Edição 467 | 15 Junho 2015

A conversa como remédio

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Leslie Chaves | Tradução: Joseane de Souza

O pesquisador Douglas Maynard chama atenção para o fato de que o início do contato entre médico e paciente pode interferir no andamento de toda a consulta; o modo como é realizada a abordagem na chegada é capaz de influenciar o resultado final desse encontro

A relação entre médico e paciente envolve uma série de variáveis que participam desde o momento da consulta até a aplicação do tratamento. Entre esses elementos envolvidos nos processos terapêuticos médicos está a linguagem, que constrói o diálogo, principal fundamento da interação que propicia o atendimento.

É a partir dessa interação realizada através da linguagem em uso que as diversas etapas de uma consulta médica se desenvolvem e que se constroem os vínculos entre as partes envolvidas neste momento. “Cada fase da consulta é importante, porque a questão da confiança está ubiquamente presente. Um médico pode ser um especialista em fazer diagnóstico e dar notícias diagnósticas, mas se ele ou ela não iniciar o encontro de uma maneira eficiente (diferenciando um ‘como vai?’ ‘social’ de um ‘como vai?’ ‘diagnóstico’, por exemplo), isso pode afetar o restante da consulta”, ressalta Douglas Maynard em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Dessa forma, a conversa entre médico e paciente, além de ter o objetivo de informar problemas de saúde e fazer prescrições, também constitui uma parte do tratamento, uma vez que intervém diretamente no diagnóstico e na terapia adequados. Na entrevista, Douglas Maynard destaca ainda que, para além dos diálogos específicos sobre enfermidades, estão em jogo diferentes papéis sociais, além dos envolvidos em uma consulta médica, e fluxos de poder. “A ‘fala sobre assuntos cotidianos’ é frequentemente igualitária no sentido de poder ser iniciada por quaisquer das partes, e ela pode mudar as assimetrias de conhecimento que, do contrário, podem estar presentes.”

Douglas Maynard é professor e pesquisador titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, professor visitante honorário na Finlândia e membro do núcleo Harold Garfinkel. Em 2014, foi eleito Presidente da International Society for Conversation Analysis - ISCA.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é a importância e o papel da linguagem na interação entre médico e paciente em um atendimento?

Douglas Maynard - É muito importante. Quando eu leciono sobre “linguagem”, eu prefiro o termo “linguagem em uso”, porque linguagem é algo que usamos quando nos reunimos com os outros, e “linguagem em uso” permite um sentido de dinamismo que é característico de como interagimos. Do conceito de linguagem em uso, é possível passar ao entendimento de que nós usamos a linguagem para realizar ações sociais de diferentes tipos.

 

IHU On-Line - A partir da análise das ações realizadas pelos participantes, de que forma as características da relação social entre as pessoas, como a construção da confiança, a disposição para o diálogo, etc., refletem-se ou são construídas na consulta? Você considera que há momentos específicos para elas de acordo com as fases da consulta? 

Doug Maynard - Cada fase da consulta é importante, porque a questão da confiança está ubiquamente presente. Um médico pode ser um especialista em fazer diagnóstico e dar notícias diagnósticas, mas se ele ou ela não iniciar o encontro de uma maneira eficiente (diferenciando um como vai? “social” de um como vai? “diagnóstico”, por exemplo), isso pode afetar o restante da consulta. 

 

IHU On-Line - O termo “interação” apresenta diversas concepções. Você poderia falar um pouco sobre esse conceito quando aplicado à interface entre interação e saúde, especificamente ao se pensar a comunicação entre médico e paciente?

Douglas Maynard - Como analistas da conversa, nós vemos nosso trabalho como sendo sobre “fala-em-interação” (que é um termo de Emanuel Schegloff ). Quando produzimos um turno de fala, ele toma forma a partir do que vemos e ouvimos nosso interlocutor fazer, dizer ou, talvez, omitir em certos momentos. Como participantes na interação, nós não simplesmente criamos enunciados na nossa cabeça e os lançamos de qualquer maneira na arena social. Nós medimos como aquilo que dizemos está sendo recebido e rapidamente mudamos o curso de um enunciado de acordo com isso.

 

IHU On-Line - Como o contexto em que acontecem as interações — desde as identidades preestabelecidas de médico e paciente no evento “consulta médica” até as condições do local onde ocorre o atendimento — pode fazer parte da construção das interações entre médico e paciente?

Douglas Maynard - A questão do contexto é importante. Analistas da conversa focam principalmente no contexto “sequencial” de um turno de fala. Nós queremos ver como o turno está lidando com o que foi dito anteriormente e como ele projeta o que deve vir no turno seguinte. Para o nível de contextos maiores — as prerrogativas da clínica, os papéis de médico e paciente e outras questões que são relevantes para a análise —, nós queremos ver como os participantes os mostram na maneira como dão forma aos contextos mais imediatos, sequenciais. Por exemplo, o “fazer” ser um médico pode significar iniciar sequências de perguntas e respostas mais regularmente do que a pessoa que está a “fazer” ser paciente, que está frequentemente na posição de produzir a segunda parte (a resposta) de tais sequências. Contudo, também acontece que outros tipos de sequências e outros tipos de papéis podem ser invocados durante a consulta médica. A “fala sobre assuntos cotidianos” é frequentemente igualitária no sentido de poder ser iniciada por quaisquer das partes, e ela pode mudar as assimetrias de conhecimento que, do contrário, podem estar presentes.

 

IHU On-Line - A abordagem da Análise da Conversa é utilizada em um de seus livros como fio condutor para a coleta e a interpretação de dados nas pesquisas. A partir dessa técnica, que sentidos podem ser apreendidos das interações especificamente entre médico e paciente? Você poderia falar um pouco sobre como se processa esse tipo de análise?

Douglas Maynard - Como dito anteriormente, analistas da conversa tendem a focar em ações sociais enquanto elas são produzidas na interação. “Significados” ou “significado”, como tais, podem ser considerados como derivados de como os participantes usam as ações sociais para construir cursos de conduta como um todo.

“Significado” é uma abstração da concretude da ação social, e embora se possa dizer que a vida social tem significado para seus participantes e membros, isso se deve ao fato de que eles sabem como agir em conjunto uns com os outros para produzir ações coordenadas. Nos meus estudos sobre entrega de notícias diagnósticas (por exemplo, Bad News, Good News: Conversational Order in Everyday Talk and Medical Settings (Chicago: University Of Chicago Press, 2003)), o foco é em como médicos entregam notícias diagnósticas e, correspondentemente, como pacientes ou membros da família recebem tais notícias. O “significado” de um diagnóstico é sempre particular e algo que os participantes exibem exatamente nas maneiras como se engajam nessas práticas de entrega e recepção.   

 

IHU On-Line - Como essa perspectiva metodológica e analítica (da Análise da Conversa) pode contribuir para a vida social como um todo? Como pode contribuir para outros contextos interacionais, incluindo os profissionais? 

Douglas Maynard - Eu vejo a análise da conversa profundamente relacionada com o campo da etnometodologia. Etnometodologia significa literalmente “o estudo dos métodos dos membros” ou, explicado de outra forma, o estudo das práticas de senso comum ao se fazer coisas conjuntamente. Ao expormos ou considerarmos “estranhas” as nossas práticas de senso comum que são tipicamente “familiares”, nós mostramos exatamente o que cria esforços profissionais (e outros) como ambientes de tais práticas. Muitas profissões já se beneficiaram disso e muitos profissionais expressaram sua apreciação por um tipo de análise que pode revelar o que eles/elas realmente fazem, mas de que nem sempre se dão conta porque é rotineiro e de “senso comum”. Então, se nós sabemos o que as profissões realmente fazem e no que suas atividades consistem concretamente, torna-se possível entender como ser mais eficiente.

 

IHU On-Line - Em seu livro Communication in medical care: interaction between primary care physicians and patients (Cambridge: Cambridge University Press, 2006), você define consulta médica como “ocasião que é, simultaneamente, social e médica”. Nesta obra, o senhor defende a importância da inclusão de análises quantitativas em estudos qualitativos, com o objetivo de gerar considerações mais genéricas sobre esse tipo de interação. Quais seriam os propósitos dessas conclusões mais gerais para os estudos sobre as consultas médicas, evento que apresenta tantas especificidades a cada caso?

Douglas Maynard - Eu não diria que o uso de investigação quantitativa torna as coisas mais universais. Nossos estudos de práticas sociais têm uma “universalidade” porque as práticas têm uma característica genérica. Elas podem ser encontradas em um único contexto e ter aplicabilidade em outros ambientes. O que os estudos quantitativos podem fazer é mostrar como as práticas são distribuídas entre participantes ou ambientes ou fases da consulta, e também se o fazer algo de uma maneira em vez de outra tem um efeito nos resultados específicos. Eu fiz mais trabalho quantitativo com interações em pesquisas de opinião (enquetes) do que em interações médicas, e nós fomos capazes de mostrar que as maneiras específicas de um entrevistador pedir para falar com o suposto entrevistado, ou pedir para fazer a entrevista propriamente dita, pode afetar a chance de conseguir uma entrevista.    

 

IHU On-Line - Diferenças entre a linguagem dita profissional (utilizada pelo médico) e a linguagem dita “leiga” (utilizada pelo paciente) podem gerar problemas interacionais e, consequentemente, no diagnóstico, na decisão e na prescrição do tratamento adequado? De que maneira essas negociações acontecem a partir da linguagem? Existe algum conflito mais frequente?  

Douglas Maynard - Eu creio que você esteja se referindo ao uso de jargão médico. Eu certamente acredito que isso possa ser um problema. Minha opinião a respeito de como evitar ou minimizar esse problema é sugerir que os médicos perguntem aos pacientes o que eles/elas entendem sobre o que está sendo dito. Na verdade, quando eu estudava entrega de diagnósticos, uma ferramenta me pareceu particularmente útil aos médicos. Eu a chamo de sequência de apresentação de perspectiva. Quando fazem um diagnóstico e estão se preparando para comunicá-lo aos pacientes ou familiares, alguns médicos perguntam aos seus interlocutores o que eles/elas acham que está acontecendo. Dessa forma, os médicos descobrem o que os pacientes sabem ou acreditam sobre suas próprias condições e o quão provavelmente eles/elas entenderão — ou até mesmo aceitarão — o que a clínica encontrou ou diagnosticou. Nem todos os pacientes querem ouvir perguntas — eles/elas querem respostas —, mas para aqueles que querem, esta é uma forma muito eficiente de proceder, e pode ajudar a proteger contra o uso do jargão. Isto acontece porque, uma vez que o médico conhece a perspectiva do paciente ou de sua família, é possível adaptar ou ajustar a terminologia clínica cuidadosamente ao que os interlocutores disseram.

 

IHU On-Line - De que maneira os profissionais da saúde que lidam diretamente com os pacientes podem se preparar para ter um bom aproveitamento da consulta médica atingindo o objetivo individual de cada consulta?

Douglas Maynard - De fato, sei que é importante estar pronto e “centrado” ao se preparar para se reunir com pacientes e seus familiares. Há cursos e sociedades profissionais dedicadas a preparar médicos para uma melhor comunicação. Por exemplo, há a American Academy on Communication in Healthcare (AACH). Relacionada a isso também há a International Conference in Communication in Healthcare (ICCH), que acontecerá em Nova Orleans, Louisiana, em outubro de 2015.

 

IHU On-Line - Quais os locais no mundo em que médicos, já em sua formação, abordam questões da fala-em-interação em sua prática profissional? Há cursos que fazem isso? Poderia nos explicar mais sobre como essa formação funciona e quais os resultados práticos de incluir esse tipo de instrução no currículo da formação médica?

Douglas Maynard - Não estou diretamente envolvido no treinamento de médicos. Nos EUA, mais faculdades de medicina estão requerendo treinamento com comunicação como parte de seus currículos. Alguns desses programas têm analistas da conversa envolvidos ou consultam tais analistas ou usam o trabalho da análise da conversa (AC). Meu colega, Prof. Richard Frankel, é uma das pessoas que incluem a AC no currículo e em sua pesquisa; ele ensina na Indiana University of Medicine e é o diretor do Programa de Pesquisa e Educação em Cuidado Paliativo na Universidade de Indiana. ■

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