Edição 465 | 18 Mai 2015

O desafio da conversão pastoral e de um novo modelo de Igreja

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Patricia Fachin e Leslie Chaves

Sérgio Coutinho lança seu olhar para a Igreja no Brasil e analisa como estão se refletindo os dois anos de pontificado de Francisco entre os leigos, católicos, clero e episcopado

O anseio por uma Igreja “em saída”, que leve Jesus para todos os espaços, tem emergido como uma das principais linhas condutoras do pontificado de Bergoglio nesses dois anos. A análise é de Sérgio Coutinho, que considera, entretanto, que as palavras de Francisco têm recebido mais aceitação do que propriamente “os gestos mais proféticos” do Papa. Segundo o historiador, há uma intenção clara de solidificar o caráter missionário da Igreja, buscando uma aproximação maior com a sociedade, sobretudo com os estratos mais pobres da população. Trata-se da busca de uma mudança de mentalidade e de estrutura em direção à perspectiva do discípulo-missionário, que se propõe a “tocar a carne de Cristo”, destaca o Coutinho em entrevista por e-mail à IHU On-Line

Essa proposta se evidencia em diversos documentos como, por exemplo, as resoluções da 53ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, onde são apresentados os rumos da Igreja no país. Nesse documento especificamente, a CNBB se posicionou acerca das desigualdades, da situação dos povos indígenas e da vida política brasileira, da qual se propõe a participar com autonomia. Em relação à ação evangelizadora, é acolhida a visão do Papa Francisco de uma Igreja missionária e misericordiosa, porém, de acordo com Coutinho, “o conteúdo teológico das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora - DGAE é muito mais avançado que a prática dos próprios bispos que aprovaram o texto. Há um descompasso entre a teoria e a prática, que é ainda muitíssimo autorreferencial e pouco em ‘saída’”. A mudança de mentalidade e a conversão pastoral foram apontadas pelo historiador como os grandes desafios da Igreja contemporânea. 

Na entrevista, Sérgio Coutinho ainda faz uma avaliação dos reflexos da conjuntura política brasileira na atuação da Igreja no país e aponta que as denúncias de corrupção e a tensão política, com o acirramento de posições mais conservadoras na sociedade, acabaram incidindo no perfil da nova presidência da CNBB. Externamente, apesar de manter certa cautela, a instituição se preocupa em continuar o diálogo com a sociedade e o atual governo, mas internamente mantém “um controle cada vez maior sobre o papel dos assessores(as) das 12 Comissões Episcopais Pastorais, reduzindo-os a apenas secretários-executivos”, frisa. 

Sérgio Ricardo Coutinho é professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura de Brasília e da disciplina “Serviço Social, Religião e Movimentos Sociais”, no curso de Serviço Social do Centro Universitário IESB de Brasília.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como a Igreja no Brasil tem recebido o pontificado de Francisco nesses dois anos?

Sérgio Coutinho - Como em todo mundo, aqui também o impacto do Papa Francisco é bem evidente entre o povo, de modo geral, e na Igreja entre os leigos, que aprovam muito seu jeito de ser, gestos e palavras. Ele mesmo, de próprio punho, escreveu e enviou cartas para dois importantes eventos eclesiais no Brasil: para o 13º Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base, em 2014, e para o 11º Encontro Nacional da Pastoral da Juventude, em 2015. Junto ao nosso povo católico, de modo especial junto ao laicato das comunidades e à juventude mais engajada nas pastorais, se reconhece sua linguagem por uma “Igreja pobre e para os pobres”.

Já em relação ao clero e ao episcopado no Brasil, o “efeito Francisco” ainda é um pouco mais lento na recepção dos seus gestos mais proféticos, mas suas palavras têm sido muito consideradas e usadas abundantemente. Para isso, basta ver todo o material visual da última Campanha da Fraternidade onde, pela segunda vez, a CNBB usou uma imagem do Papa para ilustrar seu cartaz (a primeira vez foi em 1968 com a imagem de Paulo VI) em que aparece repetindo o gesto de Jesus no lava-pés e, além disso, a ampla citação da Exortação Evangelii Gaudium  e do mais recente texto da Bula Misericordiae Vultus  nos documentos da CNBB.

 

IHU On-Line- Em artigo recente, o senhor comentou que as nomeações episcopais para o Brasil poderão significar “a continuidade do espírito wojtyliano-ratzingeriano”, com pouca preocupação pastoral-missionária. Em que fundamenta esses comentários? 

Sérgio Coutinho - A primeira fundamentação está, como não poderia deixar de ser, no longo pontificado de João Paulo II  e de todo o processo de implementação e formação de quadros internos para levar a cabo o projeto de uma Nova Evangelização. Projeto este pautado por aquilo que o Pe. João Batista Libânio  chamou de “volta à grande disciplina”, e pelo que a socióloga francesa Danièle-Hervieu-Léger  chamou de “concentração católica”, ou seja, formação de quadros clericais (e também laicais) fortalecidos em sua “identidade católica”, visando enfrentar o duro inimigo da “ditadura do relativismo”.

Neste sentido, o celeiro de onde saem os bispos no Brasil são os formados majoritariamente para dar continuidade a um modelo de Igreja “autorreferencial” e isto fica muito evidenciado no perfil acadêmico-moral-pastoral da maioria dos bispos recém-nomeados: formadores/reitores de Seminários, especialistas em Direito Canônico e/ou Teologia Moral (canonistas moralistas). 

 

IHU On-Line - A partir da sua crítica às nomeações episcopais, como vê o discurso e as ações de Francisco em relação à preocupação pastoral-missionária?

Sérgio Coutinho - O Papa Francisco tem um programa pastoral muito claro e ele já tinha deixado claro ainda no pré-conclave. Abandonar uma Igreja “doente”, curvada sobre si mesma como aquela mulher dos Evangelhos, por uma Igreja “acidentada”, ferida e enlameada (Evangelii Gaudium 49), que não tem medo de correr riscos. Quais seriam os riscos? O primeiro, de errar o caminho, mas ele prefere errar tentando, a ficar estacionado numa suposta segurança; e outro risco é de “sofrer acidentes” e morrer, e ele tem abordado muito intensamente a experiência dos milhares de mártires contemporâneos. Penso que a beatificação de Dom Oscar Romero  sinaliza o modelo de Igreja que ele deseja.

 

IHU On-Line - Qual a importância da Conferência de Aparecida, em 2007, em que Bergoglio foi relator do documento final? Como as linhas mestras desse documento aparecem no pontificado de Bergoglio?

Sérgio Coutinho - Não há dúvida que seja o desejo de uma Igreja “em saída”, que não trancafie Jesus em seu interior, mas o “liberte” para que caminhe em direção às periferias existenciais. Desta forma, as linhas mestras são: conversão pastoral, mudança de mentalidade e de estrutura em direção a uma Igreja decididamente missionária; e assumir a perspectiva do “discípulo-missionário” que caminha em direção aos pobres, que visa tocar a “carne de Cristo”. 

 

IHU On-Line - Que avaliação faz da eleição da nova presidência da CNBB, com a nomeação de dom Sérgio da Rocha e o vice-presidente, dom Murilo Krieger?

Sérgio Coutinho - A eleição de Dom Sérgio da Rocha  e de Dom Murilo Krieger  precisa ser compreendida com um maior distanciamento no tempo. Acaba, de certa forma, por remeter à chegada do PT ao poder em 2002.

Para explicar um pouco melhor as eleições precisamos minimamente tipificar os grupos que formam o episcopado brasileiro. Há cinco anos, escrevi um artigo no sítio do IHU (http://bit.ly/1Jrlr2a), em que tentei construir uma tipologia dos bispos brasileiros. Agora ele está um pouco mais sofisticado, mas nada que complique muito a análise.

Na verdade, são tipos-ideais weberianos, ou seja, são tipos puros que não conseguiremos encontrar todos os seus elementos explicitamente visíveis na realidade. A realidade sempre se mostra muito mais dinâmica e complexa, mas pode ajudar-nos a entender melhor as várias tendências internas no episcopado brasileiro. Nesta tipologia não vamos remeter aos já clássicos termos vindos da política, como direita-conservadores, esquerda-progressistas ou centro-moderados (ou como eu mesmo usei naquele referido artigo: “concentração católica”, “de libertação” e “moderados-conservadores”), pois as diferentes posições dos bispos não devem ser encontradas em filiações políticas ou ideológicas, mas em pontos de vista teológicos sobre Cristologia, Eclesiologia e Antropologia cristã. Assim, teríamos bispos:

a) Neopelagianos: Como diz o Papa Francisco, são “autorreferenciais” que focam na “segurança doutrinal ou disciplinar” (Evangelii Gaudium 94), com forte “pretensão de dominar o espaço da Igreja” por meio de “um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja” (Evangelii Gaudium 95);

b) Neoagostinianos: Também muitos deste grupo assumem uma postura “autorreferencial” e seguem a esteira deixada pelo cardeal teólogo Joseph Ratzinger (depois Papa Bento XVI): possuem uma postura cautelosa na relação Igreja-mundo, defendem a “identidade católica” com um foco cristocêntrico (a necessidade absoluta de Cristo para a salvação) e um arraigado eclesiocentrismo normativo (clericalismo e corporativismo);

c) Neotomistas: Com um foco reinocêntrico, estão comprometidos com a missão de pregar, servir e testemunhar o reinado de Deus na história e no mundo dos pobres, e se identificam muito com o projeto do Papa Francisco de uma Igreja “em saída” (Evangelii Gaudium 49).

Tendo como referência o número total de bispos com direito à voto, ou seja, 294 bispos, e observando alguns dados da avaliação e observando a intenção de voto (a melhor forma de verificar é pelos resultados dos 1os Escrutínios) para os cargos da Presidência, Consep  e delegado do CELAM,  teríamos a seguinte composição quantitativa:

Neopelagianos: 20% (58 bispos);

Neoagostinianos: 50% (147 bispos);

Neotomistas: 30% (89 bispos).

Evidentemente é um dado hipotético, mas não muito longe da realidade. Para isso fiz a seguinte contabilidade a partir dos votos recebidos por três nomes que podem muito bem ser classificados como neotomistas, apesar de todas as ressalvas que se possa ter: Dom Sérgio Castriani (arcebispo de Manaus) e Dom José Belizário (arcebispo de São Luís). Dom Sérgio ficou em segundo lugar com 22% e Dom Belizário com 10% (32% no total) no 1º escrutínio para o cargo de vice-presidente da CNBB. Já na escolha do nome para delegado do CELAM, Dom José Belizário bateu dois cardeais (Dom Orani Tempesta  e Dom Odilo Scherer ) com 30% dos votos. Interessante notar também que nas eleições para a Comissão Pastoral que acompanha as Pastorais Sociais, D. Guilherme Werlang (bispo de Ipameri) alcançou 44%.

Uma conta parecida poderia ser feita para os neopelagianos. Observando os votos que Dom Murilo Krieger e Dom Odilo Scherer receberam no 1º escrutínio para o cargo de presidente, conseguiram 11% e 8%, respectivamente. Na escolha de delegado para o CELAM, Dom Odilo recebeu 13% dos votos e Dom Murilo alcançou 44% para o cargo de vice-presidente no 1º escrutínio. 

Os neoagostinianos são o “fiel da balança”, pois, dependendo do tema, podem se aproximar de cada um dos polos. Isto pode ser observado na eleição de Dom Sérgio da Rocha para a presidência da CNBB, onde foi amplo o consenso entre todos os grupos, alcançando 73% dos votos.

Assim, podemos compreender melhor o que foram estas eleições.

Em 2003, quando Lula chega à Presidência da República, a CNBB elegeu dois nomes com ampla experiência na Cúria Romana e que representavam os grupos mais identificados com o projeto da “Nova Evangelização” e com o perfil teológico-pastoral “neopelagiano” e “neoagostiniano” e, por isso mesmo, com um cuidado redobrado com o novo governo. Os eleitos foram Dom Geraldo Majella Agnelo  (primaz do Brasil) e Dom Odilo Scherer (auxiliar de São Paulo), como presidentes e secretário-geral respectivamente, sendo Dom Celso Queiroz (bispo de Catanduva) o representante dos neotomistas na vice-presidência. Todos sabem que os cargos de presidência e secretaria-geral são os mais importantes em função, não só da visibilidade, mas da linha pastoral que vai ser colocada em curso.

Também o CONSEP foi praticamente todo tomado por bispos daqueles grupos, como Dom Aldo Pagotto (arcebispo da Paraíba) para a Comissão das Pastorais Sociais, Dom Walmor Oliveira de Azevedo (arcebispo de Belo Horizonte) para a Comissão da Doutrina da Fé, Dom Rafael Llano Cifuentes (bispo da Opus Dei de Nova Friburgo) para a Comissão da Família.

Nesta época, por pressão exercida pelo então Núncio Apostólico, Dom Lorenzo Baldisseri (atual cardeal secretário do Sínodo dos Bispos), a CNBB desejava um acordo entre o governo brasileiro e a Santa Sé em vista da segurança jurídica para a Igreja em diversos pontos. Além disso, havia o desejo de também retomar a presidência do CELAM que há muitos anos não tinha um brasileiro ali (o último tinha sido Dom Aloísio Lorscheider em 1979). A Igreja do Brasil vinha construindo lentos passos para melhorar as relações com o CELAM e com a Cúria Romana. E as coisas facilitaram muito quando, em 2005, o Papa Bento XVI, surpreendentemente, indicou o Santuário de Aparecida para a realização da V Conferência Geral do CELAM. O efeito imediato foi a meteórica ascensão de Dom Odilo: nomeado arcebispo de São Paulo e, em seguida, cardeal.

Em 2007, a Assembleia Geral da CNBB acontece poucos dias antes da chegada de Bento XVI ao Brasil e da abertura da V Conferência. Naquele contexto, Lula tinha sido reeleito e estava com ótima popularidade. 

As eleições desta vez foram amplamente favoráveis aos neotomistas, elegendo Dom Geraldo Lyrio Rocha (presidente e arcebispo de Mariana), Dom Luís Soares Vieira (vice-presidente e arcebispo de Manaus) e Dom Dimas Lara Barbosa (secretário-geral, auxiliar do Rio de Janeiro e mais próximo dos neoagostinianos). Logo de cara a CNBB conseguiu encampar seu candidato para a presidência do CELAM em 2007: o cardeal Dom Raymundo Damasceno Assis (arcebispo de Aparecida).

Esta presidência estabeleceu amplo diálogo com o Governo Federal sempre mediado pelo fiel escudeiro de Lula, Gilberto Carvalho.  O ponto alto foi, sem dúvida nenhuma, a aprovação do Acordo Brasil-Santa Sé em 2008. No entanto, as coisas começaram a esquentar quando o governo propôs o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3). Na Assembleia Geral de 2010 os neopelagianos estavam firmemente decididos a se opor ao projeto (chamado de bolivariano e relativista) e acusavam a presidência da CNBB de se esquivar e de não ter uma posição clara sobre o conteúdo moral do Plano. E neste mesmo ano, quando das eleições presidenciais, aqueles dois grupos fazem campanha aberta contra a candidatura de Dilma Rousseff, chegando até mesmo o assunto ao Papa Bento XVI que se manifestou durante a visita Ad Limina  dos bispos do Regional Nordeste 5 (Maranhão).

Tudo levava crer que os neopelagianos e parte dos neoagostinianos iriam conseguir novamente a presidência da CNBB em 2011. Pelo contrário, e mantendo uma linha de continuidade, se mantiveram na presidência os neotomistas com Dom Raymundo Damasceno,  Dom José Belisário (arcebispo de São Luís) e Dom Leonardo Steiner (bispo de São Felix do Araguaia). 

Esta presidência se pautou por uma postura de diálogo com a sociedade e com o governo de Dilma Rousseff, mas mantendo autonomia crítica. E ainda mais, esta presidência foi beneficiada e ainda mais legitimada após a renúncia do Papa Bento XVI em fevereiro de 2013 e a eleição do Papa Francisco (não custa lembrar que Dom Damasceno funcionou como um “king-maker”, juntamente com Dom Cláudio Hummes,  na eleição de Bergoglio contra a candidatura de Dom Odilo Scherer).

Com a reeleição de Dilma, agora em 2014, e as denúncias de corrupção e a crise política que se instalou, com o acirramento de posições mais conservadoras na sociedade (até mesmo Dom Aldo Pagotto  foi fotografado vestindo verde e amarelo, com um apito na boca, e gritando “Fora Dilma!”, “Fora PT!”), acabou escorrendo para dentro da CNBB.

Desta forma, neste ano de 2015 tudo poderia indicar para a vitória de um neopelagiano. Dom Murilo Krieger, representante do primeiro grupo, assumiu uma posição dúbia. Fez declarações contrárias, na rede de notícias Zenit, ao Projeto de Reforma Política que a CNBB tinha assumido conduzir ainda na Assembleia de 2011. E no mês seguinte escreveu um artigo incentivando seus fiéis a assinarem o mesmo projeto de iniciativa popular. Como se diz no popular, “jogou para a torcida”, especialmente para aqueles bispos anti-Petistas. Acabou conseguindo a vice-presidência. 

Dom Sérgio da Rocha, como dissemos, foi o grande consenso entre os bispos. Consegue transitar por todos os grupos. Isto porque foi arcebispo em uma arquidiocese de periferia (Teresina) antes de se transferir para Brasília, foi presidente da Comissão da Doutrina da Fé e é um bispo com “cheiro de ovelhas”. Já Dom Leonardo Steiner,  reeleito para a Secretaria-geral, revela a continuidade de uma CNBB externamente preocupada em continuar o diálogo com a sociedade e o atual governo, mas com uma maior cautela, pois agora terá um presidente que atuará com mais firmeza que D. Damasceno. Internamente, vai continuar com o mesmo processo de redução de gastos e de captação de recursos, e de controle cada vez maior sobre o papel dos assessores(as) das 12 Comissões Episcopais Pastorais, reduzindo-os a apenas “secretários-executivos”.

 

IHU On-Line - Quais os principais resultados da 53ª Assembleia Geral da CNBB? O que a 53ª Assembleia demonstra sobre os rumos da Igreja no Brasil?

Sérgio Coutinho - Podemos distinguir dois âmbitos: ad extra e ad intra. Ad extra — Na sua relação com a política e com a sociedade, a 53ª Assembleia Geral se apresentou bastante profética ao lançar mensagens duras sobre a desigualdade, sobre o momento político e sobre a situação dos Povos Indígenas. Estes textos estão entre os melhores que a CNBB já produziu em toda a sua história. Os bispos deram um recado para os vários grupos “integristas” católicos de que ela vai continuar sim participando da vida política do país, assumindo uma posição de autonomia, na mesma linha apontada pelo documento do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes.  Ad intra — A composição do próximo CONSEP ficou assim distribuída: quatro neotomistas, sete neoagostinianos e um neopelagiano. Será este conjunto que vai trabalhar neste quadriênio para a implantação das novas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora - DGAE (2015-2019).

Sobre as DGAE, os bispos resolveram falar em “continuação e reorganização” do documento. A continuação se verifica no Objetivo Geral, na estrutura fundamental do documento, em algumas fontes magisteriais, no estilo do documento, em sua linguagem e na redação de diversos números. A reorganização se verifica no conteúdo de uma quantidade significativa de números. As atuais Diretrizes têm 131 números, dos quais 68 são inteiramente novos.

Além disso, o Magistério do Papa Francisco é amplamente acolhido, principalmente a exortação apostólica Evangelii Gaudium. É também significativo o acolhimento dos temas presentes nos discursos do Papa aos bispos durante a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro (aos Bispos do Brasil e aos dirigentes do CELAM) e na Bula Misericordiae Vultus. Nas Diretrizes 2011-2015, o Documento de Aparecida era citado em 110 notas; nas atuais, é citado em 68. A Verbum Domini era citada em 25 notas; agora, em 23. A novidade maior das atuais Diretrizes é a Exortação apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, citada em 65 notas.

No capítulo I (Partir de Jesus Cristo) se encontram a cristologia e a eclesiologia do documento. Na cristologia, à ênfase nas atitudes de “gratuidade” e “alteridade”, juntou-se, como ênfase principal, a temática do “Reino de Deus” e sua centralidade na vida, na pregação e nos sinais realizados por Jesus Cristo. Inseriu-se também uma reflexão trinitária, que destaca a missão do Filho e do Espírito Santo como manifestação do amor do Pai, que quer a salvação de todos. 

A eclesiologia foi mais explicitada, atendendo ao que foi pedido pela Assembleia Geral de 2014. A ação evangelizadora é apresentada como consequência da fidelidade da Igreja a Jesus Cristo, o que implica que também a sua relação com o Reino de Deus e com o mistério da Santíssima Trindade. A missão da Igreja é continuação da missão de Cristo. Ela existe no mundo como “ícone da Trindade”, para anunciar o Reino de Deus e testemunhá-lo. Acolhe-se ainda a ênfase do Papa Francisco em uma Igreja “em saída”, “casa aberta do Pai”, “misericordiosa”, que continuamente se renova em vista da missão que lhe foi confiada. 

No capítulo II (Marcas de nosso tempo), a análise do contexto no qual a Igreja é chamada a cumprir a sua missão evangelizadora é feita numa perspectiva pastoral, à luz do Evangelho, como discernimento dos sinais dos tempos.

A mudança de época é mantida como característica global de “leitura” das características de nosso tempo. Nisso se verifica não apenas uma continuidade com relação às Diretrizes anteriores, mas, sobretudo com a Evangelii Gaudium e com o Documento de Aparecida. Procurou-se acolher a reflexão que o Papa Francisco faz da globalização, especialmente a constatação da “globalização da indiferença” e a urgente necessidade de “globalização da solidariedade”.

Na análise do desafio pastoral que as tendências culturais representam (individualismo, fundamentalismo, relativismo e outros reducionismos), se explicita que o critério principal é antropológico. À luz do Evangelho e de sua Tradição, a Igreja anuncia uma antropologia integral. A partir dela se evidenciam as concepções redutivas do ser humano presentes em nosso tempo.

Inspirada na Evangelii Gaudium, as Diretrizes compreendem as consequências para o âmbito religioso e, em particular, para a Igreja Católica, a partir da “crise do compromisso comunitário”. O anúncio de Jesus Cristo convida ao encontro com Ele, à conversão e à vivência eclesial da fé, propondo-se, para tanto, “uma figura de comunidade eclesial acolhedora e missionária” (Evangelii Gaudium 26).

Acontece que o conteúdo teológico das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora é muito mais avançado que a prática dos próprios bispos que aprovaram o texto. Há um descompasso entre a teoria e a prática, que é ainda muitíssimo autorreferencial e pouco “em saída”.

 

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios da Igreja no Brasil? 

Sérgio Coutinho - Penso que o grande desafio seja o da mudança de mentalidade ou o de uma “conversão pastoral”. Isso envolve bispos, padres, religiosos e leigos. O “mundanismo espiritual” entrou forte na Igreja no Brasil nestes últimos 30 anos e fortaleceu muito um modelo de Igreja “neopelagiana autorreferencial”. Muitos fizeram carreira como os ardorosos defensores da ortodoxia católica frente aos “hereges” da Teologia da Libertação. Agora estão um pouco sem saber o que fazer com um Papa que critica abertamente o capitalismo, que usa expressões típicas do marxismo (como a “idolatria do capital”) e que diz que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres, e deveríamos até mesmo nos ajoelharmos quando um pobre entra na Igreja.■

Leia mais...

- Os “novos” bispos de Francisco no Brasil: mudar para que as coisas continuem as mesmas. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, de 19-02-2015;

- "Quo vadis" Igreja no Brasil? Artigo publicado nas Notícias do Dia, de 13-02-2014;

- Sínodo Extraordinário sobre a Família: a busca de uma resposta a partir da ética do discurso. Entrevista especial com Sérgio Coutinho. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, de 20-11-2013;

- Uma Igreja missionária: a reforma de Papa Francisco. Entrevista especial com Sérgio Coutinho. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, de 01-08-2013;

- Igreja e sociedade: o projeto de Francisco. Artigo de Sérgio Ricardo Coutinho. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, de 25-06-2013;

- 51ª Assembleia Geral da CNBB. Vinho novo em odres velhos? Artigo publicado nas Notícias do Dia, de 14-04-2013;

- A recepção de Francisco no Brasil. Entre o início e o fim de uma “primavera”. Artigo publicado nas Notícias do Dia, de 24-04-2013;

- O fim de um pontificado de transição: de onde saiu e para onde nos leva? Entrevista publicada nas Notícias do Dia, de 14-02-2013;

- O crescimento de correntes teológicas e eclesiológicas. Entrevista publicada na IHU On-Line número 404, de 05-10-2012;

- Para além de ruptura e continuidade. O Concílio Vaticano II e os diferentes projetos históricos. Entrevista publicada na IHU On-Line número 395, de 04-06-2012;

- Igreja: de regente a terceiro violino. Entrevista especial com Sérgio Coutinho. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, de 21-04-2012;

- A CNBB depois da última assembleia geral. Uma análise. Artigo publicado na IHU On-Line número 362, de 23-05-2011.

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