Edição 470 | 17 Agosto 2015

A barbárie da financeirização e a crise do RS

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João Vitor Santos e Leslie Chaves

Para Lucas Henrique da Luz, o que há de bárbaro na crise gaúcha é a forma como o Governo do Estado responde aos dilemas gerados a partir da lógica do capital

Com objetivo de mergulhar nas questões de fundo do momento crítico pelo qual passa o Estado Rio Grande do Sul, o professor Lucas Henrique da Luz traz ao debate o conceito de financeirização. Ele entende que a crise econômica é, em alguma medida, a manifestação dessa ideia que toma o capital como forma de governamento. No entanto, antes de discutir o conceito, busca entender os fatores que levaram às decisões que vêm sendo tomadas no governo de José Ivo Sartori. “Temos como pano de fundo uma crise do Estado do RS em termos econômico-financeiros. Porém, para além, parece-me que existem quatro fatores que auxiliam a pensar o que temos ‘por trás’ da estratégia dos cortes”, explica em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

O primeiro fator trata do ethos, da persona, de José Ivo Sartori. Em seguida, Lucas entra nas estratégias de gestão. É o que se chama de “espetáculo do caos”. A espetacularização do caos visa ao medo, e não ao caos fértil”, explica. Essa lógica de gestão é a que leva ao terceiro fator, denominado como “estratégia do medo”. “A estratégia do governo flertou com endividamento e com segurança. A adoção destas medidas deixou a sociedade em um clima de tensão”. E, assim, chega ao fator que trata da inabilidade das instituições em lidar com o problema, desvendando uma “gestão da barbárie”. “Esse caos que cria ou aumenta um ‘estado de exceção’, que justifica a adoção de medidas ultrapassadas, é uma verdadeira gestão da barbárie”, dispara.

Lucas Henrique da Luz é graduado em Administração com habilitação em Recursos Humanos, mestre em Ciências Sociais Aplicadas e doutorando em Administração pela Unisinos, tendo realizado estágio doutoral em Ciências da Informação e Comunicação na Université de Poitiers, França. Atualmente é professor e um dos coordenadores do curso de Administração da Unisinos e integrante do Intituto Humanitas Unisinos - IHU. Entre suas publicações destacam-se os livros O Profissional de RH: por uma visão integrada (São Leopoldo: Unisinos, 2011), do qual foi um dos organizadores, e Formação Profissional do Administrador: reflexões à profissão e ao planejamento de carreira (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010) e Cooperativismo de Trabalho: Avanço ou Precarização? Um estudo de caso (Cadernos IHU, nº 20).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como compreender a estratégia política do Governo do Estado do Rio Grande do Sul para enfrentar a crise financeira?

Lucas Henrique da Luz - “Por detrás” dessa estratégia podem ter muitas coisas, muitos interesses e lógicas que, quem sabe, somente serão “revelados” ao longo de muito tempo. Ou seja, partindo do paradigma da complexidade , temos sempre um limite em compreendermos o que está ocorrendo, para onde os caminhos podem ir e isso, ao invés de barrar a reflexão e os debates, deve intensificá-los.

Objetivamente, nas entrelinhas da estratégia do governo gaúcho há uma mescla de questões. Tanto questões objetivas, racionais, como questões subjetivas, “irracionais” não no sentido de descabido (apesar de o ser), mas, sim, como algo que foge à compreensão mais objetiva, ao fato em si. Temos como pano de fundo uma crise do Estado do Rio Grande do Sul em termos econômico-financeiros . Faltam recursos, o Estado historicamente se endivida e gasta mais do que arrecada. Não podemos negar este fato. Porém, para além desse fator, me parece que existem quatro fatores que auxiliam a pensar o que temos “por trás” da estratégia dos cortes.

O ethos do atual governador

Primeiro, apesar de não conhecer profundamente e pessoalmente o governador José Ivo Sartori, parece-me importante pensar um pouco da sua narrativa. A racionalidade de Sartori tem muito de uma racionalidade da região da Serra Gaúcha (onde nasci e região que visito seguidamente), uma região extremamente empreendedora. Esta racionalidade me parece adequada, e pode funcionar bem para o empreendimento privado, principalmente em suas fases iniciais, com união da família que, mesmo brigando e discutindo muito entre si, nas dificuldades e nos negócios se une para crescer.

É uma racionalidade que não compreende e que não gosta de dívida, onde é necessário poupar para investir depois. Isto como princípio do associativismo e do cooperativismo que acompanhou a colonização da região pelos imigrantes italianos e alemães, por exemplo. Enfim, isso que coloco é muito intuitivo, não tenho um estudo sobre. No entanto, creio que a racionalidade de gestão que minimamente habita o pensamento de Sartori é boa para um tipo de empreendedorismo privado e ou para um ente público com dinheiro, com boa arrecadação, como a cidade de Caxias do Sul (tenho minhas dúvidas mesmo neste caso).

Porém, esta racionalidade não serve para um estado nas condições do nosso. Na Serra Gaúcha, pais de amigos meus que estavam iniciando seus negócios (negócios pequenos da família, muitas vezes no interior das cidades, como fábricas de esquadrias, agroindústrias, que depois tornaram-se grandes empreendimentos), passaram a privar os filhos da possibilidade de comprar um lanche, de fazer um passeio com a turma da escola, pois era necessário economizar para investir. Lembro ainda da minha vó (nona) que, ainda hoje, com 86 anos repete: “il buon cristiano pensa ancora per domani” . Ou seja, uma racionalidade dos negócios e com influências religiosas que tem a dívida como algo ruim, feio, como sentimento de “devedor” mesmo. Fato que serve muito para a lógica devedor/credor, mas não serve para gerir um Estado.

Por isso, talvez, na racionalidade de Sartori, atrasar salário é um esforço necessário à família “Rio Grande” neste momento, para prosperar depois. Ainda que, no depois, pela pressão popular, diminua o atraso da segunda parcela e tente vender isso como conquista. E, aqui, quem sabe funcione aquela lógica política partidária bem batida, de que inicialmente eu mostro o caos, mostro que tudo está perdido. Então, se eu salvar algo ao longo do mandato, tento vender como algo heroico.

O espetáculo do caos

Nessa direção, aparece o segundo — e para mim principal motivo — da estratégia dos atrasos, principalmente dos salários e do atraso nos repasses para áreas como saúde, onde a repercussão é alta. Estratégia que pode ser denominada como “espetáculo do caos”, na linha da sociedade do espetáculo . As caravanas feitas pelo interior do RS para mostrar a “real situação do estado”, que muitos leram como uma tentativa de culpabilizar o governo anterior por tudo que ocorre de errado e pode até ser lida nesse sentido , foram esquetes do teatro do que viria depois. O “espetáculo do caos”, o “espetáculo da crise” é baseado em fatos reais, mas tem uma amplificação, uma caricaturização própria de espetáculos. Isso fica claro nas coletivas de imprensa, no tom de vitimização e heroísmo que tenta passar o secretário da Fazenda, Giovani Feltes .

Aliás, o secretário da Fazenda é o que mais fala nas coletivas de imprensa. E, no tom do próprio governador, penso que se está lidando com a lógica do espetáculo e da sociedade do riso. Acaba gerando medo para além de expor a situação real. Ou então, o que explica a não tomada de medidas em oito meses, deixar estourar o problema. Assim para, só depois disso, pensar em pacotes, em conversa com poderes e, nesse tempo todo, não questionar a dívida com a União — nada de medidas(?).

O atraso de salários, o não pagamento da dívida com a União e a ida do governador a Brasília, que sabemos que não teria resultado, são cenas deste espetáculo. Dirão alguns: não tinha como pagar a dívida da União, era ela ou a segunda parcela dos salários. Certo, deixe de pagá-la, mas ao invés de ir a Brasília e fazer cena com isso, assuma postura questionadora, conteste a dívida judicialmente, peça revisão, faça algo diferente. A espetacularização do caos visa ao medo, e não ao caos fértil, o caos que gera experimentação. Medo é algo que paralisa e coloca as únicas soluções viáveis nos trilhos não de caminhos novos, mas, sim, no aumento de impostos, nos cortes de recursos em áreas essenciais, nas privatizações. O medo impede de pensarmos para além de receitas velhas, que sabemos, resultarão em mais problemas ali adiante, na linha de um austericídio.

A estratégia do medo

O terceiro fator está ligado a este espetáculo do caos, principalmente com o atraso dos salários. A estratégia do governo flertou com endividamento e com segurança. Ou seja, mexeu em duas questões muito relevantes aos processos de subjetivação, atualmente. O medo do não pagamento dos salários e de bloqueios de ainda mais recursos do estado pelo não pagamento de dívidas do RS. 

A adoção destas medidas deixou a sociedade em um clima de tensão, de menos segurança ainda. Sem saber se as crianças teriam aulas, se o policiamento existiria, se cirurgias e outros procedimentos de saúde, ainda que muitas vezes precários, continuariam sendo realizados. Mais ainda: deixou servidores sem saber se teriam recursos para manter suas vidas, seus compromissos. Mexeu com securitização.

A insegurança, o medo gerado, são formas de pressão para aprovar medidas ultrapassadas para vencer a crise, na base do “não tem alternativa”. Tais formas só colocam a lógica da financeirização a serviço das finanças, de poucos, aprisionando ainda mais o Estado.

O limite das instituições

E, por fim, a crise revela uma total incapacidade das nossas instituições em resolver a complexidade do momento atual. Vejamos fatos que mostram isso: 1) ouvir, depois de oito meses de um governo, de salários atrasados, de repasses não feitos em áreas relevantes, que se monta um grupo de trabalho do Executivo, Judiciário e Legislativo para pensar a questão; 2) aumentos de salários de agentes políticos e de deputados, enquanto servidores e a maioria das categorias têm a crise como motivo para receberem zero aumento e, em muitos casos, nem reposição conseguiram ter; 3) total ausência de comunicação, de auscultar a sociedade em relação a tudo que passa, tentando até mesmo tirar plebiscitos das privatizações; 4) Governo Federal dizendo que precisa entender melhor a situação para poder dizer algo; entre outros. Enfim, são fatos que demonstram que nossas instituições estão longe de apontar caminhos e longe de representar alguém.

A gestão da barbárie

Esse caos que cria ou aumenta um “estado de exceção”, que justifica a adoção de medidas ultrapassadas, é uma verdadeira gestão da barbárie. Usamos de receitas que parecem poder resolver um pouco a situação financeira do estado (aumento de impostos, privatizações, mais endividamento), mas não mexemos em questões estruturais (o medo nos paralisa — isso não seria seguro). Por isso, o que se opera é gestão da barbárie.

Não adianta aumentar impostos se a lógica é que quem mais os paga na proporcionalidade são pessoas de menos renda e se não se consegue cobrar os devedores históricos do Estado. Nem mesmo temos acesso para saber claramente quem são e o que está sendo feito para cobrá-los. E esse imposto, ao invés de potencializar algo diferente, capaz de mexer com desigualdades, com serviços à população, acaba sendo investido para pagar juros. Isto reforça a lógica do rentismo denunciada por Piketty . Ou seja, o que concentra mais renda ainda na mão dos que mais têm capital, propriedades, aqueles que, logo ali na frente, em outra crise, vão emprestar mais dinheiro, aumentar juros, realimentando este ciclo.

Também não adianta propor privatizações sem realmente discuti-las, avaliar. E isso não apenas no sentido de quanto se pode arrecadar. Ora, não precisa ser gênio, é só sair um pouquinho da racionalidade estritamente econômico-financeira para perceber que privatizar a Fundação Zoobotânica  e a Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde  significa não apenas vender seus patrimônios, mas privatizar biodiversidade, genética e saúde. Abrir o capital da Banrisul Cartões significa entregar o nobre do negócio financeiro, que usa da circulação, da polinização , potencialmente gera muito valor, para alguém. Sim, vamos entregar menos de 50%, o estado ainda controlará. Certo, mas pagará dividendos, dividirá os ganhos com os investidores. É como pagar juros sobre empréstimos, coisa que o governo diz que não dá mais para fazer. É, novamente, fortalecer a lógica rentista.

Prisão no sonho alheio

Enfim, as medidas são ultrapassadas e não pensamos diferente pelo medo que nos paralisa, sendo que é o estado do caos criado. O espetáculo do caos contribui para isso. Vale destacar o que diz Zizek , ao citar Deleuze : “Si vous êtez pris dans le rêve de l’autre, vous êtez foutus” . Assim, podemos perceber que os estados e nós estamos dentro do sonho dos outros, dentro do sonho dos investidores e cobradores de juro, dos credores, presos pela lógica da dívida e da securitização.

Em nome de uma suposta segurança, por medo da experimentação e por uma lógica finalística, que quer ter as metas e resultados definidos sempre antes de viver os processos, acabamos impossibilitados de sonhar, de tentar, de experimentar. É a lógica que o Governo Sartori  tem usado para “enfrentar” a crise atual, a lógica da espetacularização, que só reforça esse aprisionamento.

 

IHU On-Line - Em que medida a situação financeira e política do Rio Grande do Sul pode ser associada à ideia de financeirização? De que forma o Estado é envolvido nessa lógica? Que relação é possível estabelecer entre o atual momento do RS com a situação de crise no Brasil e no mundo?

Lucas Henrique da Luz - Primeiro, devemos afirmar um pouco do que queremos dizer quando falamos “financeirização”. A financeirização, com base em Boutang , é um paradigma produtivo que permeia toda a sociedade, seu ser e fazer, trazendo um capitalismo que descobriu o “novo continente da polinização humana” . Ou seja, um paradigma produtivo que se utiliza da potência das interações da multidão humana, das interações entre as singularidades. Interações que não se dão apenas em espaços “produtivos” tradicionais como a fábrica ou outras organizações/instituições, como é (ou foi) no fordismo. Refiro-me a interações que ocorrem principalmente na circulação em geral, nos espaços das metrópoles, das redes físicas e virtuais. É um paradigma produtivo que utiliza das pessoas capacidades como: cooperar socialmente, estabelecer comunicações com os diferentes, agir autonomamente e de forma criativa, dentre outras, se apropriando dessas capacidades numa verdadeira produção biopolítica que se apossa, em verdade, do agir em comum. (NEGRI; COCCO, 2008).

E isso impacta a lógica da sociedade como um todo, uma vez que o paradigma produtivo não é algo apenas relevante à dimensão econômica e/ou à dimensão material das pessoas. Na realidade, ele opera verdadeiras transformações sociais e antropológicas. Significa dizer, então, que a financeirização impacta a dimensão mercantil, mas também a não mercantil, influenciando a produção do meio vivo em geral. Impacta a biosfera e a noosfera — que cobre todas as atividades mentais, culturais, espirituais, como afirma Boutang. Segundo o mesmo autor, ao se utilizar dessa lógica de criação e apropriação do valor a partir das interações, da circulação, a financeirização adquire potência produtiva muitíssimo maior que lógicas mais mecânicas de produção, como a fordista. E, ainda, precisa das tecnologias de informação e comunicação e das finanças para sua alavancagem. Precisa da lógica crédito e débito, da rentabilidade pelo endividamento para multiplicar o crédito. Com esta lógica de produção, temos um governo das organizações que lidam com “circulação e finanças”, com o imaterial, com os fluxos. Os exemplos são Google, Facebook e, é claro, os bancos e operadores do mercado financeiro, do mercado de capitais.

A financeirização e os governos

E o que tudo isso tem a ver com a crise do Rio Grande do Sul e que semelhanças pode ter com a crise Grega? De maneira mais abstrata, pode-se dizer que os estados e suas instituições não compreenderam e/ou não conseguem alcançar ainda esta lógica. Não conseguem minimamente regular e fazer frente a esta lógica da financeirização e das finanças, que não são sinônimos. Pelo contrário, os Estados, e o Rio Grande do Sul não está fora disso, acabam operando por meio desta lógica e reforçando o paradigma do endividamento e da securitização, produzindo processos de subjetivação que fomentam estas subjetividades — do endividado e do securitizado  —, reforçando ainda mais a incapacidade de se usar esta lógica da financeirização em prol do comum. Isso cria uma economia que mata , que (des)governa as vidas e coloca o(s) estado(s) como “gestor” da barbárie.

Tanto na Grécia, como na realidade do Brasil, quanto no Rio Grande do Sul, o Estado segue funcionando com padrões de regulamentação, de taxação, de operação que não conseguem cobrar/tributar/compartilhar o verdadeiro valor gerado pela lógica da polinização, pela financeirização, colocando-a a serviço da vida. Reforça o domínio e a apropriação daquilo que é comum (a riqueza do Planeta e das interações é comum) por uma pequena parcela. Isso pode ser visto se nos apropriamos dos valores que o Rio Grande do Sul paga de juros das suas dívidas; ao ver que o valor que o Brasil gastou com juros nos últimos três anos daria para pagar o programa Bolsa Família, que atende a 14 milhões de famílias, durante 38 anos, como mostra Benjamin Steinbruch, empresário, diretor-presidente da CSN ; ao ver que a Grécia e toda a força da multidão foi barrada (ao menos até aqui) pela lógica do endividamento e do pagamento de juros em detrimento de condições de vida para o seu povo.

Financeirização e o RS 

No Rio Grande do Sul, o atraso do pagamento da dívida com a União está atrapalhando repasses que resultariam em serviços de saúde, em transporte escolar. Há, ainda receio de que não se tenha dinheiro para pagar combustível para segurança pública. Ora, dá para ver que a lógica da financeirização, no momento, aprisiona os estados, coloca-os a serviço das finanças e não da vida. E, isso ocorre no Rio Grande do Sul, no Brasil, na Grécia e, quiçá, na nossa civilização atual.

Omissões

Os Estados e, eu diria, a sociedade em geral, a própria academia se esquecem da importância da economia política, da ética econômica, das dimensões consideradas menos “científicas”. Devemos admitir que falhamos muito ao não conseguir desenvolver a ética econômica, a política, como forças do comum. Forças capazes de colocar tecnologias de comunicação e informação e o capitalismo cognitivo a serviço da vida.

Por isso, o que resta são Estados endividados, sem poder para decidir e que, independente de questões morais como a corrupção e outros problemas que podem ser relevantes, atualmente têm incapacidade de governar. O que temos é uma legitimação do verdadeiro austericídio, tanto na Grécia, como no Brasil, como no Rio Grande do Sul, com suas particularidades.

 

IHU On-Line - Fala-se que o RS vive uma crise econômica. Mas como entender a atual situação do Estado para além da questão econômica?

Lucas Henrique da Luz - Penso que a situação do Rio Grande do Sul pode e deve ser entendida a partir do econômico, sim, mas que também precisamos olhar para aspectos culturais, históricos, políticos. Não sou especialista nestas questões, mas pelo que li a respeito, percebo que construímos uma cultura que tem muita dificuldade de se abrir ao outro, de ouvir o diferente, de não pensar que “são as nossas façanhas que devem servir de modelo a toda terra”. Operamos mais na base da polaridade, da desconfiança e de polarizações do que na base do entendimento, do acordo, da confiança. E, numa lógica de circulação, do múltiplo enquanto gerador de riquezas, gerador de valor, da polinização, do capitalismo cognitivo, conviver com diferentes modos de existência, aprender com o outro, com outras narrativas, é algo fundamental. Como mostram Negri e Hardt (2005),  no paradigma produtivo atual, produzir significa, cada vez mais, construir comunalidades  de cooperação e comunicação. Nesse sentido, não sei se nosso modo de ser, nossa “cultura gaúcha”, contribui.

Mesmo em questões de nossa história, não valorizamos outros modos de existência. Não reconhecemos a relevância dos índios para o Estado, por exemplo. Sei que isso não é generalizado, mas é muito forte e faz com que, em geral, nos esqueçamos da presença indígena do passado e da atual, das experiências comunais que aqui existiram, bem como não olhemos para outros povos, pouco trocamos com nossas fronteiras. Para usar a lógica e os termos de Latour (2012) , parece-me que temos muitas dificuldades em exercer o papel de diplomatas, no sentido de aproximarmos os diferentes modos de existência.

Isso tudo contribui para o momento atual, para a situação em que chegamos. Cria uma visão muito parcial da realidade. Pensamos ter uma verdade, a nossa verdade, muitas vezes colocadas em dois polos — isso ou aquilo. Isto dificulta um diagnóstico mais complexo da nossa situação enquanto Estado. Dificulta entendermos nossas debilidades e nossas potencialidades.

Por exemplo: ouvi um deputado estadual dizer que privatizar a Fundação Zoobotânica não é algo que deva preocupar, pois, primeiro: o Estado não deve ficar cuidando de bichos. E segundo: poucas pessoas visitam o Jardim Botânico em Porto Alegre (ouvi isso num debate em programa de rádio no dia 13/08/2015). Na afirmação, vejo esta racionalidade dona de uma verdade única e limitadíssima aflorar. Mais do que isso: percebo ainda mais fortemente que nossas instituições “democráticas” estão falidas. Elas são incapazes de captar o que emerge da sociedade, da horizontalidade. Seja através de maiorias e alguns consensos, seja pelos tensionamentos, pelo que emerge minoritariamente e/ou nos embates e encontros dos diferentes. Assim, são incapazes de ir para além das mesmas (não) soluções de sempre, já citadas nas outras questões. Estamos órfãos de projetos de país, de estado.

 

IHU On-Line - O que mais o atual cenário, político e econômico, do Rio Grande do Sul diz sobre a atual crise da democracia e suas instituições? De que forma a ideia de “reinvenção da democracia”, orientando as instituições democráticas para ideia do Comum, pode inspirar alternativas para superar crises como a do RS?

Lucas Henrique da Luz - O cenário político e econômico do Rio Grande do Sul não pode ser visto como algo isolado, como diferente do cenário brasileiro e de outras partes do mundo. Ou seja, o atual cenário mostra que nossas invenções democráticas não foram capazes de domar as finanças e não conseguiram dar à financeirização um rosto humano, colocá-la a serviço do bem comum, da vida em suas diferentes manifestações. Não fomos capazes disso ainda. Claro que cada contexto tem suas peculiaridades, mas, de forma geral, o contexto atual do Rio Grande do Sul, assim como o contexto brasileiro e de movimentos ao redor do mundo, revelam uma crise da democracia e suas instituições.

A lógica estado/sociedade, as formas democráticas de governo utilizadas, do socialismo ao capitalismo, mostraram-se e se mostram atualmente, em grande parte, esgotadas. Ou, ao menos, precisando ser repensadas. Com base em Negri e Hardt (2014), pode-se dizer que as formas de planejamento e gestão do socialismo sucumbiram diante da ineficácia de práticas marcadas pela centralização do poder de tomada de decisão — uma estrutura burocrática que manteve a separação e o isolamento “daqueles do centro”. E o planejamento e o governo capitalista têm revelado redução nos poderes e capacidades do Estado, bem como sua progressiva retirada do campo social. Prova disso é que as despesas estatais só crescem e, ao mesmo tempo, os gastos em bem-estar social têm se reduzido. Já o Legislativo, que deveria ser fonte de reformas que permitissem a aproximação do estado da vontade geral ou dos anseios e tensionamentos da multidão, parece cada vez mais esvaziado das suas funções constitucionais. E, junto com os partidos e o próprio Judiciário, não tem conseguido representar a sociedade e suas posições na adoção de soluções ou ações que pudessem amenizar problemas. 

Falência da representação

Problemas estes que estão se tornando cada vez mais complexos. E, para além dos problemas clássicos de representação, existem aqueles da dívida pública, das migrações, das políticas energéticas, das mudanças climáticas, etc. Diante dessa complexidade, as capacidades de representação deveriam se estender e se tornar mais especializadas. Na realidade, porém, essas capacidades representativas se desvanecem. Construímos um sistema parlamentar infestado de lobbies, que demonstra ser totalmente inadequado para essas tarefas.

Ao mesmo tempo, a participação democrática efetiva fica cada vez mais dificultada. Os partidos, por exemplo, por sua lógica, são mais excludentes que includentes. Excluem tudo o que é diferente daquilo que “pensam” — ou daquilo que lhes interessa pensar ou que dizem pensar — e, assim, tornam-se imobilizados, esvaziados em relação a uma democracia efetiva. Limitam-se a negociatas, alianças em nome da tal governabilidade, e acabam rendidos pelas finanças.

Soma-se a isso o fato de as nações modernas serem um problema à participação, uma vez que elas vão se tornando cada vez mais complexas e extensas, dissipando engajamento e sentimentos comuns dos cidadãos, tirando-lhes o gosto e a capacidade de participar. Assim, acaba se colocando as decisões sobre a vida, nas mãos de “especialistas”, sacerdotes da tecnocracia. É uma falência da democracia de forma mais global, que aparece na Grécia, no Brasil e no Rio Grande do Sul. Nesse último, todas estas questões ficam muito claras. Começa pelo fato de termos eleito um governo que em nenhum momento apresentou de fato algum tipo de esboço de projeto. Talvez por ocupar este não lugar, acabou eleito. Depois, se estende pelos primeiros meses de governo e aparece claramente na patética entrevista do governador após uma reunião de três horas com os demais poderes do estado.

Saindo da reunião, o governador concedeu sete minutos de fala para a população, via uma coletiva de imprensa (pelo que parece propositalmente) bagunçada, onde não se disse nada. Ou seja, a democracia atual, não é diferente no Rio Grande do Sul, precisa apenas das suas instituições. Elas não representam mais nada e ninguém, se autorreproduzem e não mais (re)produzem, representam a sociedade. Não precisam se comunicar com a multidão. É como se dissessem para nós que não precisamos nos preocupar, pois os especialistas dos três poderes nos tirarão da situação que estamos. E tudo isso culmina com o envio de medidas paliativas, que não resolvem o problema e são ruins para o Estado. São mais do mesmo.

Reinvenção da democracia 

Nesse sentido, o desafio para o Rio Grande do Sul e para a democracia no Brasil, e quiçá desafio de maneira mais geral, está em reinventar a democracia e suas instituições. É parar com polarizações que já não dizem mais nada (esquerda e direita), quebrar o território institucionalizado da participação (partidos, gestores, especialistas, técnicos) devolvendo esta participação ao comum, aos commoners (pessoas do comum). Precisamos usar a lógica da financeirização, da polinização, para isso. 

A partir das experiências produtivas que estão cada vez mais baseadas no comum, dentro do paradigma pós-industrial, pós-fordista, tem-se que buscar as possibilidades de emergência de ação política. Buscar a potência para produzir iniciativas de efetiva participação e construção dos rumos das cidades, regiões, países, a partir da produção do comum, do ser em comum, para além das já existentes iniciativas na dimensão pública e privada. Segundo Negri e Hardt (2005), “se estendermos as estruturas de tomada de decisão e de participação política no sentido da produção, poderemos potencialmente alcançar um escopo muito maior e trazer para as estruturas políticas uma parcela muito maior da sociedade. Dizendo de outra forma, as estruturas de relação e comunicação criadas na produção biopolítica podem ser adaptadas para estender a forma de assembleia a um nível social amplo”.

Porém, para isso, precisamos vencer o medo, a lógica de que tudo o que se invente, tudo o que se tenta, precisa ter resultados definidos a priori. Precisamos de uma lógica de experimentação e, penso que isso não terá espaço até que não experimentemos um caos fértil. Em outras palavras, talvez isso só seja possível a partir da coragem da desesperança. Uma política emancipatória radical, uma efetiva democracia tem como desafio conseguir “levar as coisas para além”. Ou seja, após a primeira etapa entusiasta acabar, como dar o passo seguinte sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária”. O desafio é de construir processos de liderança e instituições do comum, que se mantenham abertos, em diálogo com a potência do horizontal — mantê-las em caráter não normativo, mas sim de experimentação. Infelizmente, pelas propostas do Rio Grande do Sul e pela “Agenda Brasil” , em nosso país e Estado estamos na contramão disso. 

 

IHU On-Line - O ajuste fiscal, a austeridade imposta, é a receita para uma ideia de solução que não dá conta de toda a complexidade de crises como a vivida pelo Estado? Por quê? E como pensar em alternativas?

Lucas Henrique da Luz – A lógica da austeridade, que se concretiza em propostas como a do ajuste fiscal, das privatizações, aumento de tributos, dentre outras questões, não dá conta da complexidade da crise, uma vez que: 1) reforçam a lógica das finanças e aprisionam ainda mais o Estado, a economia, a economia política, a própria política à lógica do rentismo, do capital financeiro, de uma financeirização que a eles serve, e não à vida; 2) as medidas utilizadas apenas gestionam a barbárie, não são medidas que permitem pensar em novos cenários, são pequenos remendos que fazem muitos sofrerem, na lógica do “é a única alternativa possível”, “se não for assim o caminho é perigoso”, “não há outra alternativa” (quando perigoso é o contrário, é seguir com este tipo de mesmismo); 3) tem todas as suas medidas, suas mensurações, indicadores voltados para uma realidade que subsiste, que não é o que dá a direção do nosso ser em comum hoje — usa PIB, déficit, balança comercial, custeio, etc. — medições de uma época que está findando e não consegue avançar em relação ao novo, à valorização, por exemplo, da biodiversidade, dos bens comuns, dos afetos, da diversidade de modos de existência; 4) no contexto bem específico do RS, há uma espetacularização da crise que gera medo, e medo imobiliza e limita inventividade, possibilidades; 6) não se sabe qual é ou quais são os projetos de Brasil e de RS; 5) o diagnóstico que se faz e os debates sobre a crise do RS e no Brasil, também, acabam em polarizações reducionistas, ódios, moralismos. Enfim, poderíamos enumerar uma série de coisas que estão no lastro das reflexões feitas nas questões anteriores.

Alternativas

Como alternativas para superar a crise: a) rever e questionar legalmente e socialmente - via potência do comum, da multidão, via redes e ruas - a legitimidade da dívida e os juros – sendo que isso vale inclusive para o absurdo de juros que são pagos em relação aos depósitos judiciais, concentrando renda nesse poder; b) melhorar mecanismos de fiscalização dos sonegadores e das contrapartidas dos incentivos fiscais, com amplo conhecimento de quem são os devedores do estado e das contrapartidas pendentes; c) criar mecanismos legais no sentido de que pessoa jurídica (PJ) que deve para o estado e não tem como pagar, gere a responsabilização dos seus representantes legais quando estes possuírem patrimônio superior a 500 mil reais (poder-se-ia discutir este valor), limitado ao excedente deste valor; d) análise das aposentadorias superiores a 20 mil reais (poder-se-ia discutir este valor) no sentido de validá-las ou de confiscar o valor que ultrapassa desse limite; e) diminuir drasticamente o número de deputados e de assessores; f) liderar movimento para taxação de grandes fortunas, de rendas de capital financeiro, de lucros das instituições bancárias e, ainda, rever tributação para que ela seja de fato justa, pague mais quem mais tem renda e patrimônio; g) criar mecanismos de controle relativo a atuação e ao orçamento dos poderes, principalmente o Judiciário e o Legislativo; h) facilitar a realização de plebiscitos, consultas e outros mecanismos de participação direta; dentre outros.

É claro que tudo isso são coisas que logo recebem o rótulo de impossíveis e, provavelmente, realmente o são. Porém, também é impossível não saber o dia que vai receber o salário, não ter o mínimo de serviços públicos, ter instituições democráticas que não dialogam com nada e ninguém e, ainda, voltar com velhas receitas que não funcionaram em lugar nenhum. Ou seja, não querem usar o caos criado/espetacularizado, o sentimento de medo, para impor velhas receitas, para defender que é inevitável que todos soframos e paguemos (e como sempre os mais "fracos" é que acabam sofrendo). Se existe caos, que ele seja fértil, que ele encoraje a novas experimentações, que ele seja criativo.

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Lucas Henrique da Luz - Sim. Nas respostas misturei questões mais teóricas, com coisas bem do cotidiano, abstrações com situações reais, intuições e constatações, o local com outros contextos. “Arrisquei” para vários “lados, direções”, mas acredito que isso seja válido hoje - a reflexão que busca sair dos rigorismos sem com isso perder a tentativa do “rigor”. Este último, entendido aqui como profundidade, como tentativa de olhar complexo, como olhar para o diverso e não se fechar no uno. Para mim isso é natural, é tentativa e não certezas. Esta mistura é academia, é universidade, que também precisa dar suas contribuições para a leitura do momento vivido.■

 

Leia mais...

- Cooperativismo de Trabalho: Avanço ou Precarização? Um estudo de caso. Artigo de Lucas Henrique da Luz publicado na 20ª edição do Cadernos IHU;

- A burguesia golpista de 1964. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 19-03-2014, no sítio do IHU;

- A contribuição da universidade na modelagem das relações de trabalho. Entrevista com Lucas Henrique da Luz publicada na IHU On-Line, edição 416, de 29-04-2013;

- Fórum Nacional de Economia Solidária. Um depoimento de Lucas Henrique da Luz, do IHU, Depoimento de Lucas Henrique da Luz publicado nas Notícias do Dia, de 29-06-2006, no sítio do IHU.

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