Edição 205 | 20 Novembro 2006

Buarque de Holanda para entender a crise social e a política brasileira

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IHU Online

Mestre em Lingüística e doutor em Semiótica e Lingüística Geral pela Universidade de São Paulo, o professor Aleksandar Jovanovic, da USP, foi entrevistado, por telefone, pela IHU On-Line, discutindo Raízes do Brasil. Como lingüista, Aleksandar trabalha, sobretudo, com Lingüística Aplicada. Ele é autor do artigo Sérgio Buarque de Holanda: No Brasil de 80, elitismo ainda predomina, na cultura e na política. Exatamente como no passado, publicado no Diário do Grande ABC, Santo André (SP), em 13 de abril de 1980. Eis a entrevista: 

Fado tropical
CHICO BUARQUE - RUY GUERRA (1972-1973)

Oh, musa do meu fado. Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado no primeiro abril
Mas não sê tão ingrata. Não esquece quem te amou
E em tua densa mata. Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha aos olhos e sinceramente chora...''

Com avencas na caatinga. Alecrins no canavial
Licores na moringa. Um vinho tropical
E a linda mulata. Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata. Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

Meu coração tem um sereno jeito e as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito, desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito e que há distância entre intenco e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa''

Guitarras e sanfonas. Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca. Num suave azulejo
E o rio Amazonas que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

 
IHU On-Line - Como podemos fazer uma releitura do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, hoje? O que significa reler essa obra nos dias atuais?

Aleksandar Jovanovic
- Reler Sérgio Buarque de Holanda em qualquer época é fundamental para entendermos a gênese da sociedade brasileira. Assim como é importantíssimo também reler sempre Gilberto Freyre. No caso específico de Sérgio Buarque, acredito que relê-lo hoje é dar uma olhada mais aprofundada na crise social e política que o Brasil atravessa e tentar encontrar chaves de leitura para a solução dos nossos problemas. Isso porque ele já conseguiu identificar na época em que escreveu o livro uma série de questões chaves que entraram no nosso desenvolvimento como sociedade.

IHU On-Line - Em que aspectos Raízes do Brasil mais avança?

Aleksandar Jovanovic
- Sérgio Buarque de Holanda conseguiu dar uma leitura poliédrica à sociedade brasileira, mostrando suas diversas contradições e a sua complementaridade. Esse é o aspecto mais importante da obra, em que ele salienta nossas contradições que estão inscritas desde o descobrimento e ainda não foram solucionadas. Essa é a chave mais importante de leitura.

IHU On-Line - Como obra literária o livro propõe uma nova linguagem? Como o senhor caracterizaria a linguagem da obra?

Aleksandar Jovanovic
- O autor tinha uma visão inovadora para interpretar, sob o ponto de vista histórico-político-social, aquilo que é o País. Acredito que ele tenha sido inovador em todos os aspectos. Ele foi um dos maiores e mais importantes intérpretes da nossa realidade. Sob o ponto de vista formal, ele caminhou ombro a ombro com os modernistas que renovaram a literatura no começo do século XX. No fundo, Sérgio Buarque acabou sendo importante sob todos os aspectos e para todas as áreas do conhecimento vinculadas às ciências humanas.

IHU On-Line - Mas Sérgio Buarque tinha algumas ressalvas com os modernistas...

Aleksandar Jovanovic
– Sim, mas são coisas episódicas. Os modernistas também tinham as suas contradições internas, entre si. Os dois “Andrades” (Mario e Oswald) que foram importantíssimos, cada um à sua maneira, também não comungavam de idéias em todos os aspectos. As ressalvas do Sérgio Buarque não neutralizam o fato de que, querendo ou não, conscientemente ou não, ele caminhou lado a lado com os modernistas, nesta renovação formal das ciências humanas, especificamente literatura, que aconteceu no Brasil.

IHU On-Line - Que tipo de sociedade é descrita por Buarque de Holanda e o que ela tem a ver com a sociedade brasileira atual? Existe alguma semelhança com outras sociedades no mundo?

Aleksandar Jovanovic
- As nossas especificidades, hoje, se nós pensarmos no que é o Brasil no início do século XXI estão começando a ser aplainadas em um processo de “terraplenagem” das diferenças, por meio desse processo de mundialização, em que há uma divisão muito maior daquilo que é negativo do que da riqueza. Na verdade, é uma divisão da dependência e da pobreza. Nós somos vítimas desse processo. Se olharmos bem, na medida em que estes brasis que coexistem, que são pelo menos cinco (o sul, o centro-sul, o centro-oeste, o norte e o nordeste) com realidades político-econômico-sociais bastante diferentes, embora pudessem ser muito mais complementares do que são, ainda assim, em grande parte, somos vítimas de um processo em que tudo isso acaba sendo nivelado pelo canibalismo econômico. Entretanto, nós temos as nossas especificidades, que são os nossos defeitos internos, quanto à realidade política, que nada tem a ver com este outro processo internacional. O Brasil hoje, de um lado, tem componentes de país avançado, com relação à tecnologia, ao conhecimento, à industrialização. E, por outro lado, convivem com este Brasil realidades que estão ainda na sociedade pré-industrial, pré-capitalista. Ainda temos núcleos de uma sociedade feudal. Já sob o ponto de vista político, este mundo feudal ainda subsiste como substrato de muitos pedaços e de muitas regiões destes vários brasis a que eu me referi. Talvez a melhor expressão disso tenha sido a obra de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, para explicar essa gênese do nosso medievalismo político sob muitos aspectos.

IHU On-Line - E a tese levantada por Buarque de Holanda do “homem cordial”? Quem é o homem cordial em nossa sociedade?

Aleksandar Jovanovic
- Não sei até que ponto esse homo cordialis pode expressar o Brasil de hoje, na medida em que a violência urbana, fruto de uma série de desacertos socioeconômicos e políticos, está sucumbindo a esses dois processos a que eu me referi: o primeiro é essa “terraplanagem” da nossa realidade socioeconômica, e o segundo é a realidade política. Eu receio que este homem cordial, que podia ser um retrato parcial ou em grande parte verdadeiro, quando Sérgio Buarque de Holanda escreveu seu livro, esteja se tornando menos cordial e corra o risco de ficar encurralado entre paredes, por causa da realidade que o cerca. Eu não sei realmente se podemos pensar que o brasileiro continue tão cordial, lamentavelmente, porque esta sempre foi uma característica marcante desde o momento da criação deste símbolo do Sérgio Buarque. Isso acabou sendo utilizado dentro e fora do Brasil como uma marca registrada da brasilidade. Com tantos problemas socioeconômicos receio que corremos o risco de o homem cordial submergir diante do que está a sua volta.

IHU On-Line - Quais são as raízes do Brasil, as origens de nosso País e como isso aparece hoje?

Aleksandar Jovanovic
- O polimorfismo etnocultural nacional nos permite entender esses cinco brasis e a sua complementaridade ancorada nas culturas diversas que se amalgamaram aqui. Essa pode ser a chave para a compreensão do Brasil, e esse fato conseguiu de forma única, até hoje, no mundo, fazer conviver em relativa calma não só povos de origens diferentes, mas também de culturas e de religiões diferentes. Isso tudo se deu neste mundo conturbado, porque os povos e as nações, sobretudo os seus governantes, estão perdendo o equilíbrio mínimo das coisas. Ainda assim, apesar das dificuldades que citei, esta miscigenação e esta diversidade cultural e antropológica permitem que o Brasil ainda se considere e se mantenha unificado de certa forma. Nesse aspecto Raízes do Brasil pode nos ajudar a entender como estes povos e culturas conseguiram conviver de forma relativamente harmônica ao longo do tempo.

IHU On-Line - Que relações podemos estabelecer entre Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre?

Aleksandar Jovanovic
- As obras dos dois autores são fundamentais na tentativa de explicar aspectos do Brasil que não tinham sido explicados até então. Ainda que eles não façam a mesma leitura ou uma leitura paralela do que seja a formação do Brasil, divergindo em vários aspectos, há uma convergência fundamental no que diz respeito à tentativa de desentranhar aquilo que está nas origens do Brasil, de tentar efetivamente fazer uma leitura múltipla à luz da ciência moderna de quais são as origens do Brasil e a sua articulação com a sociedade. A importância de ambos é similar na medida em que conseguiram, no conjunto de suas obras, extravasar uma única área do conhecimento dentro do campo das ciências humanas. Eles conseguiram trabalhar com dados antropológicos, sociológicos, etnográficos e históricos. Há algumas obras de autores brasileiros (e, entre eles, destaca-se Sérgio Buarque de Holanda) que são fundamentais e deveriam ser muito mais divulgadas do que são. Esta é uma das nossas deficiências, como sociedade: a falta de leitores dos pensadores que o Brasil produziu e a falta da reflexão sobre o que eles escreveram.

 

 

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