Edição 466 | 01 Junho 2015

Reconhecimento do outro: do inter-religioso à inculturação da fé

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João Vitor Santos | Tradução: Vanise Dresch

Gilles Routhier destaca como o Vaticano II trata dos temas relacionados a Igrejas locais e como essa experiência aparece no atual pontificado

Ao longo do II Colóquio Internacional IHU – O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no contexto das transformações tecnocientíficas e socioculturais da contemporaneidade, conferencistas e público entenderam a reunião eclesial como uma atualização da Igreja. Isso porque, sob vários aspectos, traz à luz assuntos e temas que não era tratados de forma clara entre os católicos. Minutos antes de sua conferência, Gilles Routhier, professor doutor da Universidade Laval do Canadá, conversou com a IHU On-Line sobre alguns pontos do Concílio que possuem esse caráter modernizador. Nesse bate-papo de cerca de meia hora, o professor relaciona temas como o diálogo inter-religioso com o que considera o maior legado do Concílio e muito presente do pontificado bergogliano: a colegialidade e o respeito às diferenças nas comunidades em que a Igreja está inserida.

Routhier lembra que, no momento do Vaticano II, a questão do diálogo inter-religioso era algo novo. “Padres e teólogos estavam mal armados, mal preparados para abordagens dessa questão”, destaca. E não era por menos. Pela primeira vez se reuniram bispos de diferentes continentes, que tinham muito presente no cotidiano o contato com outras religiões. Era o caso de bispos da Ásia, por exemplo, mas também da Europa. Nesse segundo caso, a preocupação se centrava mais entre a relação cristão/judeus. “Na primeira montagem do documento, tratava apenas dessa relação entre judeus e cristãos. Mas foi aí que os bispos de outros continentes sentiram que era preciso dizer alguma coisa sobre o budismo, o hinduísmo, os muçulmanos, outras religiões. E felizmente o Concílio se expressou nesse sentido”, explica.

O professor destaca essa mudança como salutar. Se a abordagem não tivesse sido ampliada, atualmente não se teria instrumental para abordar o tema e encarar o momento em que estamos vivendo. “Claro, como não estavam bem preparados, o Concílio não disse tudo sobre o assunto e também não se alcançou a maturidade”, pontua. Porém, para Routhier, o mais importante dito naquela época e que ainda serve para hoje é que se passou a “falar dos outros não como inimigos, mas considerando-os como membros da família humana”. É este primeiro movimento que destaca: o reconhecimento do outro.

Lacunas conciliares

O que o Concílio deixou a desejar, na opinião de Routhier, foi o fato de não ter pensado numa espécie de “teologia das religiões”. Isso porque até não tinha o objetivo de fazer isso. Lembra, por exemplo, que Nostra Aetate  não está entre os documentos conciliares mais divulgados. Não chegou a ser recebido no Canadá e nem na Europa. Foi muito mais remetido à Ásia, Oriente Médio, Índia. “Era como se não dissesse respeito aos ocidentais.” Assim, é possível entender porque a teologia das religiões emergiu principalmente na Índia. 

Mesmo assim, o professor entende que o Vaticano II abriu as portas para as discussões em torno de questões sobre o inter-religioso. “Isso permitiu que, nos últimos 50 anos, progredíssemos nesse caminho.” Assim, agora no mundo ocidental, começou a se levar em conta a importância desse diálogo. E Francisco pode ser um motivador para evolução dessas discussões. “Francisco sempre teve, de fato, diálogo profundo com um rabino (Abraham Skorka )”. Por outro lado, reconhece que, de certa forma, prossegue na tradição de João Paulo II. “Porque, na Polônia, os judeus foram muito perseguidos e João Paulo ajudou a esconder judeus. Conhecia judeus e foi o primeiro a entrar numa mesquita. Também foi ele que iniciou os encontros de Assis, onde as religiões se uniram para orar pela paz.”

A novidade em Francisco

Gilles Routhier reconhece os avanços de Francisco em suas ações de diálogo inter-religioso. No entanto, destaca que não é sobre esse tema que estão as maiores inovações. O que lhe chama atenção é a liberdade que dá aos bispos na tomada de decisão. Isso tem seu significado. Como se as decisões não partissem de Roma, mas sim do lugar onde está o bispo, a Igreja. É outro princípio do Vaticano II: a colegialidade. “É uma liberdade de palavra e que confere mais importância às conferências episcopais.”

O fato de deixar com que as decisões partam do local é, de certa forma, respeitar a particularidade, as diferentes formas de uma mesma Igreja. Em Francisco, é o que aparece sob o conceito de inculturação da fé. “Francisco tem experiência pastoral. É um pastor que conhece a mentalidade popular. A primeira imagem que se tem dele é quando vai à sacada e faz milhares de pessoas na Praça de São Pedro orarem. Ele tem a capacidade de sentir e perceber a mentalidade popular”, destaca.

Para Routhier, esse espírito pastoral se articula na ideia de colegialidade, na medida em que convida os bispos e padres a serem pastores e se aproximarem do povo. “Quando teve encontro com bispos da América Latina, durante viagem ao Rio de Janeiro, disse: ‘vocês têm que ser pastores do povo de vocês’. Convida para toda uma conversão pastoral e não somente permanecer como um administrador”, explica. O professor acredita que se bispos e padres atenderem a esse chamado e estiverem “próximos de suas ovelhas”, poderão de fato entender e inculturar seu povo.

Rota para tornar a Igreja viva

É importante observar esse movimento de inculturação como algo que não impõe uma forma de religiosidade, mas sim deixa a religiosidade, a fé, se manifestar essencialmente na forma da cultura. É diferente da ideia de catequizar. É conhecer um povo e entender como relaciona com a fé. Para Routhier, esse conceito tão presente em Francisco pode ser o novo ar que deixa a Igreja viva. Isso porque o Papa vai ao povo e os escuta, verdadeiramente. “Ele é simples. Não tem linguagem ideológica. É em sua autenticidade e espontaneidade que é possível perceber isso. Ele realmente quer tocar as pessoas.”

Ainda relacionando à experiência do Concílio, o professor destaca que Francisco não fala muito do Vaticano II. No entanto, põe em movimento as ideias do Concílio. “O modo de agir dele está presente nos documentos do Concílio”, enfatiza. Significa, então, afirmar que agora, de fato, o Vaticano II acontece na Igreja? Para Routhier, a Igreja já mudou e algo está acontecendo nos últimos 50 anos. Assim, hoje, falamos menos em Vaticano II, mas o temos muito mais presente no modo de agir. “É exatamente isso. Não tem que falar o tempo todo do Concílio, e sim agir. É isso que o Papa está fazendo.”

Porém, considerar que age enquanto Concílio não quer dizer que não terá mais desafios. Para Routhier, a Igreja na atualidade ainda tem incontáveis desafios. “Vamos ouvir falar muito na reforma da Cúria. E de fato precisa ser reformada. Mas também falamos de bispos e padres, para que se tornem pastores. Está aí outro grande desafio. E falamos de viver como cristãos num mundo secularizado. Todo desafio então está em conseguir pronunciar o Evangelho diante de todas as questões políticas do mundo atual. E como dizer, com que linguagem.” Desafio que para o professor está posto a Francisco, que divide e chama cada um para caminhar e buscar a superação dos desafios. ■

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