Edição 205 | 20 Novembro 2006

A psicologia do povo brasileiro

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IHU Online

A professora Dr.ª Eliane Fleck, do PPG em História da Unisinos, apresentou, no evento IHU Idéias, de 22 de agosto de 2002, o tema O homem cordial: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e no dia 8 de maio de 2003, a professora apresentou essa mesma obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasil, concedendo, nessa oportunidade, uma entrevista à IHU On-Line, publicada na edição nº 58, de 5 de maio de 2003.

Para comemorar os 70 anos da primeira edição do livro Raízes do Brasil, entrevistamos, por e-mail, a professora Eliane Fleck. Eliane comentou que o livro traça uma “psicologia do povo brasileiro”: “inserindo-se no debate nacional que vinha ocorrendo na década de 30 do século XX. Ao abordar um dos aspectos centrais do imaginário nacional e do caráter do homem brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda propôs uma ampla reflexão sobre os efeitos da tradição ibérica sobre a sociedade brasileira”, completa.

IHU On-Line - Como podemos fazer uma releitura do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, hoje? O que significa reler essa obra nos dias atuais?

Eliane Fleck -
Muitos dos comentadores da obra do historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda destacaram que um dos principais objetivos de Raízes do Brasil era delinear uma “psicologia do povo brasileiro”, inserindo-se no debate nacional que vinha ocorrendo na década de 30 do século XX. Ao abordar um dos aspectos centrais do imaginário nacional e do caráter do homem brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda propôs uma ampla reflexão sobre os efeitos da tradição ibérica sobre a sociedade brasileira. A questão posta em debate por Sérgio Buarque de Holanda, contudo, mantém-se atual. Afinal, a nação do homem cordial, da natureza privilegiada, da sensualidade latente e do histórico pacifismo é também aquela que atinge índices assustadores de violência, de desigualdade social e de discriminações de toda ordem. A releitura desta obra nos oferece não só a possibilidade de desvendar os temas, os influxos teóricos e os percursos da produção acadêmica dos intelectuais brasileiros da “geração de 30”, como também de avaliar a permanência e/ou atualização de uma estrutura mental de longa duração, especialmente, em relação à cordialidade e à debilidade política e moral. É interessante ressaltar que o próprio autor, Sérgio Buarque de Holanda, empreendeu uma releitura da primeira edição e efetuou mudanças nas sucessivas edições de Raízes do Brasil, acrescentando notas com o objetivo de enriquecer seu argumento com dados e suprimindo passagens que celebravam as teses freyrianas. Segundo alguns de seus biógrafos e comentadores, o texto de Raízes do Brasil teria ganho em coerência, mas perdido ao tornar-se menos intrigante nas edições que se sucederam.

IHU On-Line – Quais os limites da obra?

Eliane Fleck
- Convém não esquecer que a obra foi escrita nos anos 30 do século XX e que Raízes do Brasil inaugurou a “nova coleção” da Livraria José Olympio, denominada Documentos Brasileiros. Este período caracterizou-se pela significativa produção de vários intelectuais brasileiros empenhados em “redescobrir” o Brasil e em definir o “caráter nacional brasileiro”. É neste contexto de renovação e sob a influência do historicismo alemão e da metodologia dos Annales que Sérgio Buarque de Holanda lançou Raízes do Brasil em 1936. A obra revelava uma combinação de elementos da história social, da antropologia, da sociologia, da etnologia e da psicologia, promovendo o rompimento com as visões teleológicas da história, com os racionalismos e com os determinismos científicos tão presentes na historiografia positivista e marxista. Se, por um lado, a opção pelo gênero ensaístico confere à obra grande força, originalidade e criatividade, por outro, a distancia da produção histórica e sociológica que vinha sendo produzida na época nos círculos acadêmicos. A esta opção, somam-se os condicionantes da incursão de Sérgio Buarque de Holanda no passado brasileiro. Seu olhar foi o de um homem urbano, letrado e de classe média, que buscou muito mais uma interpretação do Brasil do que uma proposta de transformação do Brasil. Daí não ter determinado – com precisão – qual seria este sujeito que faria a Revolução por ele apontada e qual o setor da sociedade, em particular, que deveria fazê-la.

IHU On-Line - Em que aspectos Raízes do Brasil mais avança?

Eliane Fleck
- Segundo Sérgio Buarque de Holanda, o Brasil vivia entre dois mundos na década de 1930, “um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz do dia”. É esta constatação que orienta a obra Raízes do Brasil: o reconhecimento da necessidade de se completar a ruptura com o passado colonial, com a herança do escravismo e do colonialismo. Recusando tanto o fascismo quanto o comunismo, Sérgio Buarque de Holanda forjou uma visão democrático-burguesa da história e caracterizou seus estudos sobre a formação social brasileira por uma marcante renovação da abordagem e da metodologia. Para além das inovações teóricas e metodológicas, sua maior contribuição foi a de ter identificado os obstáculos para a modernização política e econômica do Brasil e de ter apontado para um paradoxo na sociedade brasileira, o de nos descobrirmos estrangeiros em nosso próprio país. O brasileiro vivia, segundo Sérgio Buarque de Holanda, em uma “pátria-exílio” e numa sociedade marcada pelo “predomínio de uma ética de fundo emotivo” que não garantia a justiça social, a distribuição de riquezas e o acesso à plena cidadania. Ele nos legou, ainda, a salutar inquietude diante da constatação de que somos um “eterno vir-a-ser”, um “país do futuro”, prenhe de promessas.

IHU On-Line - Em que medida a obra ajuda a compreender o Brasil de hoje? Que tipo de sociedade é descrita por Sérgio Buarque de Holanda e o que ela tem a ver com a sociedade brasileira atual?

Eliane Fleck
- É surpreendente a permanência, na atualidade, de ranços relativos ao patrimonialismo e da imbricação entre o público e o privado denunciados por Sérgio Buarque de Holanda na década de 30 do século XX. Em pleno século XXI, a mentalidade brasileira permanece marcada pela cordialidade e pelo “jeitinho”, como bem apontado pelos estudos do antropólogo Roberto Da Matta. Esta cordialidade – que se mantém estruturando as relações de sociabilidade dos brasileiros e define a identidade nacional – acaba impedindo que as grandes mudanças na política e na sociedade brasileira ocorram. O personalismo, a falta de ordenação e racionalização na gestão da coisa pública e a violência narcotizante são tributários daquilo que Sérgio Buarque de Holanda denominou de “moral das senzalas”, originada de uma sociedade patriarcal e escravocrata que legou a segregação e o desprezo pelo trabalho manual e que retardou a urbanização e a modernização e impediu a construção de um Estado democrático.

IHU On-Line - Quais seriam as raízes, as origens do povo brasileiro, e como elas se mostram ainda presentes?

Eliane Fleck
- “Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”. Esta afirmação de Sérgio Buarque de Holanda remete, num poderoso efeito retórico, à ausência de um solo firme, a uma implantação forçada em outro solo de traços historicamente constituídos na “cultura européia”, a uma indecisão entre a busca das raízes e a atenção naquilo em que vieram a dar. A referência às raízes em Sérgio Buarque de Holanda assume um tom crítico, na medida em que as apresenta como um mundo rural que não é agrícola, que é lugar de permanência ou passagem, mas não de cultivo; um mundo urbano que é lugar subalterno ao rural, mas não se presta ao exercício da vida civil; uma cultura que não é cultivo, mas implante; tudo isso remete aos “desencontros e mal-entendidos”. As raízes de que fala Sérgio Buarque de Holanda aludem àquilo que afinal importa: aos princípios formadores da sociedade brasileira. Sua reconstrução histórica abre caminho para nos desentranharmos do emaranhado das raízes e para repensar a tarefa da (trans)formação de uma sociedade tão fortemente marcada pela (con)fusão entre o público e o privado, pelo personalismo, pelo nepotismo, pelo culto do improviso e pelo predomínio da “ética de fundo afetivo” nas relações entre indivíduos e entre estes e o Estado.

IHU On-Line - Podemos estabelecer semelhanças entre Buarque de Holanda e Gilberto Freyre? Quais?

Eliane Fleck
- Segundo o crítico literário Antônio Candido, tanto Sérgio Buarque de Holanda quanto Gilberto Freyre exprimem, através de suas obras de 1936 e 1933, respectivamente, uma “mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930” e que conseguiu sobreviver ao Estado Novo. Pela inovadora abordagem histórica que ofereceram, ao adotarem uma análise histórico-sociológica, tornaram-se, sem dúvida, referências para a produção histórica brasileira. Se Freyre foi fortemente influenciado pela antropologia anglo-saxônica, Sérgio Buarque buscou na sociologia alemã os tipos ideais weberianos para analisar a organização da sociedade brasileira da colônia até o século XX. Sérgio Buarque de Holanda aceita, em geral, as teses centrais de Casa Grande & Senzala, em especial, a da “mentalidade de casa-grande”, a do patriarcalismo e do paternalismo que caracterizam(vam) a sociedade brasileira. Há, no entanto, profundas discordâncias em outros pontos, como, por exemplo, com relação às raízes ibéricas, que um quer cultivar e o outro negar. Especificamente quanto às aproximações entre as teses de Casa grande & Senzala e Raízes do Brasil, tanto Gilberto Freyre quanto Sérgio Buarque de Holanda compartilham de uma visão psicológica e culturalista da história e de uma descrição positiva do português, que teria sido mais capaz de adaptar-se aos costumes dos povos colonizados do que os demais colonizadores europeus. É, contudo, em relação a este último aspecto, que decorrem também as divergências entre os dois autores. Enquanto Gilberto Freyre valoriza a colonização portuguesa e sua influência, legitimando o domínio das oligarquias enraizadas no passado colonial e acentuando a continuidade, Sérgio Buarque de Holanda defende a ruptura, ao afirmar que a modernização social e política do Brasil exigia o rompimento com o passado colonial e o aprofundamento da revolução brasileira. Sérgio Buarque de Holanda propõe a erradicação dos implantes malogrados e o preparo do solo para as novas instituições reclamadas pelas novas personagens históricas no cenário pós-Revolução de 1930.

IHU On-Line - Como podemos retomar o conceito de “homem cordial” nos dias de hoje? Quem é o homem cordial contemporâneo? É o mesmo descrito por Buarque de Holanda?

Eliane Fleck
- Embora a palavra cordialidade seja entendida comumente como concórdia, bondade, quase subserviência, em Raízes do Brasil a palavra cordial é empregada em seu sentido etimológico, isto é, cordial vem de cor, cordis – coração, em latim. Tomando a expressão homem cordial de empréstimo do escritor Ribeiro Couto, Sérgio Buarque de Holanda o descreve como aquele que, dotado de “um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”, age e reage sob a influência dominadora do coração. A cordialidade significa, então, passionalidade, aversão a todo convencionalismo ou formalismo social e tanto pode ser positiva como agressiva. Esse conceito estaria associado às Raízes que remontariam ao período colonial marcado por “uma suavidade dengosa e açucarada” e por “uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional”. A esfera, por excelência, do homem cordial seria aquela que representava o oposto do Estado, a família, na qual predominavam os laços de sangue e de afeto e não as leis. Apesar de Raízes do Brasil ter sido publicado em 1936, num contexto econômico-político e sociocultural bastante distinto daquele que vivemos neste início do século XXI, a descrição do tipo-síntese do brasileiro feita por Sérgio Buarque de Holanda permanece bastante atual, na medida em que se mantêm as relações politicamente promíscuas entre o Estado, os governos e as classes dominantes e as relações interpessoais são, ainda, fortemente marcadas pelo uso da cordialidade por ele diagnosticada, perceptíveis na indiferenciação entre o público e o privado. Essa tipologia comportamental foi e é, ainda, muitas vezes utilizada nos dias atuais, para explicar ou analisar diferentes realidades vivenciadas no Brasil. A cordialidade apontada por Sérgio Buarque de Holanda impregna a alma da brasilidade e pode ser associada ao famoso “jeitinho brasileiro”, à consagrada “lei de Gerson”, à máxima popular “Aos inimigos, a lei, aos amigos, tudo!” ou à qualquer outra forma de levar vantagem, sendo cordial e buscando o interesse próprio. Evidente a extrema atualidade da expressão.

IHU On-Line - Em Raízes do Brasil Buarque de Holanda defende uma valorização da cultura brasileira e faz a crítica aos “estrangeirismos”. Em que contexto se situam estas suas posições?

Eliane Fleck -
Se nas primeiras décadas do século XX –  até 1940 – o ensaísmo ganhou projeção com base em reflexões pessoais e íntimas dos autores, marcadamente pela sua experiência subjetiva, na segunda metade do século, as ciências sociais se opuseram à narrativa mais fluida do gênero ensaístico. Nos anos 1990, contudo, com a quebra dos paradigmas rigidamente científicos, a academia passou a olhar com mais simpatia para a intuição e para o brilho das análises de intelectuais como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Os ensaístas latino-americanos do século XX, em geral, debruçaram-se sobre a “questão não-resolvida” da identidade nacional dos países latino-americanos. Radiografias e diagnósticos das culturas nacionais serão constantes nesta literatura, cujos temas recorrentes serão o progresso e o papel do intelectual na sociedade. De acordo com Daniel Pizza (2002), Sérgio Buarque de Holanda “deixou uma obra que se destaca pela combinação de rigor e criatividade, capaz de unir a seriedade da pesquisa, a ousadia da interpretação e a consistência da análise (...) O paralelo plausível de seu trabalho intelectual é o de Octavio Paz, o grande ensaísta mexicano (...) a maior semelhança está na capacidade de ambos de interpretar seus países, suas origens culturais, com uma prosa que recorre a metáforas”. Em sintonia com a produção de outros intelectuais latino-americanos, Sérgio Buarque de Holanda se inscreveu, também, na longa tradição de críticos da tendência de imitação de outras culturas, “o hábito de macaquear tudo quanto é estrangeiro”. Especificamente com relação ao Brasil, os alvos de sua crítica não eram a França ou a Inglaterra, mas os Estados Unidos, que o autor chamava com desdém de “civilização ianque”. Em artigo publicado em 1920, na Revista do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda afirmava que o caminho que deveria ser seguido pelo Brasil era “o mais conforme ao nosso temperamento”, já que o “utilitarismo ianque não se coaduna absolutamente com a índole do povo brasileiro, que não tem semelhança nenhuma com a do norte-americano, da qual é o extremo oposto”. Essa crítica aos Estados Unidos como um modelo impróprio para os brasileiros se traduziu na convicção de que “o Brasil há de ter uma literatura nacional, há de atingir, mais cedo ou mais tarde, a originalidade literária”. Ao escrever Raízes do Brasil, publicado em 1936, Sérgio Buarque de Holanda manteve e aprofundou suas idéias em relação a essa questão, diante da crescente influência da cultura americana na América Latina e, em especial, no Brasil.
 

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