Edição 467 | 15 Junho 2015

As mazelas das cidades e as doenças urbanas

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João Vitor Santos

Entrevista de Eventos - Para a médica Maria Inês Azambuja, o verdadeiro desenvolvimento sustentável dos grandes centros oferece espaços dignos, qualidade de vida e promoção da saúde de seus habitantes

Quem mora mal, vive mal e adoece. A constatação é elementar e traz pouca novidade. Porém, a médica Maria Inês Azambuja apresenta a ideia de saúde urbana como algo mais amplo. Na sua percepção, não é só a falta de coleta de esgoto e lixo e de moradias em estado precário que fazem as pessoas adoecerem. Falta de escola, condições dignas de trabalho, oferta de alimento saudável a preço acessível e até mesmo falta de espaços públicos para convivência e lazer podem levar as pessoas a enfermidades. É como se o mal das grandes cidades, e todo estresse desta forma de vida, trouxesse as doenças urbanas. “Nossas principais cidades cresceram em 50, 60 anos o que as cidades europeias cresceram em 100. Com o agravante de que, a partir da década de 1980, enfrentamos pelo menos 20 anos de estagnação econômica, com taxas de natalidade ainda elevadas. Não surpreende então o enorme déficit de infraestrutura física e de desenvolvimento social que persiste em nossas cidades, com grande desigualdade espacial (segregação urbana). O resultado é mais adoecimento e mortes”, conclui, ao defender o conceito de saúde urbana.

Maria Inês detalhará este conceito em conferência no IHU ideias da próxima quinta-feira, dia 18-06-2015. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a médica antecipa pontos de sua palestra “As agendas globais para a Saúde e o Desenvolvimento sustentável, e nós...”. E o ponto central para a pesquisadora é o de que desigualdade social não pode ser combatida com mais serviços de saúde. “É preciso ir à raiz do problema e corrigir as causas (a pobreza e a segregação social). Para corrigir as causas, é preciso ir ainda mais além e discutir e enfrentar a causa das causas, ou seja, as relações de poder que, em nosso caso, fazem do Brasil ao mesmo tempo uma das maiores economias do mundo e um dos campeões de desigualdades sociais.” Para ela, o caso do retorno da dengue, por exemplo, é mais do que um problema de saúde. “Necessita intervenção intersetorial e participação ativa das comunidades. O que não se restringe a esvaziar os potinhos de água dentro de casa. Requer modificar os espaços urbanos de forma a melhorar as condições de habitação e evitar o acúmulo de lixo nas vias públicas e em terrenos abandonados e áreas verdes.”

Maria Inês é graduada em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com Residência em Medicina Interna, mestrado em Epidemiologia pela Universidade da Califórnia, Los Angeles, e doutorado em Medicina - Clínica Médica, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Foi sanitarista do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, aposentada em junho de 2009. Tem experiência na área da epidemiologia de doenças cardiovasculares/promoção da saúde do adulto, e saúde do trabalhador. É ex-colaboradora no PPG-Epidemiologia da UFRGS. Atualmente, é professora adjunta em regime de dedicação exclusiva no Departamento de Medicina Social da UFRGS.

Maria Inês Azambuja apresenta a palestra As agendas globais para a Saúde e o Desenvolvimento sustentável, e nós... na próxima edição do IHU ideias no dia 18-06-2015, a partir das 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - No que consiste a ideia de saúde urbana e como pode/deve ser implementada?

Maria Inês Azambuja - Há um diálogo em uma série da PBS  de 2008 que trata de desigualdades sociais e a saúde, chamada “Unnatural causes: Places matter”, que eu gosto de reproduzir, porque acho que explica bem a nossa perspectiva sobre a ideia de saúde urbana: 

[...] - Blackwell: A primeira coisa necessária é reconhecer que onde você vive impacta na sua saúde. Que o ambiente na comunidade, o ambiente social e o econômico juntos, determinam se teremos ou não uma existência saudável.

[...] - Williams: Isto significa que política de habitação é política de saúde. Educação é política de saúde. Política antiviolência é política de saúde. Políticas de melhorias nos bairros são políticas de saúde. Tudo que nós fizermos para melhorar a qualidade de vida dos indivíduos na sociedade tem impacto na sua saúde e é política de saúde.

Nossa urbanização foi muito mais rápida e intensa do que a urbanização na Europa nos séculos XVIII e XIX. Nossas principais cidades cresceram em 50, 60 anos o que as cidades europeias cresceram em 100. Com o agravante de que, a partir da década de 1980, enfrentamos pelo menos 20 anos de estagnação econômica com taxas de natalidade ainda elevadas. Não surpreende então o enorme déficit de infraestrutura física (habitação, saneamento, transporte) e de desenvolvimento social (educação, qualificação profissional, trabalho, renda, segurança, saúde) que persiste em nossas cidades, com grande desigualdade espacial (segregação urbana). O resultado é mais adoecimento e mortes onde há mais pobreza, más condições de habitação, pouco estudo formal...

Em 2014, O PNUD  lançou o mapa metropolitano de desenvolvimento social. Em dezembro de 2014, o PNUD lançou o Atlas Metropolitano de Desenvolvimento Social que, a partir dos censos do IBGE de 2000 e 2010, possibilita o acesso facilitado a indicadores sociodemográficos de desenvolvimento humano municipal (IDHMs) desagregados para microáreas socialmente mais homogêneas (unidades de desenvolvimento humano – UDHs) dos municípios de cada uma das Regiões Metropolitanas do Brasil. O mapa abaixo representa a associação espacial entre médias de renda per capita e indicadores de saúde (mortalidade infantil e longevidade) em 335 microáreas de Porto Alegre .

Quando a renda per capita cai abaixo de 1.500,00 reais em média na microrregião (ou seja, a segregação social com predomínio de pobres é muito alta), os dois indicadores de saúde sofrem uma transição impressionante.

Esta desigualdade não pode ser enfrentada apenas com mais serviços de saúde. É preciso ir à raiz do problema e corrigir as causas (a pobreza e a segregação social). E, como diz o professor Michael Marmot , líder da Comissão de Determinantes Sociais da Saúde da Organização Mundial da Saúde, para corrigir as causas é preciso ir ainda mais além e discutir e enfrentar a causa das causas, ou seja, as relações de poder que, em nosso caso, fazem do Brasil ao mesmo tempo uma das maiores economias do mundo e um dos campeões de desigualdades sociais. 

A Europa viveu a mesma situação que estamos vivendo hoje na metade do século XIX. No auge do movimento pela Reforma Médica de 1848, e em meio a epidemias de tifo e cólera, o médico alemão Rudolf Virchow  já recomendava que, ao invés de mais médicos e mais hospitais, era necessário um programa de reconstrução social. Tal programa deveria incluir pleno emprego, salários mais altos, cooperativas de agricultura e educação universal. A ele é atribuída a frase: “A Medicina é uma ciência social, e a política nada mais é do que medicina em grande escala”. Para fazer avançar a Saúde Urbana, precisamos então de mais política.

 

IHU On-Line - Como articular o desenvolvimento sustentável, associado à saúde e desenvolvimento econômico e social?

Maria Inês Azambuja - Novamente, podemos nos inspirar na Europa do século XIX. Vários estudiosos da Europa mostraram, à época, a associação entre pobreza e adoecimento, entre eles Edwin Chadwick (1800-1890) , advogado, utilitarista e servidor público. Ele publicou em 1842 um grande estudo denominado Report on the Sanitary Condition of the Labouring Population of Great Britain. A partir deste estudo investiu em convencer as elites econômicas, técnicas e políticas, de que melhorar as condições de vida e de saúde da população era uma questão econômica, de Estado, já que a doença e a pobreza colocavam limites ao crescimento da Inglaterra.

No Brasil, este tipo de argumentação ainda sensibiliza pouco quem tem poder de produzir mudança (nossos financiadores de campanhas eleitorais). Mas estamos aparentemente entrando em um novo momento, por iniciativa de atores econômicos globais. Se por aqui ainda não entendemos que desenvolvimento social é bom para todos, os investidores globais já identificaram os investimentos em desenvolvimento de infraestrutura urbana como um novo mercado. Como somos muito sensíveis ao discurso global, acredito que, em breve, estejamos todos mais abertos também aqui a propostas de reforma urbana e mais investimento social há muito necessários nas nossas cidades.

 

IHU On-Line - Quais os maiores desafios nos processos de formação e de trabalho em saúde urbana?

Maria Inês Azambuja - O principal desafio, me parece, é nossa dependência cultural. Nossa formação reproduz a fragmentação e especialização do conhecimento que existe nos países centrais, mas com muito baixo retorno em termos de inovação tecnológica — que seria o que lá a justifica. Copiamos então o modelo de formação (a ideologia), mas temos que importar toda a tecnologia (e pagar royalties). 

Toda esta dependência tem sido acentuada por critérios impostos para a valorização dos nossos professores universitários, formadores das próximas gerações. Para ascender na carreira e em prestígio acadêmico, é preciso publicar em Inglês nas revistas do primeiro mundo. A pergunta que deveríamos nos fazer é: será que os interesses nacionais são os mesmos dos interesses de quem financia estas publicações? Ou acreditamos que a ciência é neutra?

 

IHU On-Line - Que doenças podem ser geradas (de forma mais direta) pelas desigualdades sociais?

Maria Inês Azambuja - Todas! Mostro no gráfico anterior como a mortalidade infantil é diferente nas áreas com renda média per capita diferente. Uma área socialmente segregada tem tudo o que há de ruim. Habitação é precária, falta urbanização, más escolas e professores desmotivados, falta de comércio local de alimentos saudáveis, falta de espaços de lazer (praças, cinemas, outros espaços de socialização), e por aí vai. 

Nestes ambientes há maior incidência de diarreia, mais infecção respiratória, mais asma, mais obesidade infantil, mais depressão, mais doenças crônicas, piores condições de trabalho e mais sequelas de acidentes, de partos mal feitos, de outros traumas maltratados. E, ainda, pior acesso aos serviços médicos de saúde.

 

IHU On-Line - Como entende o conceito de saúde preventiva?

Maria Inês Azambuja - Normalmente confundimos um pouco os conceitos de prevenção de doenças e promoção da saúde. Prevenção significa agirmos sobre algum fator para tentarmos evitar uma condição específica ou um grupo de condições. Por exemplo: vacinamos para prevenir doenças infecciosas, fazemos campanha contra o álcool para evitar acidentes de trânsito e campanhas contra o fumo para reduzir o câncer de pulmão (e outros) e as doenças do coração. Promoção da saúde é mais amplo: é favorecer que as pessoas tenham desenvolvimento pleno de seu potencial. Isto é, tenham um bom pré-natal para que o desenvolvimento fetal seja adequado, um parto bem atendido, uma alimentação e proteção adequadas e estímulo físico e intelectual na infância. Sabe-se que muitas das doenças crônicas dos adultos dependem das condições intrauterinas e da primeira infância dos bebês.

 

IHU On-Line - Quais são as doenças que mais afastam trabalhadores no Brasil? Como reverter esse quadro?

Maria Inês Azambuja - São as doenças osteomusculares e as doenças mentais. Com baixa qualificação, os trabalhadores têm muitas vezes apenas o corpo para vender. Na geração que hoje tem mais de 50 anos, muitos começaram a trabalhar ainda no campo, muito cedo na infância. Na geração mais jovem, a baixa escolaridade ainda joga muita gente para trabalhos braçais. O corpo não aguenta fazer muita força por muitos anos. Assim, temos um grande número de brasileiros com dor osteomuscular crônica que incapacita para o trabalho. 

Também a falta de perspectiva, o trabalho sem conteúdo, o desemprego, a violência doméstica, a desilusão dos mais jovens com o que podem ganhar trabalhando. E ainda há aí fora o estímulo para consumir, a oferta de drogas e álcool. Todos esses fatores formam o caldo de cultura para a depressão, a ansiedade e o abuso químico.

 

IHU On-Line - Qual a sua avaliação sobre a saúde pública no Brasil hoje? Como reverter esse quadro?

Maria Inês Azambuja - Não há solução mágica. Creio que precisamos investir seriamente em reforma urbana e social e proteger as crianças. É delas que depende o futuro do país. Por isso, precisamos discutir nossa política universitária, para que ela converse com as políticas públicas e sociais a serem priorizadas no país, e valorizar o nosso Sistema Único de Saúde - SUS. Poucos países se propõem a oferecer cuidados de saúde sem custo na ponta. Sem o SUS, os custos do atendimento de doenças a acidentes seriam catastróficos inclusive para a classe média. Mas sabemos que antes disto precisamos de uma reforma política que aproxime nossos representantes oficiais de quem eles deveriam representar. 

 

IHU On-Line - A dengue é um problema em todo o Brasil. Há alguns anos, havia sido erradicada do país. De que forma podemos entender a volta da doença? Quais as particularidades para combater a dengue hoje em comparação ao que foi no passado?

Maria Inês Azambuja - Até a década de 1970, epidemias de Dengue eram notificadas por apenas nove países, na maior parte no sudeste asiático. Mas, coincidindo com a urbanização acelerada da população na América Latina, a região passou a contribuir com o maior número de casos anuais da doença no mundo. No Brasil, estima-se que a reintrodução do mosquito transmissor ocorreu entre 1976 e 1977, acompanhando as mudanças sociais e ambientais relacionadas à urbanização. Ocorreram grandes epidemias no país em 1986, 1990-91 e 1997-98, a cada vez que um novo tipo do vírus era introduzido. 

Agora, temos acompanhado esta grande epidemia em São Paulo. O Sul esteve relativamente protegido pelo clima mais temperado. O Rio Grande do Sul só teve os primeiros casos autóctones (contraídos aqui) detectados em 2007, e, só em 2013, Porto Alegre teve mais casos autóctones do que importados. Por enquanto, os números agora ainda estão abaixo dos de 2013. 

A dengue, como tantos outros problemas nas grandes áreas urbanas e metropolitanas, embora se expresse na área da saúde, não é um problema somente de saúde. Necessita intervenção intersetorial e participação ativa das comunidades. O que não se restringe a esvaziar os potinhos de água dentro de casa. Requer modificar os espaços urbanos de forma a melhorar as condições de habitação e evitar o acúmulo de lixo nas vias públicas e em terrenos abandonados e áreas verdes, que favorecem a reprodução do vetor.

 

IHU On-Line - O Brasil corre o risco de ver outras doenças, como ocorreu com a Dengue, voltarem? Quais doenças e o que deve ser feito para contê-las?

Maria Inês Azambuja - Quando há uma aglomeração grande de pessoas como nas nossas cidades — especialmente nas regiões metropolitanas — qualquer doença que aumente só um pouco se torna uma grande crise para o sistema de saúde. O próprio sistema não está dimensionado para atender nem a rotina. Todos os invernos temos relatos sobre a incapacidade das nossas emergências de darem conta daquilo que é cíclico, previsível: mais casos de doenças respiratórias e do coração. Então, qualquer epidemia de diarreia por norovírus (um vírus comum no verão), pode se tornar uma tragédia. Vírus respiratórios como o Influenza (vírus da gripe) sempre têm potencial para provocar número elevado de casos em período concentrado de tempo. E é claro que outras epidemias mais graves podem acontecer, como foi o caso do cólera no Haiti depois do terremoto.  

 

IHU On-Line - Como avalia o programa Mais Médicos? Em termos de política de saúde pública, qual seria uma alternativa viável ao programa?

Maria Inês Azambuja - Fui e sou contra o Programa. Temos um problema de formação na área da Saúde Pública: nunca nos perguntamos “Quanto custa?”. Ou nos deixamos convencer por quem tem grande interesse econômico em nos vender algumas ideias, como, por exemplo, a de que priorizar o tratamento de pessoas saudáveis (com médicos e medicamentos para que elas não fiquem doentes), é mais barato que tratá-las quando adoecerem. Não acho que isto seja verdade, nem que possamos nos dar ao luxo de procurar pessoas com risco aumentado de doença (porque tem pressão alta e não sabe) quando não conseguimos ainda tratar as que já estão doentes (não enxerga porque tem catarata, tem sequela de acidentes de trânsito, precisa baixar por agravamento de doença crônica, tem câncer, etc.).

Este modelo que prioriza a atenção básica nos é imposto de fora, pela agenda global, que hoje preconiza a cobertura universal da população de todos os países, seja via sistema público, seja via seguro. A consequência é a medicalização de todos os problemas sociais — e, claro, na expansão do mercado mundial de medicamentos e equipamentos de saúde.

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Maria Inês Azambuja - Possivelmente por ver a indústria biomédica faturando tanto em nossos países, há outras indústrias se organizando para disputar uma fatia dos nossos recursos. Vem aí a agenda do desenvolvimento sustentável pós-2015, agora focada em infraestrutura urbana e desenvolvimento social. Como vamos nos preparar para ela? ■

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