Edição 467 | 15 Junho 2015

A linguagem e a racionalização das emoções no mundo do trabalho

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Leslie Chaves e Ricardo Machado

Maria do Carmo Oliveira explica como as linguagens no trabalho estabelecem uma nova ordem interacional, racionalizando inclusive os afetos

Um novo tipo de abordagem da linguística no âmbito da administração tem oferecido aos pesquisadores, antes considerados outsiders no espaço corporativo, um novo ramo de atuação. “Além da imersão (do linguista) no campo, procura-se conjugar o saber científico ao saber prático dos profissionais, o que viabiliza a produção de conhecimento novo e relevante para a área em estudo”, explica a professora e pesquisadora Maria do Carmo Oliveira.

Os avanços tecnológicos, que permeiam grande parte da sociedade, promoveram uma revisão profunda nos conceitos e padrões das interações face a face. “Se uma organização quer fomentar uma cultura de integração entre as pessoas, entre as áreas e entre a cúpula e a base, ela precisa examinar suas práticas comunicativas cotidianas para identificar o que dificulta essa integração”, exemplifica Maria do Carmo.

Imersos em uma dinâmica e em uma sociedade tecnocientífica, os processos de interação são marcados, também, por uma racionalização do afeto, estabelecendo certos padrões de comportamento. “O rótulo refere-se ao modo como determinados papéis e tarefas exercem um controle implícito ou explícito sobre a expressão das emoções, de modo a torná-las adequadas ao que se espera de alguém num determinado papel ou função profissional”, pontua. “Um exemplo é a máscara da simpatia que as organizações, em princípio, exigem de prestadores de serviço, sejam eles um atendente de call center ou um comissário de bordo”, esclarece. 

Maria do Carmo Oliveira é graduada em Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Realizou mestrado e doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio De Janeiro – PUC-Rio, com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa, Portugal. Atualmente é professora do Departamento de Letras e Supervisora de Graduação na PUC-Rio. Atua nos cursos de formação de professor, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem e na interface dos estudos da Linguagem e da Administração. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são os principais eixos de estudos sobre a interface trabalho e linguagem? Que contribuições essas pesquisas podem trazer para as duas áreas e para os perfis dos profissionais pesquisados e dos linguistas?

Maria do Carmo Oliveira - A noção de trabalho, na área da Linguística Aplicada, foi durante muito tempo relacionada, mais restritamente, ao contexto profissional da educação e com foco na prática de ensino e aprendizagem, especialmente de segunda língua. Só a partir de meados dos anos 1970, outros contextos profissionais despertaram o interesse dos linguistas aplicados.  

A partir dessa data, a literatura produzida tem sido classificada em três categorias, de acordo com Sarangi,  um especialista em linguagem e comunicação no contexto profissional e organizacional. A primeira delas refere-se aos estudos descritivos de gêneros discursivos, que enfatizam aspectos léxico-gramaticais. A segunda, aos estudos interpretativos da fala-em-interação em ambientes de trabalho, que enfatizam os aspectos discursivos do uso da linguagem. A terceira, a mais recente, aos estudos de agenda intervencionista e centrada em problema, produzidos de forma colaborativa por analistas de discurso e por membros de várias profissões. 

Em termos de Brasil, um exemplo dessa virada, nos fins dos anos 1990, foi a realização de um projeto de pesquisa com foco no discurso e práticas socioculturais em empresas portuguesas e brasileiras, desenvolvido no âmbito de um acordo binacional, com o apoio da Capes e do Instituto de Cooperação Científica e Tecnológica Internacional - ICCTI. Desse projeto, coordenado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e pela Universidade de Lisboa, participaram duas outras universidades brasileiras, uma já com tradição nos estudos descritivos do discurso empresarial, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, e a outra, a Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, que iniciava um projeto de pesquisa interpretativista da fala-em-interação no contexto das audiências do Procon. Um produto desse Acordo foi o 1º Congresso sobre Discourse, Communication and Enterprise, um congresso itinerante que tinha como objetivo aproximar pesquisadores da área da linguagem a pesquisadores e profissionais da área da gestão, marketing, economia, sociologia, psicologia. Hoje este congresso, que já percorreu inúmeros países, já está em 15ª edição, o que mostra o crescente interesse pelo contexto empresarial.

Em termos internacionais, dois outros contextos vêm merecendo uma atenção especial dos linguistas aplicados, contando com congressos e publicações próprias da área. Um deles é o contexto jurídico, representado pelo trabalho pioneiro de Malcolm Coulthard.  Sua expertise em analisar traços lexicais e gramaticais em textos permitiu um trabalho aplicado em tribunais do Reino Unido, demonstrando condenações errôneas em casos de falsificação de confissões por parte da polícia inglesa. Hoje o Brasil tem tido um papel importante na organização da área da linguística forense, organizando eventos da área e publicações. 

Outro contexto que já tem uma tradição de pesquisa é o contexto da saúde. Destaque-se aqui o trabalho de Douglas Maynard,  John Heritage,  Paul Drew  e Srikant Sarangi. É de Maynard e Heritage a edição do livro Communication in Medical Care (Cambridge: Cambridge University Press, 2006), um referencial nos estudos da área da saúde. E é de Drew e Heritage a edição de outro clássico dos estudos da fala-em-interação em contextos profissionais: Talk at Work: Language Use in Institutional and Work-Place Settings (Cambridge: Cambridge University Press, 1993). Já Sarangi, além das publicações, tem contribuído para impulsionar a área da saúde como fundador da publicação Communication and Medicine e do Journal of Applied Linguistics. É também coordenador da Annual Interdisciplinary Conference on Communication, Medicine and Ethics (COMET) e da COMET Society.

A expansão dos contextos de estudo das práticas profissionais e o fato de algumas ciências sociais terem braços específicos para estudar suas relações com o trabalho, como a Sociologia do Trabalho, levou Sarangi (2005) a propor um novo ramo para a Linguística Aplicada: o da Linguística Aplicada das Profissões - LAP. Hoje a LAP já possui a sua revista e tem um congresso anual, o International Conference Applied Linguistics and Professional Practice – ALAPP, este ano em sua quinta edição. 

É característica da LAP o compromisso com a produção de um conhecimento de relevância prática, a participação densa do pesquisador no contexto profissional em estudo, e uma abordagem de pesquisa sustentada pela colaboração dos profissionais pesquisados. Dadas essas características, são evidentes as contribuições tanto para a área da linguagem quanto para a área em estudo; tanto para o linguista como para os profissionais pesquisados. 

No que se refere ao pesquisador — o linguista — destaco como maior contribuição a revisão de seus paradigmas, diante da proposta de uma abordagem colaborativa de pesquisa. O primeiro paradigma quebrado é o da relação do pesquisador com o contexto. O segundo é o do monopólio do conhecimento linguístico na análise de uma prática profissional. O terceiro é o monopólio do conhecimento científico para explicá-la. 

Tradicionalmente, o pesquisador ‘invadia’ um dado campo profissional fora da escola para ‘explorá-lo’, com interesses primordialmente linguísticos. Sua entrada no campo prescindia de um letramento sobre aquela forma de vida e não havia um compromisso com a contribuição para o campo invadido. As interpretações da realidade eram feitas com base no conhecimento linguístico e científico. 

Na nova abordagem, busca-se desconstruir o status de outsider do pesquisador, por meio de um processo de socialização que lhe permita apreender o modo de ver e fazer uma dada prática profissional. Além da imersão no campo, procura-se conjugar o saber científico ao saber prático dos profissionais, o que viabiliza a produção de conhecimento novo e relevante para a área em estudo.  

Para as áreas, o retorno não é menor. Os avanços tecnológicos, por exemplo, não revolucionaram apenas as práticas de atendimento. As interações mediadas pela tecnologia trouxeram também uma revisão dos conceitos e dos padrões descritos para a interação face a face. E o mesmo podemos dizer com relação aos profissionais pesquisados.

É isso que buscamos mostrar no livro, lançado durante o Congresso Internacional Linguagem e Interação 3, Você está entendendo? Contribuições do estudo da fala-em-interação para a prática do teleatendimento (Campinas: Mercado de Letras, 2015), organizado pela Dra. Ana Cristina Ostermann e por mim. A partir da análise da fala-em-interação em teleatendimentos prestados por diferentes setores, as pesquisas ali reunidas oferecem uma explicação nova para os problemas de comunicação em Call Centers e um entendimento renovado da noção de contexto interacional e de participação. A microanálise realizada permite aos profissionais da área pesquisada desnaturalizar o uso da linguagem, desenvolver uma percepção mais aguçada da complexidade do processo comunicativo e a conscientização da importância da capacitação interacional para a realização de atividades centradas na linguagem.

 

IHU On-Line – Como a linguagem, enquanto espaço de interação, se constitui como uma prática de atividade produtiva nas empresas?

Maria do Carmo Oliveira - Como afirma Taylor, um reconhecido teórico canadense da comunicação organizacional, a organização é uma realidade virtual sustentada pela comunicação. Assim como a sociedade, a organização existe quando os indivíduos entram em interação. É nos detalhes da interação que está a totalidade da vida organizacional.

Como o conhecimento sobre linguagem e interação não faz parte da formação de profissionais fora da área de Letras, não há uma consciência de que o comportamento de cada indivíduo participa da construção da organização que as pessoas querem ou não querem. Se uma organização quer fomentar uma cultura de integração entre as pessoas, entre as áreas e entre a cúpula e a base, ela precisa examinar suas práticas comunicativas cotidianas para identificar o que dificulta essa integração. Uma organização fraturada tem menos condições de ser produtiva.

O problema é que o diálogo entre Administração e a área da Linguagem ainda é recente. A visão da eficiência da produção industrial aproximou inicialmente a Administração da Engenharia industrial na busca de métodos científicos aplicáveis para elevar os níveis de produtividade das indústrias. Depois, com o advento dos estudos comportamentais, foram abertas as portas para o diálogo com outras disciplinas, como a psicologia, no que diz respeito ao comportamento do indivíduo, e a sociologia, a psicologia social, a antropologia no que diz respeito ao comportamento do grupo e das organizações. Só muito recentemente, os estudos organizacionais passaram por uma virada discursiva.

No que se refere especificamente à comunicação, só mais recentemente ainda, uma parte da literatura acadêmica vem abandonando a visão de comunicação como um conduíte, mas isso ainda não chega aos manuais sobre comportamento organizacional, que formam os profissionais em Administração. Diante desse quadro, fica mais fácil explicar a aparente contradição de a organização reconhecer a importância da comunicação, mas ao mesmo tempo não ser capaz de agir em relação a isso.

 

IHU On-Line – O que representam para o campo da linguística aplicada os estudos a partir da análise de aspectos das relações sociais em materialidades discursivas (por exemplo, a polidez, o afeto, etc.)? 

Maria do Carmo Oliveira - O paradigma da racionalidade humana teve — e tem — forte influência sobre o que as ciências definem ou privilegiam como objeto de estudo. Um dos aspectos das relações sociais que por muito tempo foi negligenciado é o afeto. A oposição razão/emoção tornou dicotômica a relação cognição/emoção, o que levou as ciências sociais e humanas a não terem olhos para essa dimensão social. O fato também de a razão ter sido associada ao que é lógico e a emoção ao que é ilógico fez com que essas ciências vissem também com maus olhos o que lhes parecia caótico demais para ser apreendido em regras. 

No que se refere especificamente aos estudos organizacionais, uma exceção foram os estudos sobre emotional labor (Hochshild, 1993), ou performance emocional. O rótulo refere-se ao modo como determinados papéis e tarefas exercem um controle implícito ou explícito sobre a expressão das emoções, de modo a torná-las adequadas ao que se espera de alguém num determinado papel ou função profissional. Um exemplo é a máscara da simpatia que as organizações, em princípio, exigem de prestadores de serviço, sejam eles um atendente de call center ou um comissário de bordo. A racionalização do afeto e a orientação utilitária da área devem explicar a vasta literatura que tirou o afeto do limbo. 

Como a Linguística Aplicada não se orienta pelo paradigma da racionalidade, o estudo da polidez/afeto no ambiente de trabalho trouxe um melhor entendimento do processo de coconstrução do afeto. Na área organizacional, o enfoque dado ao afeto é predominantemente cognitivo, os sentimentos mais focalizados são a satisfação ou o prazer/sofrimento com o trabalho, e a abordagem é de natureza quantitativa e do tipo survey. 

Já os estudos qualitativos sobre afeto em Linguística Aplicada ampliaram o leque de expressões de afeto, assim como de suas modalidades de expressão. Propiciaram uma revisão da relação de estabilidade atribuída a um dado traço — seja ele lexical ou discursivo — e seu significado afetivo. Ofereceram entendimentos mais precisos para os resultados obtidos por meio de metodologias quantitativas. E, o mais importante, trouxeram evidência de que o afeto, como a conversa, não é caótico, tem suas regras, sensíveis à cultura. 

 

IHU On-Line – De que forma pesquisas que analisam as relações sociais entre as pessoas no mundo do trabalho podem contribuir para a construção das práticas das atividades produtivas?

Maria do Carmo Oliveira - Há muitas formas de contribuir, depende de cada caso. Por exemplo, hoje profissões e ocupações não são baseadas apenas em conhecimento, mas também em habilidades. Ainda que as fronteiras entre conhecimento e habilidades não sejam sempre claras, o que se observa é que, independente da tarefa, as habilidades comunicativas passaram a ser um traço relevante no perfil de profissional desejado. A capacidade de construir relações, a facilidade para interagir e estabelecer relações de confiança tornaram-se tão valiosas quanto conhecimentos de natureza técnica e científica. A chamada competência interpessoal tornou-se o calcanhar de Aquiles para qualquer candidato a emprego. 

Uma explicação para isso foram as mudanças ocorridas no mundo do trabalho. Hoje se fala numa síndrome da interatividade, uma ênfase no trabalho em equipe, o que exige um profissional capaz de se comunicar bem, seja no sentido de ser entendido, seja no sentido de ser bem aceito. Apesar dessa importância, o conceito de competência interpessoal ainda é uma categoria nebulosa para os gestores. Estudos em Linguística Aplicada têm apresentado resultados que não só descrevem manifestações dessa competência, como também apontam para a relação entre competência interpessoal e o sucesso de uma dada atividade produtiva. 

Um outro exemplo diz respeito às relações de confiança. A literatura em gestão tem enfatizado a função instrumental da confiança na obtenção de um bom nível de coesão corporativa, cooperação mútua entre colegas de trabalho e, consequentemente, sucesso empresarial. Dada essa função, as organizações costumam monitorar seu ambiente, aplicando modelos de medição de confiança — um exemplo é o modelo Great Place to Work, muito usado por empresas brasileiras. 

Mas a verdade é que o modelo tem limites e as organizações pouco sabem sobre o modo como as experiências comunicativas, no ambiente de trabalho, podem levar as pessoas a ganhar ou perder confiança. Por não poder ser reduzida a uma dimensão apenas psíquica, linguística ou social, os estudos da confiança em Linguística Aplicada podem revelar aspectos ignorados pela organização, como a relação entre as necessidades da primeira infância e acolhimento e previsibilidade e a construção de relações de confiança.

 

IHU On-Line – Como a linguagem pode participar da construção de contextos institucionais eficazes, do ponto de vista produtivo, e saudáveis para os trabalhadores?  

Maria do Carmo Oliveira - O trabalho de um linguista aplicado das profissões implica necessariamente a produção de um conhecimento que evidencie o papel da linguagem na construção de um contexto institucional eficaz e saudável para os trabalhadores.

No Brasil, as pesquisas desenvolvidas pela Dra. Ana Cristina Ostermann, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, têm sensibilizado gestores a reverem o modelo de comunicação que orienta as práticas profissionais estudadas, a investirem na capacitação interacional de seus profissionais. Tais ações repercutem na eficácia de uma organização, no atingimento da meta a que ela se propõe. 

No que se refere à participação da linguagem na construção de um contexto institucional em que o trabalhador não sofra, é preciso lembrar primeiro que o ambiente de trabalho pode ser percebido como um ambiente mais ou menos receptivo para o trabalhador, em função do controle a que ele é submetido e às diferenças de códigos e interesses de seus agentes. Em um ambiente saudável, as trocas comunicativas contribuem para que o sujeito se conheça, reconheça sua existência e sua importância. Quando isso não acontece, as pessoas sofrem mais.  

Foi o que revelaram duas pesquisas que desenvolvi, com o apoio do CNPq, sobre a dimensão relacional da comunicação numa empresa. Em uma delas, os resultados mostraram o papel da linguagem na percepção dos profissionais sobre sua invisibilidade no ambiente de trabalho. Trocas comunicativas foram citadas como exemplo de manifestações de falta de acolhimento, seja por parte dos superiores, seja por parte dos colegas. Apesar do diagnóstico da ‘doença’, nem sempre a organização prescreve o remédio na dose adequada. O tratamento esbarra muitas vezes em aspectos culturais como a ênfase na competição, no individualismo ou no ethos hierárquico, aspectos que comprometem a saúde dos trabalhadores e da própria organização.  

Numa outra pesquisa, observou-se como o uso do e-mail contribuía para o distanciamento e o conflito entre pessoas e áreas. A divulgação dessa pesquisa, numa disciplina de Comunicação em cursos de MBAs in company, oferecidos pela PUC-Rio, levou os profissionais a discutirem as estratégias que comprometiam a qualidade das relações, o que os tornou mais conscientes da sua agência e do papel da linguagem na construção de um ambiente de trabalho saudável. ■

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