Edição 468 | 29 Junho 2015

A filosofia como forma de vida IV. A regra da vida (regula vitae), fuga e resistência ao controle social

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Castor Bartolomé Ruiz

“Agamben, como Foucault, coloca-se a questão: é possível pensar numa forma-de-vida que extrapole os dispositivos biopolíticos de controle social? É possível uma vida além da sua instrumentalização utilitária? É possível uma vida além da administração e do direito? A maquinaria biopolítica retroalimenta-se através da fabricação de modos de subjetivação acordes com a racionalidade instrumental. Agamben e Foucault exploraram em suas pesquisas a questão: há possibilidade de criar uma forma-de-vida como linha de fuga e resistência aos modelos instrumentais de subjetivação? Os conceitos de fuga e resistência tornar-se-ão, nesta pesquisa, muito mais do que uma metáfora — a fuga será um princípio motivador das formas-de-vida pesquisadas por Agamben, e a resistência, uma prática de si recursiva destes modos de vida”. Os questionamentos fazem parte do artigo escrito pelo Prof. Dr. Castor Bartolomé Ruiz, dando continuidade à série iniciada sobre “O cuidado de si e a forma de vida. As práticas éticas e a constituição do sujeito. Entrecruzamentos de P. Hadot, M. Foucault e G. Agamben”, originada da disciplina de nome idêntico ministrada no PPG em Filosofia da Unisinos.

Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, entre elas: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006).

Confira o artigo.

 

I

Como mostramos em textos anteriores, a filosofia antiga (século V a.C até V d.C) caracterizava-se por ajudar a construir formas de vida.  A filosofia propunha-se auxiliar os sujeitos a constituírem em si mesmos estilos de existência. O conjunto de conhecimentos (mathesis) das escolas filosóficas (metafísica, lógica, física, cosmologia, retórica, etc.) eram compreendidos como meras ferramentas conceituais para auxiliar no modo de vida filosófico dessa escola. Registramos o interesse de alguns filósofos contemporâneos em resgatar esta genuína perspectiva do fazer filosófico, entre eles Pierre Hadot,  que contribuiu com inestimáveis pesquisas sobre a filosofia antiga, e os exercícios espirituais de Michel Foucault,  que dedicou vários cursos do Collège da France a pesquisar a genealogia do epimeleia heautou (cuidado de si) na filosofia antiga junto com a parresia (dizer franco).

Outro pensador contemporâneo que vem desenvolvendo pesquisas sobre a filosofia como forma de vida é Giorgio Agamben.  Assim como Foucault, o interesse de Agamben pela filosofia como forma de vida situa-se no contexto das pesquisas sobre biopolítica. A biopolítica se caracteriza pela instrumentalização utilitária da vida humana como um insumo dos dispositivos de poder. Segundo Agamben, a biopolítica moderna desenvolveu dois dispositivos fundamentais nessa captura, o dispositivo da exceção e o dispositivo da governamentalidade. Exceção e governamentalidade se articulam na maquinaria biopolítica contemporânea que administra a vida como um elemento útil, e quando esta se insurge contra a gestão e não pode ser controlada administrativamente, sofre a ameaça da exceção convertendo-a em homo sacer.

A maquinaria biopolítica normatiza as subjetividades produzindo sociedades de massa e a massificação como elemento manipulável pelos dispositivos midiáticos, entre outros. A biopolítica produz uma ingente maquinaria de dispositivos de controle social que formata as subjetividades padronizando-as em modelos preestabelecidos por administradores corporativos ou estatais. A biopolítica gerencia a vida como insumo útil. Para tanto normaliza os indivíduos em padrões de comportamentos exigidos pelas demandas corporativas. Uma boa gestão captura todas as dimensões da vida humana na lógica da funcionalidade utilitária. O modelo biopolítico pretende produzir uma imanência absoluta da vida na racionalidade utilitária capturando todas as formas de vida e qualquer habilidade vital na lógica funcional mercantil, produtiva, lucrativa, entre outras.

Agamben, como Foucault, coloca a questão: é possível pensar numa forma-de-vida que extrapole os dispositivos biopolíticos de controle social? É possível uma vida além da sua instrumentalização utilitária? É possível uma vida além da administração e do direito? A maquinaria biopolítica retroalimenta-se através da fabricação de modos de subjetivação acordes com a racionalidade instrumental. Agamben e Foucault exploraram em suas pesquisas a questão: há possibilidade de criar uma forma-de-vida como linha de fuga e resistência aos modelos instrumentais de subjetivação? Os conceitos de fuga e resistência tornar-se-ão, nesta pesquisa, muito mais do que uma metáfora — a fuga será um princípio motivador das formas-de-vida pesquisadas por Agamben, e a resistência, uma prática de si recursiva destes modos de vida.

Seguindo as trilhas abertas por Foucault, Agamben utilizou-se do método genealógico para analisar algumas práticas de subjetivação que não se sujeitaram docilmente ao modelo estabelecido, mas pretenderam criar novas formas-de-vida. Agamben explorou novos campos de pesquisa, talvez como ele mesmo declarou em entrevista, com o objetivo de complementar e interpelar as pesquisas de Foucault sobre a filosofia antiga e a genealogia do cristianismo medieval, interrompida pela morte prematura deste. Agamben encontra no monasticismo cristão uma experiência de forma-de-vida original cuja genealogia oferece elementos críticos a serem explorados.

 

II

A primeira questão que instiga a pesquisa de Agamben é comprovar que, entre os séculos III a VI da era cristã, produzira-se uma amplíssima literatura sobre a regra. Nestes séculos publicaram-se muitas obras que problematizaram a regra em relação com a vida, regula vitae. Agamben chama atenção sobre a originalidade desta literatura, uma vez que no pensamento antigo a questão da regra ou a regra como categoria de pensamento em relação à vida é quase desconhecida. Antes do cristianismo não encontramos quase referências nem literatura sobre a regra. Certamente que a filosofia antiga, assim como o pensamento oriental, tematizaram questões como a lei e a norma em relação com a vida, porém a reflexão sobre a regra é algo específico do cristianismo do século III em diante e particularmente das práticas monásticas e das ordens religiosas regulares.

 

III - Contexto histórico da regra: o monasticismo

O surgimento da literatura sobre a regra, assim como sua problematização em relação à vida, não surge como uma mera questão teórica. Os discursos sobre a regra emergem a partir das novas práticas de vida que alguns grupos de cristãos se propuseram criar no alto Egito a partir do século III, o chamado monasticismo. O estudo da regra em relação com a vida aparece como elemento central da problematização desta nova forma de vida que alguns cristãos decidiram criar para si. Para compreendermos as motivações daqueles cristãos em criarem novas formas de vida, há que contextualizar sua decisão de fugir do mundo com a captura da vida cristã pelo império romano, já que muitas práticas de domínio de si por eles desenvolvidas eram conexas com as técnicas de resistência aos apelos de cooptação do poder institucional. A fuga e resistência do mundo preconizada pelos cristãos destes séculos têm estreita relação com o mundo das estruturas imperiais. A forma de vida do monasticismo surge coetaneamente com o processo de captura do cristianismo pelo império romano. Não é difícil perceber na opção de muitos cristãos pela forma de vida do monacato, durante os séculos III a VI, uma espécie de reação à assimilação do cristianismo nas estruturas imperiais, pretendendo criar uma alternativa de vida mais evangélica em relação à cumplicidade das nascentes instituições eclesiais identificadas com o império.

A partir de Constantino,  o Grande (272-337), reforça-se uma tendência de integração do cristianismo nas estruturas políticas do império, que terá um dos seus pontos álgidos com Teodósio I  (347-395) ao tornar o cristianismo a religião oficial do império e declarar as outras religiões ilegítimas. Além das riquezas materiais que o império foi transferindo para as dioceses, os bispos obtiveram o poder de juízes, as instituições eclesiais vincularam-se organicamente ao poder do império, os clérigos obtiveram prerrogativas de não pagar impostos, etc. Ser cristão, que antes era perigoso e subversivo, tornou-se uma credencial para ganhar cargos burocráticos no império. O cristianismo, para muitos, deixou de ser uma opção de vida alternativa para se tornar uma ideologia oficial do poder que assegurava privilégios políticos e administrativos. O Evangelho foi transformado em ideologia oficial de governo, o modo de vida das comunidades cristãs primitivas derivou numa estrutura clerical com crescimento burocrático semelhante às estruturas imperiais, e a forma de vida cristã foi capturada na forma do funcionário, deslocando-se para a prática funcional de uma religião institucionalizada.

Neste contexto de deslizamento e captura do cristianismo pelo império, vemos surgir novas formas de vida de cristãos que pretendem manter um estilo de existência mais coerente com o Evangelho e vida de Jesus, longe das estruturas de poder sociopolítico. Essas novas formas de vida iniciaram-se no século II com os chamados eremitas, porém foi no final do século III e durante o século IV que os estilos individuais de vida eremita se tornaram formas coletivas de vida nos denominados cenóbios. A vida eremita era uma fuga e resistência ao poder instituído identificado no sintagma mundo. O eremita fugia das estruturas de poder e resistia a seus dispositivos de cooptação: a glória, a riqueza e seus modos de vida banais. A fuga e a resistência do mundo tornaram-se categorias recorrentes dos discursos dos eremitas. Ambas as noções, fuga e resistência, tornaram-se próximas dos discursos críticos de nossa contemporaneidade, uma vez que estabelecer linhas de fuga e resistência aos dispositivos de controle social continua a ser uma das motivações da filosofia crítica.

Com o surgimento dos cenóbios, aparece também a primeira literatura sobre a regra e sua relação com a vida. Uma das primeiras referências encontra-se em Antão do deserto  (251-356). Nascido em Alexandria, tornou-se cristão e foi para o deserto do sul do Egito com objetivo de viver a forma de vida eremita. Em poucos anos juntaram-se a ele outros que também queriam inovar esse estilo de vida, mas Antão nunca quis criar uma forma de vida comum. Na sequência encontramos os escritos de Pacômio  (292-348) sobre a regra, Orientações da vida comum do cenóbio. Nascido em Tebas e após uma experiência frustrante de soldado romano, converteu-se ao cristianismo. Também decidiu seguir a forma de vida da fuga e resistência no deserto. Conheceu Antão e teve também influência de outro importante eremita, Macário. Este criou as primeiras celas (grupos) de eremitas, sem ainda conceber a noção de forma de vida em comum. Atribui-se a Pacômio a decisão de criar uma nova forma de vida comum que denominara cenóbio (koinobion: koinos–comum, bios-vida). Os primeiros cenóbios conhecidos foram criados por Pacômio em 318 e 323 em Tabennisi, Egito. Nesta vida em comum aparece pela primeira vez a noção de regra de vida (regula vitae) cuja problematização permanente se tornará o elemento diferencial desta forma de vida em relação a outros modos de viver social ou eclesialmente. Uma das primeiras regras de Pacômio, ora et labora, atravessará os séculos até o presente, sendo vivida como uma das regras das comunidades monásticas. Atribui-se a Pacômio a criação do termo Abba (pai em hebraico), que derivou em Abade, designando aquele que dirige o cenóbio.

Neste breve contexto histórico do problema da regra, é pertinente destacar também a importância das obras sobre a regra de João Cassiano  (360-435), que nasceu em Cítia (atual Dobruja), Romênia, e morreu em Marselha, na França. Conheceu os diversos mosteiros de Belém e do Egito. Transportou a forma-de-vida do cenóbio de Egito para Marsella, criando um mosteiro, a abadia de S. Vitor, 410, que é o primeiro mosteiro do Ocidente. Cassiano seguiu as regras de vida dos mosteiros egípcios. No mosteiro dele se formaram teólogos renomados do século IV, que expandiram esta forma de vida criando novos mosteiros. Entre eles destacam-se Vicente de Lerins, Fausto de Riez e Castor de Apt (Apta de Julia Vulgiêncio, França). Este último era advogado, casado e optou pela vida monástica fundando o mosteiro de Monanque, na França. A seu pedido, Cassiano escreveu a obra De institutis Cenobiorum.

Há uma ampla literatura conhecida sobre a regra. Como amostra dela podemos mencionar algumas obras: Regra de Pacômio (292-348), Regra de Martinho de Tours (316-397), Regra de Jerônimo (347-420), a já mencionada De institutis Cenobiorum de João Cassiano (360-435), A Regra dos Padres de Agostinho de Hipona (354-530 ), Regra do mestre de Basílio de Cesareia (330-379), Regra dos quatro Padres de Honorato (427), Regra de Eugippius (+- 482), Regula Magistri¸anônima, (530), A Regra de Macário (495), Regra de Cesáreo de Arles (470-543), Regra do Mosteiro do Jura (s. d), Regra de Ciaram de Clonmacniose (515-544), Regra de Columba de Iona (563), Regra de Corngall Bangor (520-602), Regra de Bento de Nursia (480-547), Regra de Aurelian (523-551), Regra de Ferreol de Uzes (558), Regra de Columbano (543-615).

 

IV - A lei 

Agamben percebeu que a problematização feita nos cenóbios a respeito da relação entre a regra e a vida foge radicalmente do campo jurídico. O termo regra é adotado pelos grupos cenobíticos como conceito que se diferencia tanto da lei quanto da norma.

A lei impõe prescritivamente os atos a serem cumpridos sob ameaça de penalizações punitivas. Inclusive a lei divina, por exemplo, os dez mandamentos, não era o parâmetro que poderia ajudar a criar a nova forma de vida que se pretendia nos cenóbios. A lei age em representação de uma vontade soberana externa à qual deve submeter-se a vida. A lei exige a submissão como atitude impícita da prescrição soberana. A vida submetida à lei é uma vida submissa a uma vontade soberana que determina prescritivamente o que deve fazer e o que está proibido de fazer. A vontade soberana manifesta-se na lei e a vida é retida na lei sob a forma de obrigação. A vida submetida ao império da lei vive sob a sombra da obrigação, que submete sua vontade às determinações (legais) de uma vontade externa. A lei é soberana e a vida se torna seu súdito ao ter que cumprir os mandatos legais de modo prescritivo sob risco de ser punida caso não os observar. A lei cria soberanamente as prescrições que permitem, proibem e obrigam a vida. A vida regida pela lei encontra-se submetida a um regime de soberania externo cujo modelo de subjetivação se aproxima do súdito. Perante a lei todos somos súditos obedientes, ou criminosos transgressores. A vida sob a lei sobrevive na sombra da soberania, protegida e ameaçada concomitantemente pela vontade soberana. A mesma lei que protege, ameaça. A vontade soberana que na lei estabelece direitos e obrigações, pode soberanamente suspender direitos ou impor novas obrigações. No limite, a vontade soberana utiliza-se da exceção como dispositivo para suspender a lei e expelir a vida a um campo de anomia onde estará exposta à total vulnerabilidade.

 

V - A norma

A norma, diferentemente da lei, não resulta de uma vontade soberana, mas opera em relação a uma racionalidade administrativa da vida. A lei prescreve e proíbe, porém tudo aquilo que a lei não prescreve nem proíbe fica indefinido. Na racionalidade administrativa moderna, que regula a lógica biopolítica, todos os espaços em que a vida humana transcorre sem ter uma prescrição legal definida devem ser também gerenciados. O amplo espaço vital não prescrito pela lei deve ser regulamentado pela norma. A norma, à diferença da lei, não prescreve de forma soberana as ações, mas regula funcionalmente os comportamentos. A norma tem por objetivo tornar funcional e eficiente a vida, ela captura a vida na lógica utilitária. A regulação normativa delimita os parâmetros em que a vida há de comportar-se num determinado espaço institucional ou social. A norma é produzida pela instituição e seu objetivo é institutionalizar ao máximo os indivíduos que nela se inserem. A normatização tem por objetivo sujeitar o agir vital dos indivíduos aos interesses institucionais. A norma normatiza produzindo modelos de normalização. Os indivíduos normatizados se inserem funcionalmente numa instituição e se normalizam através do desempenho eficiente da sua função. A norma opera num campo diferente da lei produzindo um outro modo de subjetivação, o do funcionário. A lei exige a submissão a uma vontade soberana, a norma captura a vontade colaborativa dos indivíduos. A norma administra a vontade dos sujeitos levando em conta suas possibilidades e capacidades dirigindo-os às metas institucionais. A normalização é o modelo de subjetivação da biopolítica moderna.

 

VI - A regra 

Agamben entende que a forma-de-vida criada pela regula vitae se contrapõe tanto ao modelo legal da soberania quanto ao modelo administrativo da norma. Desde os primeiros escritos sobre a regra há uma clara diferenciação entre a regra e a lei; por exemplo, na denominada Regra dos quatro padres: “qualiter conservationem vel regulam vitae ordinari possimus”. A lei divina, a lei eclesiástica, a lei civil não eram referência para aqueles que pretendiam viver a nova forma de vida do cenóbio, eles deviam criar uma vida além da lei. Quem optasse por viver em comum essa nova forma de vida não poderia estar ali por obrigação legal, nem poderia viver essa vida por prescrição da lei. A lei era insuficiente para pensar a nova forma de vida que se pretendia criar. 

Agamben detecta que nestes escritos e debates sobre a regra e a vida há uma tentativa explícita de criar uma forma de vida além da lei, uma vida que não deva submeter-se ao direito, mas que saiba criar seu próprio direito de viver. A relação entre regra e vida proposta pelas práticas dos primeiros cenóbios não era a de criar a regra para depois cumprir vitalmente o prescrito — nesse caso estaríamos no campo da norma. Nos primeiros escritos sobre a regula vitae, a vida regula a norma, da vida deveria deduzir-se a regra, e não o contrário. Cada cenóbio devia experimentar novas formas de vida, num momento posterior e levando em conta as experiências vividas haveria que pensar qual a regra que melhor expressa essa forma de vida que pretende viver. A relação entre a regra e a vida, nos primeros cenóbios, era a inversa dos processos de normatização. Não era a regra que se impunha sobre a vida, senão que era a vida que criava suas regras. A regra era o resultado da vida. A vida não tinha que se submeter prescritiva ou normativamente à regra, senão que deveria criar sua própria regra acorde com o modo de vida. Encontramos um exemplo nos Praecepta atque iudicia (Preceitos e sentenças), de Pacômio, que introduz o tratado com a afirmação: “plenitudo legis caritas” (a plenitude da lei é o amor).

A regra foi criada como dimensão original e distinta da lei em relação à vida. Na problemática da regula vitae abre-se um campo novo da vida em relação à norma e ao direito. A regula vitae é uma regra da vida. Não é uma regra que se impõe sobre a vida, é uma regra que surge da vida. No sintagma regula vitae o genitivo é subjetivo, ou seja, a vida é o sujeito e a regra é o objeto, é a regra da vida. Nessa relação a iniciativa é da vida e não da regra, é a regra que se submete à vida, sob pena de negar o caráter vital da regra. 

O caráter vital da regra, que a distancia da lei, é exemplificado de muitas formas, entre elas na sua comparação com a arte. Basílio de Cesareia  (329-379) na sua obra a Regra do mestre faz uma analogia do trabalho manual dos monges e a regra de vida monástica com a arte, concebendo-os como uma ars sancta. A regra de vida é assimilada ao paradigma estético da arte criadora da vida: “ecce haec est ars sancta, quan ferramentis debemus spiritablibus operari”. (Esta é a arte santa que devemos pôr em prática com os instrumentos espirituais). Também Cassiano, nas Consolationes, entende que a vida das regras se assemelha a um ars e a profissão da vida monástica é comparável à aprendizagem de uma arte.

 

VII Paradoxos da regra

A formulação originária da regula vitae como regra proveniente da vida e regra que deve ser vitalmente vivida foi sempre um campo aberto de tensões já que, como se pode comprender, a relação entre regra e vida não se aplicava automaticamente na prática. Há muitos paradoxos nessa relação de regra e vida, porém, em todos os casos e ao longo dos diversos tratados e escritos sobre a regra, permanece a tensão agonística entre a regra e a vida, entre a vida que deve ser o critério da regra e a regra que em muitos casos torna-se um mero imperativo legal da vida.

A tensão entre regra e vida da regula vitae fica evidente já que as pessoas que se decidiam por essa forma de vida o faziam livre e voluntariamente e também poderiam abandoná-la da mesma forma. Nessa condição, não faz muito sentido prescrever legalmente a forma de vida, pois a lei mata a vida. A questão suscitada nos cenóbios e posteriormente nas ordens religiosas, chamadas de regulares por adotarem a regra como forma de vida, era como chegar a viver uma forma de vida que pretende viver os ideais do Evangelho. O método encontrado para concretizar essa forma de vida foram as regras que sintetizam, a modo de orientações exigentes, a forma de viver. Essas regras não poderiam ser confundidas com leis ou normas, porque, nesse caso, seriam preceitos legais ou normativos de obrigado cumprimento e a vida seria sufocada pela lei e a norma. Quando a vida é vivida seguindo os preceitos legais, os monges tornam-se meros funcionários cumpridores de regulamentos e normatividades. O monge que é normatizado pela regra anula o sentido da regra. O monge só pode viver a regra como uma forma de vida que faça da regra um estilo de existência. Frequentemente se problematiza, nos tratados sobre a regra, o perigo de a vida dos monges tornar-se uma vida submissa à lei porque não conseguem viver a regra como uma forma de vida. Nesse caso, eles tornar-se-iam meros repetidores das normas, o que os transformaria em funcionários religiosos ou “burocratas institucionalizados”.

Quando a vida do monge ou do religioso fica submetida ao mero cumprimento da regra como norma ou lei externa, ele perverteu o sentido da regra de vida. A regra mantém um campo aberto de tensão agonística em relação à vida. Ela orienta um modo de viver, mas não prescreve como viver. Por exemplo, as regras da pobreza, do serviço, da contemplação, da oração, etc. indicam a forma de vida segundo a regra, mas não prescrevem o modo como viver a pobreza ou como ser serviçal. Os atos concretos do viver não estão previstos nem prescritos pela regra. Esse é o campo aberto em que a vida há de encontrar seu modo de viver específico vivendo a regra. A tensão agonística exige que a regra deixe livre a vida para definir o modo de viver a regra, mas exige da vida que viva a regra como modo de vida.

A regra tem a peculiaridade de, uma vez estabelecida, deixar um campo aberto para a vida. Ela é mais que um mero conselho, porque delimita um horizonte de ação, mas está além da lei e da norma porque não prescreve como comportar-se nem impõe o que fazer. Esta originalidade da regra foi procurada explicitamente pelos monges que optaram pela vida cenobítica, pois eles pretendiam criar uma forma de vida que pudesse viver além da lei, sem estar fora dela. Não pretendiam negar o valor da lei, mas mostrar a sua insuficiência em relação à vida. Com o uso da regra desativaram o valor prescritivo da lei. A lei existe desativada porque a regra exige uma forma de vida além da lei.

 

VII

Esta problemática é destacada por Agamben nas trilhas abertas por Walter Benjamin.  Uma das questões deixadas por Benjamin no seu ensaio Por uma crítica da violência, era a de pensar a possibilidade de uma vida além do direito, uma vez que o direito também ameaça a vida. O que Benjamin denominou de violência mítica. A relação entre o direito e a vida não é de mera proteção, como pensa comumente o direito positivo moderno. O direito protege mas também ameaça a vida de várias formas, uma através da suspensão de direitos (decretando a exceção) e também por meio da normatização regulamentar de todos os atos vitais, que em vez de proteger gerencia a vida como insumo natural. A relação entre direito e vida é tensional e problemática, uma vez que a tensão não se resolve negando o direito, já que, nesse caso, a vida cai na exceção e fica vulnerável a qualquer violência. Mas também não se soluciona ampliando à exaustão a legislação e as normas para regulamentar a vida, porque asfixia a vida na norma. Surge a questão sobre a possibilidade de criar formas de vida além do direito que não precisem negar o direito, porém o desativam enquanto dispositivo regulamentar. Uma vida além do direito desativa o direito ao torná-lo desnecessário e insuficiente. 

No caso da regula vitae, encontramo-nos perante uma forma de vida que pensou explicitamente viver além do direito por considerar a lei insuficiente para a vida. Isso não quer dizer que as vidas nos cenóbios eram um ideal vivido ou que o ideal da regra era vivido tal qual se pretendia. O campo de tensões entre a forma de vida da regula vitae e a realidade vivida pelos monges era permanente. Estas tensões eram constantes e às vezes graves, porém as problematizações tensionadas sempre incidiam na máxima de que a vida era superior à regra no ponto em que a regra só adquire plenitude quando se torna vida, e não quando se cumpre normativamente.

 

IX

Outra tensão paradoxal surgiu na relação da regula vitae com o direito canônico, que começou a constituir-se como norma reguladora de todas as instituições eclesiais e que fatalmente atingiria a prática da forma de vida na regula vitae. Na época carolíngia, séculos IX a XI, há um processo de judicialização de toda a Igreja com a imposição normativa de normas canônicas. O ápice deste processo está no denominado decreto de Graciano (1140-1142), que é uma compilação exaustiva e detalhada de todas as leis e normas canônicas editadas na Igreja e que consolidou o direito canônico na Igreja como instrumento normatizador de condutas e instituições. Nesta época, a maioria dos bispos e a Cúria Romana decidiram normatizar também a vida dos mosteiros. Para tanto impuseram como regra comum de todos os mosteiros aquela que Benedito de Núrsia  (480-547) tinha codificado como somatório das principais regras conhecidas até aquele momento. 

A tensão entre regra e vida não seria completamente anulada pelo direito canônico, pois ao longo dos séculos XII e XIII ocorreu um grande número de movimentos religiosos reformadores que pretendiam retornar à vida evangélica tendo como referência a relação entre regra e vida. O movimento paradigmático desta disputa foi o franciscanismo.

O próprio monacato, que surgiu com uma linha de fuga e resistência do poder imperial, tornou-se uma poderosa estrutura de poder durante o feudalismo medieval. Como já é sabido, muitos mosteiros se tornaram poderosos feudos com centenas e até milhares de servos sob o regime de vassalagem, que trabalhavam para manter o mosteiro. Muitos mosteiros concentraram grandes riquezas e se tornaram núcleos de domínio econômico regional. Neste contexto, diversos abades eram senhores feudais com exércitos próprios. Concomitantemente à cooptação do monacato e do deslizamento para uma estrutura de poder feudal, vemos surgir a reação de novos movimentos sociais e religiosos que, principalmente ao longo dos séculos XI, XII e XIII, convulsionaram toda a Europa. Esses movimentos reivindicavam uma forma de vida em que a regra principal era o direito a não ter direitos, entre eles, o direito a não ter propriedade. Estes movimentos elaboraram uma teoria do uso contraposta à da propriedade reivindicando a possibilidade de criar uma forma de vida sem propriedade, cuja regra de vida fosse o uso das coisas sem necessidade de tê-las em propriedade. O franciscanismo e seus debates com a cúria romana a respeito da possibilidade de uma forma de vida sem propriedade e uma regra sobre o uso é um exemplo paradigmático desta nova conjuntura da regra de vida.

Este confronto desenhou uma possibilidade histórica no século XIII muito importante sobre a opção de criar um modelo de vida cuja referência fosse o uso das coisas ou sua propriedade. A vitória da propriedade sobre o uso no século XIII foi o primeiro passo para a constituição do capitalismo como modelo econômico e do liberalismo como modelo governamental. A hegemonia da propriedade sobre o uso provocou tragédias históricas irreversíveis em que o colonialismo e seus genocídios são só uma amostra. Essa opção conduziu nosso presente à beira de dilemas abismais como a predação impiedosa da natureza, a lógica insustentável de um consumo indefinido, a dinâmica inviável de uma produção ilimitada e a acumulação particular irrestrita de riqueza.

 

X

Cabe ainda ressaltar um outro paradoxo da regra. A pesquisa de Agamben propõe-se destacar a novidade da regra enquanto prática em relação com a vida. Interessa ao autor sublinhar a forma de vida que emerge dessa novedosa relação entre regra e vida nos cenóbios cristãos e nas ordens regulares. Na pesquisa, o autor não se detém em analisar a vida proposta na regra, nem os discursos e as verdades teológicas ou antropológicas em que a prática da regra de vida ocorreu. Neste primeiro momento, o interesse de Agamben não é analisar a forma de vida proposta, senão a possibilidade de criar uma forma de vida através de uma nova prática que conjuga uma relação inédita entre regra e vida. A genealogia proposta por Agamben capta a novidade da regra em relação à vida na prática de criar uma nova forma de vida, porém não entra em uma análise crítica de como era a vida vivida nas diversas épocas e nos diferentes mosteiros e ordens religiosas regulares. 

Sem dúvida que muitas das formas de vida implementadas nos mosteiros durante o medievo estavam perpassadas pela visão dualista do mundo e do ser humano, com práticas de suspeita de si e negação do mundo por serem consideradas naturezas decaídas. Foucault focou sua análise na crítica dos discursos e das práticas do cristianismo medieval, mostrando que neles houve um deslocamento das práticas do cuidado de si (epimeleia heautou) da filosofia antiga para uma nova prática do deciframento de si. A prática do deciframento de si teria por objetivo produzir uma vontade submissa e obediente em vez da autonomia proposta pelas práticas do cuidado de si. As diferenças entre as perspectivas de Foucault e Agamben não devem ser percebidas como contraditórias ou irreconciliáveis, muito pelo contrário, a pesquisa de Agamben destaca um aspecto positivo da relação entre regra e vida, porém não nega nem omite a possibilidade da análise crítica do estilo de vida produzido no monacato, principalmente a partir do século VII. Por isso, Agamben insiste em que sua análise se centra nos discursos e práticas dos primeiros séculos do monacato cristão. As críticas aos modelos dualistas de subjetivação são amplamente conhecidas. O que ficou menos destacado é o aspecto positivo e criativo dessa forma de vida, que a pesquisa de Agamben traz à luz. 

 

XI - A regra além do paradoxo 

Como a regra se torna vida e a vida cria sua regra? Este campo de tensão agonística entre regra e vida é constitutivo da vida e da regra. A regra não pode ser reduzida à norma ou lei sem anular o sentido da regra. Para a regra adquirir plenitude tem que ser vivida. Só a vida pode dar sentido à regra. Por isso o princípio regulador da regula vitae é viver a regra, não cumpri-la. Viver a regra significa, primeiramente, que a regra tenha emanado da vida, ou seja, ela deve surgir de uma experiência de vida. Em segundo lugar, viver a regra deslancha um duplo movimento: a vida tem que internalizar a regra no seu modo de viver e essa internalização vital da regra tornará a regra vida e a vida regra, ao ponto de criar uma zona de indistinção entre regra e vida.

Para conseguir este ideal de forma de vida da regula vitae, os diversos cenóbios criaram regras e práticas para essas regras. A relação entre regra e vida nunca atingiu uma relação tão capilar como a vivida nos mosteiros e nas ordens religiosas de vida regular. Uma das técnicas características desta forma de vida foi a criação do chamado Horologium, ou divisão da temporalidade da vida nos minúsculos instantes e nos tempos maiores. A vida do monge está submetida à regra da divisão temporal estrita com objetivo de tornar o tempo uma parte da regra e a regra uma forma de viver a temporalidade. O dia, a semana, os meses e os anos estão divididos em períodos diferentes para diferentes atos. Cada divisão horária visava escandir a vida segundo as divisões temporais. Pretendia-se com esta técnica constituir a vida do monge como um horologium vitae. O ponto nevrálgico da divisão temporal se equilibrava entre oração, trabalho e lazer/descanso. A oração ocupava os horários nobres da vida, o trabalho os horários eficientes, o lazer os horários beneficentes. Cada cenóbio mantinha regras para horários em que a vida era escandida no tempo, vivendo cada tempo como uma forma de vida e tornando a vida uma modalidade temporal do viver.

Nenhuma sociedade disciplinar conseguiu atingir uma divisão capilar do tempo tão estrita quanto a vida dos mosteiros. Contudo, há uma diferença qualitativa entre a sociedade disciplinar moderna e a forma de vida da regula vitae. Para o poder disciplinar moderno a fragmentação do tempo é uma técnica que possibilita tornar mais produtiva a vida, enquanto a regula vitae segmenta os tempos para vivê-los com mais intensidade de vida. A sociedade disciplinar visa à produção eficiente e a maximização do lucro, a regula vitae pretende criar uma vida cujo sentido está na contemplação do viver, no usufruir estético e místico da forma-de-vida. O disciplinamento do tempo foi uma técnica essencial para a consolidação do modelo capitalista de exploração da mão de obra. Na contramão da disciplina, a regula vitae segmenta o tempo para desativar sua produtividade tornando-o um tempo condensado (kairos) na vivência não produtiva da vida, que é a vivência mística da existência. A disciplina é uma técnica nevrálgica do controle biopolítico. A regula vitae, pelo contrário, escande a vida no tempo para qualificar a vivência da vida além de qualquer controle, já que a vivência mística da vida desativa sua captura produtiva. 

 

XII - A liturgia da vida 

Agamben sinaliza a raiz política originária da leitourgia, que nunca saiu definitivamente do modo litúrgico de viver. O termo grego leitourgia deriva de laos (povo) e ergon (obra). Seu sentido originário era o de “prestação pública ou serviço para o povo”. O sentido do termo leitourgia está vinculado originariamente ao campo da política, mais especificamente denominavam-se leitourgia aquelas prestações voluntárias que cidadãos da pólis decidiam fazer em favor da cidade assumindo os ônus das mesmas. Os cidadãos que decidiam oferecer uma leitourgia para a pólis propunham a oferta na ágora pública da cidade e, se aprovada, ficavam responsáveis pela execução e custos da mesma. A leitourgia era uma doação ou serviço voluntário à pólis, sem contraprestação. 

Os rabinos de Alexandria que traduziram a Bíblia do hebraico para o grego, denominados de 70, decidiram utilizar o termo leitourgia para traduzir a palavra hebraica sheret, que significa servir. O termo sheret é utilizado habitualmente na Bíblia para designar os cultos do templo. O cristianismo continuou a utilizar o termo liturgia no sentido da tradução dos 70, porém Agamben reforça a tese de que a origem política da leitourgia nunca abandonou totalmente a liturgia cristã.

 

XIII 

A regula vitae propõe criar um modo de subjetivação que se diferencia do fiel hasidim do judaísmo, do patrício romano, do eupátrida grego e até do epimeleia heautou filosófico. A densa relação que se estabelece entre regra e vida conduz a vida a um modo regrado de viver em que a regra só existe como vida. O limiar dessa relação torna-se uma indistinção entre a regra e a vida. O horizonte ao que aspira essa forma-de-vida é a liturgia, ou seja, almeja-se viver uma vida como liturgia plena ou tornar a liturgia uma forma-de-vida. Deste modo, a regra foge radicalmente do campo jurídico da lei e da norma para criar uma forma-de-vida além da lei, um modo de viver que desativa toda lei e torna inoperante qualquer direito normativo.

A regra transformada em vida orientava o viver do monge para o modo litúrgico de existência. O objetivo da vida do monge era transformar todos os momentos da vida numa forma de celebração ou oração fazendo da vida uma liturgia e da liturgia uma vida. O limiar de indiscernimento entre regra e vida atingia seu clímax na vivência litúrgica da regra ou na celebração permanente da vida. 

A indistinção da regra com liturgia entrou numa linha de confronto com o conceito de liturgia que a Igreja hierárquica tinha desenvolvido ao longo dos séculos III e IV. Oficiar a liturgia oficial era privilégio do sacerdócio, e não uma prática acessível ao povo (laicos). O monacato subverte o privilégio hierárquico da liturgia propondo que a vida se torne um officium constante em que todos oficiam sem distinção uma liturgia permanente da vida O monacato produz um outro sentido da liturgia como officium. Esse officium tem suas horas diárias de oração em comum, denominado de ofício das horas, mas o resto das horas do dia e seus afazeres são transformados em ofício pela regra que se torna vida e a vida que vive a regra. 

A forma de vida como liturgia ininterrupta, também denominada opus Dei, é a novidade do monasticismo, mas também o desafio que terá que enfrentar. Os monges cancelam a separação entre hierarquia e liturgia ao fazer da liturgia uma forma de vida e da forma de vida uma liturgia. Esta prática institui um limiar de indiscernibilidade entre liturgia e vida que sempre estará carregado de tensões.

 

XIV 

O ideal da forma de vida litúrgica aproxima-se, mutatis mutandis, ao modelo grego do bios theoreticos almejado pelos gregos como expressão máxima da vida humana. As formas de vida da regula vitae sinalizam a mística, estética e o amor como ideais do viver. A forma de vida da regula vitae almeja atingir o patamar de indiscernimento da regra e da vida na vivência mística da vida. A vivência mística conjuga o prazer da experiência estética e o gozo da relação afetiva. Na filosofia contemporânea vários autores delinearam linhas de fuga e resistência aos controles biopolíticos propondo, para tanto, constituir modos de subjetivação numa dimensão estética ou amorosa da existência. Foucault denominava esta prática de ética e estética da existência, Hannah Arendt  fala da vida do espírito ou vida contemplativa, Benjamin, de messianismo. A ênfase diferenciada destas diversas perspectivas filosóficas a respeito do paradigma da vida humana nada mais faz do que conjugar três dimensões inerentes ao ser humano — estética, afetiva e mística — que coexistem imbricadas numa experiência única da vida que os clássicos denominavam de bios theoreticos.

Agamben também se propõe o objetivo de desenhar linhas de fuga e resistência aos dispositivos de controle biopolítico contemporâneos. Para tanto, propõe reconsiderar a noção de potência do não como dimensão da ação humana que deverá constituir a política que vem. A potência do não é capaz de desativar os dispositivos utilitaristas de vida introduzindo a possibilidade da inoperosidade da vida como horizonte político da sua existência. Estas categorias (potência do não e inoperosidade) são elementos constitutivos da política que vem. O peculiar da pesquisa de Agamben sobre a regula vitae mostra que essas categorias encontraram-se desenvolvidas como paradigma nas práticas da regra de vida e na sua vivência litúrgica. A genealogia destas práticas mostra a possibilidade de criar uma linha de fuga e resistência numa forma de vida capaz de viver além do direito, na qual está presente uma inoperosidade que desativa dispositivos de captura e controle da vida.

Agamben sublinha que a ênfase que a filosofia ocidental assinou à theoria como a capacidade contemplativa da vida está relacionada com a inoperosidade como categoria política. A práxis da vida propriamente humana é aquela que, possuindo a potência do não, é capaz de tornar inoperantes as funções programadas e os programas predefinidos para a vida fazendo girar seu agir em torno de um vazio da potência que abre sua ação para horizontes imprevisíveis. Para Agamben, contemplação e inoperosidade são operadores da antropogênese que liberam o ser humano de qualquer destino biológico ou social e da predeterminação programada de sua ação, deixando-o aberto para aquela particular “ausência de obra” que costumamos denominar de política e arte.

 

Leia mais...

Confira os outros artigos da série “O cuidado de si e a forma de vida. As práticas éticas e a constituição do sujeito. Entrecruzamentos de P. Hadot, M. Foucalt e G. Agamben”:

- A Filosofia como forma de vida. Pierre Hadot, a filosofia antiga e os exercícios (askesis) do espírito. Publicada na IHU On-Line 461, de 23-03-2015;

- A Filosofia como forma de vida (II). Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia). Publicada na IHU On-Line 466, de 01-06-2015;

- A filosofia como forma de vida (III). Do cuidado de si ao deciframento de si. Publicada na IHU On-Line 467, de 15-06-2015.

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