luzes , como a intolerância se manifestava?

Dimitri D’Andrea - Na sua acepção genérica, a intolerância é a incapacidade de aceitar e de reconhecer igual dignidade a indivíduos ou a grupos cujas ações ou crenças são divergentes das praticadas, prevalentemente, em um determinado contexto social ou político. Neste sentido, a intolerância é um fenômeno inevitavelmente ligado à definição de uma identidade individual ou coletiva. Cada indivíduo e cada grupo humano, quando caracterizado pela sua própria identidade, também são definidos por um núcleo de crenças e comportamentos que consideram inaceitáveis ou, vice-versa, irrenunciáveis. Não existem identidades incondicionalmente inclusivas ou ilimitadamente abertas à alteridade. Todas as identidades são intolerantes, mas nem todas as identidades são igualmente intolerantes. Os aspectos historicamente variáveis são, obviamente, relativos à intolerância e ao seu alcance.

De acordo com Jan Assmann , por exemplo, o fenômeno da intolerância religiosa está diretamente ligado à transição das religiões primárias às secundárias, do politeísmo ao monoteísmo: a introdução da distinção mosaica entre a verdadeira e a falsa religião. Na verdade, é possível entender a passagem entre as religiões primárias e secundárias também em relação ao advento da verdadeira identidade religiosa, em contraste com identidades políticas com conteúdo religioso.

 

IHU On-Line - Até que ponto a intolerância e a modernidade estão imbricadas?

Dimitri D’Andrea - A conexão entre a modernidade e a intolerância é muito próxima. Primeiro, porque a modernidade política é definida em relação ao perfil institucional e não só em relação à resolução de conflitos religiosos e, mais em geral, à experiência do pluralismo de opiniões e crenças. A primeira resposta a este desafio da modernidade é a reductio ad unum da decisão soberana. Talvez valha a pena mencionar que a conclusão das guerras de religião na Europa (Paz de Westfália, em 1648 ) baseou-se no princípio cuius regio, eius religio  estabelecido quase um século antes com a Paz de Augsburgo,  e não em virtude do reconhecimento da tolerância religiosa. A solução tipicamente moderna da tolerância (religiosa ou não) afirmou-se com a criação de dois princípios gerais: a responsabilidade individual em relação às suas próprias opiniões; a crescente aproximação à verdade através da competição/concorrência de ideias. Em qualquer caso, a tolerância liberal foi a institucionalização da indiferença política das opiniões religiosas, a sua privatização através de um processo que ligado aquele da decisão política, aumentando a esfera da liberdade dos cidadãos.

Em segundo lugar, a modernidade produziu formas específicas de intolerância, relacionadas ao que Zygmunt Bauman  chamou de síndrome do jardineiro: a ideia de que a artificialidade da ordem política permitiria a realização de um projeto para a reorganização de toda a vida social conforme um determinado projeto. Em outras palavras: há uma forma de intolerância normalmente ligada à obsessão moderna do projeto, à adoção de um projeto e a sua implementação completa e exaustiva. Ao contrário dos genocídios que marcaram a história da humanidade, os genocídios modernos têm um objetivo, fazem parte de um projeto maior que visa à construção de uma sociedade melhor e radicalmente diferente. São instrumentos de uma ambição exclusivamente moderna, ligados à perfeição social e intra-histórica. Claro, a modernidade política não conduz necessariamente aos genocídios do século XX e não se resolve com os mesmos, mas estes genocídios seriam impensáveis fora do horizonte moderno.

 

IHU On-Line - Qual é o nexo que une intolerância religiosa e decisão política?

Dimitri D’Andrea - O nexo é a relevância dos instrumentos do realismo político (da coerção política) de acordo com a responsabilidade da comunidade religiosa em relação ao destino das almas. A relação entre política e religião se interrompe onde a salvação deixa de ser "um fim alcançado através dos homens e para cada homem" (Max Weber ), ou aquilo que cada fiel — ou toda a comunidade religiosa — pode fazer para a salvação das almas dos outros homens sem qualquer ligação com os instrumentos de coerção e de imposição política. A tolerância é o caminho que se abre quando não se pode fazer nada para a salvação dos outros, ou o que é possível fazer é totalmente alheio aos instrumentos típicos da política. 

Suas nuances podem, no entanto, ser significativamente diferentes em relação à linha de argumentação que a baseia: no primeiro caso a tolerância assume tons predominantes da indiferença, no segundo, de cuidados e responsabilidade. Enfatizando a contribuição das seitas puritanas no nascimento da tolerância moderna, Max Weber queria enfatizar a marca da indiferença que a define. Sua tese é que a tolerância moderna decorre do radicalismo religioso, não do relativismo: do entrelaçamento entre a obsessão sectária pela pureza e a indiferença para com o destino das almas dos outros homens, desde sempre condenadas por decreto inescrutável à danação. Há, portanto, na tolerância dos modernos uma exigência de liberdade essencialmente antipolítica — que consiste no desejo de não ser forçado a obedecer às ordens contrárias à sua consciência —, mas há também um componente de indiferença em relação ao destino dos outros, uma desresponsabilização e um desinteresse pelo destino dos outros.

 

IHU On-Line - Em que aspectos a vontade de verdade e um paradoxal relativismo são o esteio da intolerância?

Dimitri D’Andrea - Não concordo com a tese de Assmann. Eu não acho que a busca da verdade tenha um potencial bélico em particular. Acho, sim, que a intolerância tem a ver com o núcleo inegociável da identidade e que a rejeição mesmo violenta do outro está ligada à percepção de uma ameaça para algo que não estão dispostos a renunciar. Somos intolerantes diante de algo que coloca em discussão não necessariamente a nossa verdade, mas na maioria das vezes um valor em que acreditamos, um modo de ser ou de tratar os outros que consideramos indispensável.

O relativismo, em todas as suas formas possíveis, parece-me, no entanto, muito longe da intolerância. A não ser que nós também não compreendamos a indiferença, ou a convivência imunizada entre diferentes manifestações de intolerância. Eu acredito que a indiferença e a intolerância devem ser, pelo contrário, distinguidas precisamente pelo o que eu vejo presente na intolerância, talvez de forma dramática, trágica, contraditória, exatamente aquela dimensão do interesse e responsabilidade para com a alteridade que na indiferença não está presente.

 

IHU On-Line - Em termos globais, quais são as expressões máximas dessa intolerância? Como podemos compreender o silêncio e a indiferença com os quais a maior parte da sociedade reage a tais episódios?

Dimitri D’Andrea - Permanecendo no âmbito da intolerância religiosa é inevitável pensar nas várias formas de fundamentalismo que proliferam em diferentes contextos religiosos. E, claro, em primeiro lugar, às formas radicais do islamismo político em escala local e global. Em relação a essas manifestações a política parece estar ausente. Por um lado, é, na verdade, ensurdecedor o silêncio e a indiferença da opinião pública quando acontecem fenômenos ou eventos que não envolvem direta ou indiretamente os interesses dos cidadãos (como no caso do ataque à redação de Charlie Hebdo  ou dos fenômenos migratórios ligados à guerra no Iraque e na Síria); por outro, quando as crises ocorrem e nos envolvem diretamente, a tentação mais forte é recorrer aos instrumentos clássicos do realismo político (guerras, atentados, etc.). No meio, no terreno do diálogo e do acordo, da mediação e da resolução diplomática, mas também em relação ao apoio dos processos democráticos e da sociedade civil e da ajuda econômica, absolutamente nada.

 

IHU On-Line - Em que sentido a igualdade política e a diferença cultural podem se harmonizar entre si?

Dimitri D’Andrea - No mundo global e nas sociedades contemporâneas, o desafio é pensar em igualdade sem aprovação, sem assimilação. Precisamos pensar a igualdade em termos de igual respeito e iguais oportunidades. Claro, a integração não é apenas um fato cultural, e as políticas custam muito. Nos países de crescimento lento, as oportunidades são sempre mais escassas e os recursos financeiros para as políticas de integração cada vez mais reduzidas.

 

IHU On-Line - Em que medida a juridicização/positivação dos comportamentos com vistas a disseminar uma cultura de tolerância é um recurso limitado e até mesmo ingênuo para refrear os comportamentos violentos e intolerantes?

Dimitri D’Andrea - Não acredito na utilidade das proibições legais no combate à intolerância. Na Itália, na esteira do que já foi conseguido em outros países europeus, tem se discutido há cerca de um ano sobre uma lei contra a negação (contra as teorias e opiniões que negam a realidade histórica do Holocausto). Eu acho que proibir as opiniões e as teorias intolerantes através de leis seja, muitas vezes, prejudicial: termina induzindo um desengajamento da militância civil contra todas as formas de discriminação e preconceito que parece a única garantia crível contra a recorrência de teorias aberrantes. O caminho da luta contra a intolerância parece-me ser o da máxima liberdade de opiniões (todas) e ao mesmo tempo a máxima vigilância civil e os testemunhos pessoais. 

 

IHU On-Line - Pode-se falar numa exaustão do modelo de Estado-Leviatã ? Caso sim, como esse esgotamento se expressa em formas políticas intolerantes?

Dimitri D’Andrea - Leviatã não desapareceu, mas o "deus mortal," de Hobbes  tornou-se um cão de guarda mais modesto. Algo que se tornou cada vez mais impotente diante de grandes desafios (aquecimento global, armas nucleares) ou às grandes potências (econômicas e financeiras) do mundo global, mas que ainda mantém uma notável capacidade de controle das fronteiras e da circulação de pessoas. Em outras palavras: a soberania ainda é o princípio organizador do espaço político em uma escala global, mas o seu exercício deixou, definitivamente, de coincidir com a efetiva autonomia decisional dos países.

Por outro lado, se difundiram em escala regional e global, instituições que tentam — também do ponto de vista jurídico/normativo — limitar os direitos dos Países em matérias importantes, como por exemplo, o respeito aos direitos humanos. Em geral, eu não acho que o enfraquecimento do Estado produza intolerância. O que estamos enfrentando é um cenário onde aumentam a mobilidade e a mistura de povos e culturas. As dificuldades que a política encontra ao responder aos desafios resultantes não estão relacionadas especificamente ao país. A União Europeia, ante a crise humanitária e os fenômenos migratórios ligados aos eventos no Oriente, está dando, se possível, um espetáculo ainda pior do que o dos países nacionais.

 

IHU On-Line - Em que sentido essa exaustão do Estado-Leviatã aponta para novas formas da política e da soberania em nosso tempo?

Dimitri D’Andrea - O leviatã está cada vez mais enredado na rede da governança global. A soberania, mesmo onde ela sobrevive do ponto de vista jurídico, é cada vez mais um recurso a ser utilizado em um contexto competitivo/cooperativo, ao invés da titularidade de uma autonomia real nas decisões políticas. Como Sloterdijk  argumenta, vivemos agora em um mundo saturado, em um mundo cheio onde a interdependência fez com que todos os seus atores sejam menos livres. Governança significa governo através da coordenação e negociação, na ausência de um tertius super partes que exerça a governança. 

Nós testemunhamos, não somente a construção de um direito acima e fora dos países, não somente a pluralização das fontes do direito, mas mais especificamente um processo inicial e incoerente de constitucionalização do direito internacional na ausência de instituições políticas representativas. Em comparação ao direito da política, o direito sem representação parece apresentar uma maior aderência ao contexto, à contingência, ao perímetro especial do acordo e da negociação. No entanto, não temos dúvida de que se trata de uma forma de regulação que mostra todas as suas limitações, onde escolhas difíceis e coordenadas seriam mais necessárias, como no caso das políticas contra as alterações climáticas. ■

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