Edição 465 | 18 Mai 2015

De Bergoglio a Francisco, o estrategista e hábil executor da política

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João Vitor Santos | Tradução: Andre Langer

A forma de construir alianças e encarar quem pensa diferente é trazida pelo jornalista Washington Uranga como característica do Papa desde o tempo de arcebispo de Buenos Aires

Jorge Bergoglio é argentino e isso impacta na forma como encara a Igreja e o mundo. Mas o que isso significa de fato? O jornalista Washington Uranga chama atenção para a “sensibilidade” que esse “ser argentino” desperta. É como olhar o mundo fora de uma lógica eurocêntrica, ainda submerso no caldo político e cultural da Argentina. Um país que tem na política e na cultura traços fortes e particulares. E se Bergoglio é — e foi — um líder, é difícil dissociar o elemento política de sua constituição pessoal. “Bergoglio é um estrategista e um hábil executor da política. Trabalha sempre com olhar prospectivo, de longo prazo”, define o jornalista, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Uranga traz elementos que são importantes para se entender os movimentos do Papa Francisco. São movimentos claramente políticos que no seu discurso e modo de agir endossam sua perspectiva. Afinal, ele subverte a lógica empregada na Cúria Romana, assume o papel de estadista e faz aproximações. E quem discorda publicamente corre o risco de receber uma ligação direta de Sua Santidade. Para Uranga, esse é o estilo bergogliano de fazer política. “Responder a quem pensa diferente é uma maneira a mais de demonstrar disposição para o diálogo com todos, é abertura permanente ao diálogo”, pontua. É assim, direto, que “Francisco assume a agenda dos problemas do mundo e da sociedade. E quer comprometer a Igreja na busca de soluções para esses temas”. 

Washington Uranga é jornalista argentino, professor e pesquisador de comunicação. Sua área de especialização são problemas de comunicação ligados a processos de cidadania, participação, políticas públicas e planejamento de comunicação. É colunista do jornal Pagina 12, de Buenos Aires. Atualmente, dirige o Mestrado em Comunicação Institucional da Universidade Nacional de San Luis.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como avalia esses dois anos do pontificado de Francisco e quais são as perspectivas? Para onde está conduzindo a Igreja?

Washington Uranga - Os passos dados pelo Papa Francisco são sumamente positivos, visto de uma perspectiva de Igreja que quer se colocar a serviço da sociedade e, em particular, dos pobres e sofredores. Entendo que Francisco está tentando fazer com que a Igreja ofereça respostas aos desafios do mundo atual, partindo da base de que para fazê-lo a Igreja tem que se reformar a si mesma.

Vejo então uma linha de autocrítica à forma de governo (reforma da Cúria e dos organismos vaticanos), uma perspectiva mais sinodal (governo colegiado), correção interna em assuntos que a prejudicaram seriamente (pedofilia, administração econômica, por exemplo), e, ao mesmo tempo, o compromisso do Papa em colaborar na solução dos conflitos internacionais (Israel e Palestina, Síria, Estados Unidos e Cuba) ou a situação dos imigrantes ilegais em todo o mundo. Vejo uma Igreja que quer assumir seu compromisso histórico. Na perspectiva do Papa Bergoglio, percebe-se também uma marca eclesial latino-americana.

 

IHU On-Line - Em que aspectos Francisco se diferencia dos Papas anteriores? Quais os pontos em comum?

Washington Uranga - Francisco é um Papa de um país do Sul e que recolhe a trajetória da Igreja Latino-Americana, embora a Igreja na Argentina nunca estivesse muito vinculada a essa trajetória. Mas está claro que do Sul o mundo “é visto” de outra maneira e desenvolvem-se outras sensibilidades.

Francisco não se afasta da ortodoxia doutrinal e nisto não se diferencia de seus antecessores. Mas tem um olhar pastoral que procura acolher as “ovelhas perdidas”. Também por isso insiste na ideia de uma Igreja que é ao mesmo tempo “mãe” e “servidora”. Ao contrário de Bento XVI (que pensava numa Igreja depósito da fé e guardiã da ortodoxia), Francisco quer uma Igreja de portas abertas, onde haja lugar para todos, também para quem pensa diferente ou tomou decisões que não são consideradas “ortodoxas”.

 

IHU On-Line - Qual o significado do pontificado de Francisco para a América Latina? Qual tem sido o impacto do pontificado de Francisco na Igreja latino-americana?

Washington Uranga - Na minha visão, a Igreja que peregrina na América Latina se sente representada em Francisco. E quando digo isto devo reconhecer que não teria pensado dessa forma antes da eleição. Os argentinos não são (tampouco na Igreja) muito “latino-americanos”. Eles mesmos se dizem “diferentes”. Mas creio que Francisco, para dizê-lo de alguma maneira, “converteu-se” à Igreja Latino-Americana e muitas de suas posturas respondem a uma perspectiva que é desta parte do mundo.

E a Igreja na América Latina agora sente que tem que responder àquilo que o Papa lhe pede e fazê-lo com o exemplo. Também é verdade que na Igreja Latino-Americana hoje há contradições. Há setores, particularmente do episcopado, que “resistem” ao olhar de Francisco. São grupos, bispos e organizações conservadores que dizem estar “defraudados” com Francisco. Eles tinham a ideia de um cardeal Jorge Mario Bergoglio, ou que Bergoglio modificou muitos dos seus olhares quando assumiu a condição de pastor da Igreja católica universal.

Mas, em síntese, a Igreja Latino-Americana sente-se interpelada por Francisco. Ao mesmo tempo, sabe que tem que apoiá-lo a partir da sua própria experiência pastoral e de serviço.

 

IHU On-Line - Qual a influência da história da Argentina na formação de Bergoglio? E, especificamente, como se dá a influência das ideias de Perón na forma como o Papa interpreta o mundo e a Igreja?

Washington Uranga - Não tenho uma resposta categórica para este ponto. Mas não há dúvida de que Jorge Bergoglio como jovem sacerdote se formou no marco da cultura popular do peronismo, entendido como movimento popular e movimento de massas. Também sua experiência religiosa foi forjada no marco de um catolicismo popular que conviveu com a experiência do peronismo. Dali, surgem marcas, pistas, que hoje ficam a descoberto na sensibilidade do Papa pelos pobres, pelos que sofrem, pelos setores populares em geral. Mesmo quem mais criticou Bergoglio na Argentina reconheceu sempre sua austeridade (a mesma que mostra no Vaticano) e sua preocupação constante com os pobres, com o próximo.

 

IHU On-Line - Qual foi o papel político de Bergoglio, especialmente quando foi bispo de Buenos Aires, na história da Argentina?

Washington Uranga - Bergoglio é um estrategista e um hábil executor da política. Trabalha sempre com olhar prospectivo, de longo prazo. Enquanto foi arcebispo de Buenos Aires e presidente da Conferência Episcopal teve duros enfrentamentos com o governo, especialmente durante a presidência de Néstor Kirchner.  Entendo que Bergoglio exigia para a Igreja católica um lugar de privilégio nas relações e a possibilidade de ter opinião qualificada sobre determinados temas próprios da gestão e da agenda pública. Kirchner tentava, precisamente, mudar esse tipo de relação com a Igreja, e as duas personalidades fortes se enfrentaram. Paradoxalmente, penso — com certa ironia — que Francisco teria recomendado ao cardeal Bergoglio agir de maneira diferente.

 

IHU On-Line - Como entender a relação do Papa Francisco com a família Kirchner e, agora, especialmente com Cristina Kirchner ?

Washington Uranga - Expliquei antes a relação com Néstor Kirchner. Com Cristina Fernández [Kirchner] a relação mudou. Essencialmente quando Bergoglio se converteu em Francisco, ambos entenderam que havia um novo marco nas relações. Era o Papa e a presidenta do país originário do Papa. Também Bergoglio (que atuava na Argentina sempre através de terceiros, fazendo conhecer seus pontos de vista em “voz baixa”) se deu conta de que tudo o que dissesse seria utilizado. É inteligente. Cuidou de suas palavras e pensou cada gesto. Tanto Francisco como Cristina Fernández entenderam, como bons seres políticos, que uma melhor relação entre eles favorecia a ambos.

 

IHU On-Line - Como entender os gestos do Papa ao dialogar diretamente com quem o critica dentro e fora da Igreja? 

Washington Uranga - Bergoglio sempre se caracterizou por dialogar com todos os atores da vida social, política e cultural. Na Argentina, tinha muita relação com o mundo político, econômico e religioso. E não somente com quem pensava igual. Movia-se em círculos em que era criticado. Na Argentina, essas vinculações eram mais discretas, a tal ponto que para alguns poderiam ser lidas como operações políticas. Mas dialogava.

Agora todos esses diálogos são públicos. E inclusive Francisco incorpora essa atitude de abertura ao diálogo à sua estratégia pastoral. Nessa tônica entende-se sua resposta ao jornalista Alfredo Leuco.  Responder a quem pensa diferente é uma maneira a mais de demonstrar disposição para o diálogo com todos, é abertura permanente ao diálogo.

 

IHU On-Line - Qual é sua avaliação dos posicionamentos de Francisco diante de temas globais como crise do capitalismo, discurso de crítica à globalização, ao meio ambiente, entre outros?

Washington Uranga – Francisco assume a agenda dos problemas do mundo e da sociedade. E quer comprometer a Igreja na busca de soluções para esses temas. Seu olhar é de que nada do que é humano tem que ser alheio à Igreja. Pessoalmente, penso que essa é uma atitude valiosa, porque é comprometida e ao mesmo tempo é missionária.

 

IHU On-Line - Em que medida Francisco é um fenômeno da mídia? Nesse sentido, em que ele se diferencia de João Paulo II, que também foi um Papa bastante midiático?

Washington Uranga – Os momentos históricos são diferentes. João Paulo II “saiu” do Vaticano e peregrinou pelo mundo. Coisa que seus antecessores não fizeram. Por esse motivo, foi novidade para a mídia. Foi um Papa de multidões e uma espécie de “star” religioso que o sistema da mídia “consumiu” e incorporou.

Francisco interessa aos meios de comunicação a partir de outro lugar: como estrategista religioso e político, como líder mundial, pela agenda de temas que impõe, porque fala sobre os temas que são debatidos na sociedade. Mas, pelos mesmos motivos, é possível que, apesar da popularidade de Francisco, o Papa pode passar a um segundo plano nos meios de comunicação quando as grandes corporações não aceitarem o discurso que ele impulsiona.

 

IHU On-Line - Como avalia a entrevista do Papa Francisco à TV Mexicana,  na ocasião dos dois anos do pontificado? E o que está evidenciado ali e revela a respeito da figura de Francisco?

Washington Uranga – Que Francisco está feliz (ele diz isso expressamente) em sua função. Que sente que pode contribuir para a Igreja e a sociedade e que está decidido a fazê-lo. Na entrevista, voltou a traçar, de alguma maneira, um programa para o seu pontificado. E decidiu (insinuou isso em outras entrevistas) que quando achar que cumpriu sua missão vai renunciar. Não permanecerá no Vaticano por muito mais tempo. Talvez até convoque outro concílio. ■

Leia mais...

- A reabertura do caso Angelelli, bispo assassinado pela ditadura militar argentina. Entrevista especial com Washington Uranga, publicada em Notícias do Dia, em 04-08-2008, no sítio do IHU;

- A Igreja Católica na América Latina e as contradições do continente. Entrevista com Washington Uranga, publicada na IHU On-Line 320, de 21-12-2009;

- O significado do encontro entre Castro e Francisco. Artigo de Washington Uranga, publicado em Notícias do Dia, em 08-05-2015, no sítio do IHU;

- A concentração da propriedade e os excluídos da comunicação. Entrevista com Washington Uranga, publicada em Notícias do Dia, em 27-09-2009, no sítio do IHU.

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