Edição 205 | 20 Novembro 2006

Reconstrução de fragmentos

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IHU Online

“O objeto do livro é reconstruir fragmentos de formas de vida social, de instituições e de mentalidades nascidas no passado e que ainda faziam parte de uma identidade nacional que o autor acreditava estar em vias de ser superada”, é o que diz o professor e pesquisador da Universidade de Passo Fundo (UPF), Mauro José Gaglietti.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor abordou muitos conceitos do livro Raízes do Brasil, entre eles o de homem cordial.

Gaglietti possui Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria/UFSM (1985), mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS (1998) e doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS (2005). Atualmente é professor assistente e integra o Quadro de Pesquisadores da Universidade de Passo Fundo (UPF), tendo institucionalizado o Projeto de Pesquisa: Tradição e Modernidade no projeto político de Dyonélio Machado. Ele pesquisa também Raul Pilla (PL) e Josué Guimarães (PTB).

IHU On-Line – Qual releitura, hoje, podemos fazer do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda? O que isso significaria?

Mauro Gaglietti
- Raízes do Brasil faz uso da matéria legada pela história de um modo que permite identificar as amarras que, no presente, bloqueiam o nascimento de um futuro melhor. O autor procura compreender o processo de transição sociopolítica vivido pela sociedade brasileira nos anos 1930 e depois, na década de 1940, quando o livro foi modificado e ampliado. Sérgio Buarque, ao examinar as concepções, instituições e formas de vida gestadas por nossos antepassados, fá-lo, tendo em vista que elas ainda oprimem – como diria Marx – o cérebro dos vivos. Cada capítulo examina formas de sociabilidade situadas num determinado período, mas o objeto do livro é reconstruir fragmentos de formas de vida social, de instituições e de mentalidades nascidas no passado e que ainda faziam parte de uma identidade nacional que o autor acreditava estar em vias de ser superada. Em Raízes, trata-se de examinar a identidade brasileira “tradicional”, entendida como um dos pólos de tensão social e política do presente (do momento em que foi escrito o livro), como o elemento arcaico que tende a ser superado pela sociedade brasileira em “revolução”. Assim, a identidade brasileira estaria em devir, em processo de construção. Para Sérgio Buarque, em cada momento de sua construção, a sociedade brasileira é portadora de ambigüidade, pois, ao mesmo tempo que é nova, que é fruto da colonização européia, não se amolda bem à sua herança. Em suma, para o autor, a identidade brasileira era problemática – fraturada e ainda em devir. Reler essa obra hoje é buscar as origens de alguns comportamentos e práticas adotados pelo brasileiro nos dias atuais, tanto no âmbito privado como no público; é lançar mão de alguns elementos que nos permitam compreender melhor as peculiaridades da cultura e da arte produzida no Brasil.

IHU On-Line – Como podemos retomar o conceito de "homem cordial" nos dias de hoje? Quem é o homem cordial contemporâneo? É o mesmo descrito por Buarque de Holanda?

Mauro Gaglietti -
Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, cada qual à sua maneira, ratificaram a idéia de Ribeiro Couto, de acordo com o qual a contribuição brasileira para a civilização seria a cordialidade. O conceito de cordialidade é uma síntese da formação histórico-social brasileira. A cordialidade é, segundo Sérgio Buarque, a qualidade daquele ser humano que vive ao sabor de paixões extremas, dominado pelo coração, para o bem e para o mal. Tal traço da cultura brasileira deita raízes nos hábitos e costumes da família patriarcal. O homem cordial, sentindo-se perdido no mundo impessoal da esfera pública, valoriza o elemento familiar, aquilo que está próximo do coração, incluindo-se aí as pessoas da casa, que habitam a esfera privada, caracterizada pelas relações afetivas. Sérgio Buarque de Holanda vê na cordialidade o caráter promíscuo da relação dos domínios do público e do privado. Os brasileiros ainda se reconhecem, em parte, no conceito de cordialidade, adotando-o como uma autodefinição. No entanto, na visão de Sérgio Buarque de Holanda, o brasileiro cordial era uma sobrevivência do passado agrário. Para o autor, a revolução que estava em curso no Brasil iria diluir essa cordialidade. Na sua opinião, a urbanização e a vida moderna, inevitavelmente, levariam à superação da cordialidade. Segundo o autor, as conseqüências desse traço cultural herdado do passado afetavam, diretamente, a condução da coisa pública. Nas palavras do autor, “não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição”. O homem cordial se define por um fundo emocional extremamente rico e transbordante. Por isso, sempre favorece o grupo dos amigos, em vez de zelar pelo interesse coletivo – leia-se público -, priorizando a informalidade em detrimento das normas jurídicas. Desse modo, é importante assinalar que a noção de “homem cordial”, provavelmente inspirada em conceitos de Max Weber, não deve ser confundida com simples bondade, pois até a inimizade pode ser cordial. Assim, a cordialidade, estranha a todo o formalismo e convencionalismo social, não abrange apenas sentimentos positivos. A inimizade pode ser tão cordial quanto a amizade, pois uma e outra nascem do coração; procedem da esfera do íntimo, do familiar e do privado. Observando-se, entre outras coisas, o modo como as pessoas transferem seus interesses privados para o âmbito público -, é lícito pensar que a cordialidade sobreviveu à modernidade. Nesse ponto, o prognóstico de Sérgio Buarque não se confirmou.

IHU On-Line – Que tipo de sociedade é descrita por Buarque de Holanda e o que ela tem a ver com a sociedade brasileira atual?

Mauro Gaglietti
- Na obra, a formação da cultura nacional é associada aos sentimentos e relações pessoais, diádicas, de troca de favores e de quebra das formalidades, traços que distinguiam os brasileiros de outros povos. Raízes do Brasil detecta os dilemas da modernização brasileira, alimentados pelas tensões entre cordialidade e civilidade, ou entre iberismo e americanismo, eixos inconciliáveis neste ensaio de 1936. Na segunda edição do livro, por sua vez — revisada após a publicação de Monções, em 1945 —, observam-se alterações significativas na posição do autor, que, após reler Max Weber, refletira sobre a formação da mentalidade capitalista e as interpretações em curso acerca da conquista do Oeste brasileiro. Tais modificações feitas na obra permitem flagrar a insatisfação do autor no que diz respeito às explicações de tipo "genético", predominantes na primeira edição de Raízes do Brasil, em que o foco da análise recai sobre as "características das tradições transatlânticas", que seriam responsáveis pela nossa formação. Assim, a obra de Sérgio Buarque, produzida a partir da segunda metade da década de 1940, sugere uma relação entre tradição ibérica e modernidade, eixos que não seriam de todo incompatíveis. Afastado das polaridades antitéticas sobre as quais se constrói a interpretação de 1936, o autor aposta, a partir desse momento, na combinação de tradicionalismo e modernização, de civilidade e cordialidade, de ócio e negócio.

 

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