Edição 465 | 18 Mai 2015

O espírito pastoral de Francisco e o desafio de desacomodar bispos e teólogos

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João Vitor Santos e Patricia Fachin | Tradução: Gabriel Ferreira

Para John O’Malley, o pontificado é orientado por ações pastorais práticas, diretas e ligadas ao povo. Postura que impõe um dos maiores desafios do Papa

A orientação básica do pontificado de Francisco é a mesma dada por Santo Inácio à Companhia de Jesus: “a ajuda das almas”, diz John W. O’Malley à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. O historiador esclarece que os demais Papas também tinham essa preocupação, mas a diferença em relação a Francisco “é que ele é mais prático”, “mais sociológico. Como bem se sabe, ele é um tanto cético em relação a abstrações, especialmente em situações pastorais. A concretude de seu vocabulário sugere essa orientação, por exemplo, o ‘cheiro das ovelhas’”. Por conta dessas características do atual Papa, um dos seus “maiores desafios” será “lidar com os bispos (e alguns teólogos) que foram treinados para pensar as situações pastorais de modos muito diferentes (...), isto é, mais dedutivo, mais prescritivo, mais abstrato e menos inclinado a tentar alcançar uma acomodação às situações reais”, pontua.

O historiador lembra ainda que Francisco é o primeiro Papa dos últimos 50 anos que não participou do Concílio Vaticano II,  o que considera “uma vantagem”. “Penso que Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI ainda estavam enfrentando as batalhas do Concílio. Francisco é livre de tais memórias. Ele estudou teologia logo após o Concílio acabar. Ele foi capaz de entender a mensagem básica do Concílio e me parece que tem se apropriado dele perfeitamente”, explica. Na entrevista, O’Malley ainda fala da recepção do pontificado nos Estados Unidos. “Francisco é admirado por mais pessoas, católicos e outros, do que qualquer outro Papa anterior”, destaca. No entanto, lembra que a visita ao país em outubro será importante para avaliar essa relação. “Acho que Obama e Francisco vão se dar bem, mas não estou certo se o mesmo se dará com outros departamentos. Ele falará ao nosso Congresso. O discurso poderia ser o fim da lua de mel de muitos americanos”, avalia, lembrando que as posições de Francisco são distintas dos Republicanos, maioria no Congresso.

John W. O’Malley é doutor em História pela Universidade de Harvard. Atualmente é professor de Teologia da Georgetown University, de Washington (EUA). É membro da Fundação Guggenheim, da Academia Norte-Americana de Artes e Ciências e da Sociedade Filosófica Norte-Americana. Especialista em Concílios, com especial atenção ao Concílio de Trento e ao Concílio Vaticano II, é autor de The Jesuits: A History From Ignatius to the Present (Pennsylvania: Rowman & Littlefield Publishers, 2014), What happened at Vatican II [O que aconteceu no Vaticano II] (Cambridge, MA: Harvard University Press/Belknap. Press, 2008) e A history of the Popes [Uma história dos Papas] (Lanham, MD: Sheed and Ward, 2006). Leia em português os livros Os primeiros jesuítas (São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos; Bauru, SP: Ed. EDUSC, 2004).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é a marca do pontificado de Francisco? Quais são as linhas gerais que o orientam? 

John W. O’Malley - No meu livro Os primeiros jesuítas,  eu disse que a orientação básica que Santo Inácio deu à Companhia de Jesus era “a ajuda das almas”. Essa expressão ocorre em praticamente todas as páginas de sua vasta correspondência com os jesuítas, uma vez que ele foi eleito o Superior Geral. Não consigo pensar em uma melhor expressão para resumir a orientação do Papa Francisco desde que ele se tornou Papa.

O que isso significa? Não estão todos os Papas preocupados com a “ajuda das almas”? A diferença em relação a Francisco é que ele é mais manual, mais indutivo do que dedutivo, mais disposto a levar em conta a experiência — em uma palavra, mais prático. Em certo sentido, mais sociológico. Como bem se sabe, ele é um tanto cético em relação a abstrações, especialmente em situações pastorais. A concretude de seu vocabulário sugere essa orientação, por exemplo, o “cheiro das ovelhas”.

 

IHU On-Line - Quais são seus maiores desafios?

John W. O’Malley - Penso que um de seus maiores desafios é lidar com os bispos (e alguns teólogos) que foram treinados para pensar as situações pastorais de modos muito diferentes dos de Francisco, isto é, mais dedutivo, mais prescritivo, mais abstrato e menos inclinado a tentar alcançar uma acomodação às situações reais. Penso, por exemplo, no predomínio do divórcio (oficial ou não!) em muitos países. Francisco está pedindo implicitamente que eles pensem diferentemente sobre tais situações, na linha do que eu indiquei acima.

Ele está pedindo que todos os católicos pensem mais abertamente e se preocupem menos com eles mesmos. Ele quer que a Igreja “vá para a periferia” e alcance-a. Isso requer uma mudança no programa para muitos padres, bispos e mesmo para os fiéis — uma mudança do programa do Papa Bento XVI, que estava contente com uma Igreja menor, desde que mais pura, mais fiel. Francisco absolutamente não pensa dessa forma.

 

IHU On-Line - Quais são as diferenças do Vaticano com os jesuítas e como, com a eleição do Papa, essas diferenças e, inclusive, semelhanças se manifestam?

John W. O’Malley - Durante os pontificados de Paulo VI e de João Paulo II, houve momentos de uma severa tensão entre o Vaticano e os jesuítas, mas com o Papa Bento tais momentos praticamente desapareceram. Essa situação tem se mantido assim com o Papa Francisco. Com Francisco, no entanto, há obviamente uma relação mais calorosa, como ficou manifesto em sua “conversa” com Antonio Spadaro,  S.J.,  o editor da Civiltà Cattolica, que foi pensada para as revistas jesuítas em todo o mundo. O Papa é cuidadoso para não parecer favorecer os jesuítas em detrimento de outras ordens. É importante lembrar que um de seus nove conselheiros especiais é o Cardeal Sean O’Malley, um capuchinho. Não existem jesuítas naquele círculo mais próximo.

 

IHU On-Line - Qual é o significado da escolha de Bergoglio como Papa sendo ele um jesuíta?

John W. O’Malley - Não vejo um grande ou especial significado no fato de ele ser um jesuíta. Ele foi eleito porque é Jorge Mario Bergoglio, um homem que os cardeais pensaram que poderia fazer o trabalho que precisava ser feito.

 

IHU On-Line - Como as discussões do Concílio Vaticano II evoluíram até hoje dentro da Igreja? Há mudanças com a chegada de Francisco? Quais?

John W. O’Malley - Francisco é o primeiro Papa em 50 anos que não participou do Concílio. Na minha opinião, isso é uma vantagem. Penso que Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI ainda estavam, em certo nível psicológico profundo, enfrentando as batalhas do Concílio. Francisco é livre de tais memórias. Ele estudou teologia logo após o Concílio acabar. Ele foi capaz, na serena atmosfera da sala de aula, de entender a mensagem básica do Concílio e me parece que tem se apropriado dele perfeitamente.

Comparado com seus predecessores, ele apenas raramente se refere ao Concílio pelo nome. Penso que isso se dá porque o Concílio faz tanto parte dele que ele o toma por certo e garantido. Por exemplo, ele não fala muito sobre o diálogo inter-religioso. E ele não o faz por conta do seu histórico como arcebispo de Buenos Aires. Seu diálogo com o rabino Abraham Skorka  foi sem precedente em toda a história da Igreja Católica. Nenhum prelado católico, antes ou depois do Concílio, jamais sentou com um líder de outra religião para empreender, por meses a fio, um diálogo aberto como o fez Bergoglio com Skorka. Isso é absolutamente espantoso! E é também muito corajoso!

 

IHU On-Line - Qual a leitura que Bergoglio faz do Concílio Vaticano II? Como a leitura que ele faz do Concílio se manifesta em seu pontificado?

John W. O’Malley - Uma vez que o Papa Francisco fala tão raramente sobre o Concílio, só podemos compreender a sua leitura pela análise de suas ações. Eu penso que para ele a mensagem básica seja a “ajuda das almas”, especialmente como está expresso no documento final, “A Igreja no mundo atual” – Gaudium et spes. Esse documento começa com aquelas belas palavras, “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”. Esse é o mote de Francisco como Papa.

Quando o Concílio foi aberto, o Papa João XXIII disse aos bispos que ele os queria no Concílio para mostrar que a Igreja é “a amorosa mãe de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade”. Eu não poderia dar uma melhor descrição da compreensão que Francisco tem do Concílio. “Não tenham medo de carinho”; um ano de misericórdia; e assim por diante.

 

IHU On-Line - Como as propostas do Concílio aparecem na Igreja atualmente? Que leitura se pode fazer do Concílio hoje, mais de 50 anos depois? 

John W. O’Malley - Essa é uma grande questão. Assim, eu tenho que ser bastante seletivo para tentar respondê-la. Como o Concílio aparece hoje? A forma mais concreta na qual posso pensar é, neste momento, no Sínodo sobre a Família. O Papa Francisco o tem transformado para torná-lo um encontro muito mais próximo do que o Concílio pretendia. Diferentemente de outros sínodos posteriores ao Vaticano II, neste os participantes foram encorajados a “falar honestamente”. Eles não estavam em Roma simplesmente para chancelar um documento já preparado. Em outras palavras, o Sínodo sobre a Família se aproxima, mais do que os sínodos anteriores, da implementação da doutrina da colegialidade episcopal.

Diferentes formas nas quais o Concílio pode ser interpretado? Há provavelmente milhares de formas! No entanto, há duas interpretações básicas: (1) o concílio não fez nenhuma mudança importante; (2) ele foi um grande ponto de viragem na história da Igreja Católica. Na minha opinião, a interpretação número 2 é claramente a correta. Isso não significa que a Igreja Católica não seja a mesma antes e depois do Concílio. Mas quer dizer que o Concílio foi um grande evento que reorientou significativamente a Igreja. Para ir além dessas generalizações, temo eu, seria preciso não um parágrafo, mas um livro!

 

IHU On-Line - A escolha de Bergoglio quebra com a centralidade europeia exercida dentro da Igreja? Por quê?

John W. O’Malley - Sem dúvida, a eleição de um Papa “do fim do mundo”, como o Papa Francisco descreveu a si mesmo na noite em que foi eleito, é extremamente importante. É um lembrete “gráfico” da catolicidade da Igreja Católica, assim como uma lembrança de que vivemos em um mundo global no qual um evento em Pequim é acompanhado no Rio no mesmo momento em que acontece.

Para os católicos, a Europa terá sempre certa eminência, simplesmente por causa de Roma, a Sé de Pedro e o lugar de seu martírio. Mas a eleição de Bergoglio volta os olhos da Igreja para um mundo mais amplo, para uma profundidade e um drama nunca contemplados antes.

 

IHU On-Line - Qual a repercussão do pontificado de Francisco nos Estados Unidos, especialmente junto ao governo norte-americano? 

John W. O’Malley - De acordo com todas as pesquisas que foram feitas desde que foi eleito, o Papa Francisco é admirado por mais pessoas, católicos e outros, do que qualquer outro Papa anterior, até mesmo João Paulo II. Esse número tem permanecido bem constante por dois anos. Será interessante observar se haverá alguma mudança durante ou após a sua visita em outubro.

Acho que Obama e Francisco vão se dar bem, mas não estou certo se o mesmo se dará com outros departamentos do governo, incluindo a Suprema Corte, onde seis dos nove juízes são católicos. Ele também falará ao nosso Congresso. Eu ouvirei esse discurso com o maior interesse, porque o que Francisco tem dito sobre economia, sobre o cuidado com os pobres, sobre imigração e refugiados, sobre os males da guerra e sobre o meio ambiente (entre outras coisas) é muito diferente do que muitos membros do Partido Republicano defendem — e os Republicanos estão em maioria no Congresso. O discurso poderia ser o fim da lua de mel de muitos americanos com o Papa Francisco.

 

IHU On-Line - Como a Igreja dos EUA avalia o pontificado de Francisco, especialmente após o caso da investigação Vaticana sobre as irmãs da Conferência de Liderança das Religiosas – LCWR ?

John W. O’Malley - De maneira geral, o Papa Francisco é tão popular nos EUA quanto no resto do mundo. Isto é, uma esmagadora maioria dos católicos gosta dele e de suas atitudes. A investigação vaticana sobre as freiras americanas, que começou durante o pontificado de Bento XVI, irritou grande parte dos católicos americanos, que se sentem muito gratos às freiras por seus maravilhosos serviços em escolas e hospitais. Recentemente, quando a investigação terminou com um resultado felizmente favorável a elas, as pessoas elogiaram Francisco por tal justa e sábia decisão.

Entretanto, há uma pequena minoria de católicos que é mais “tradicional” em seu entendimento sobre o papel do Papa e são bastante conservadores política e economicamente. Eles são bastante sonoros em suas críticas ao Papa. Um importante colunista do New York Times disse abertamente que Francisco está destruindo a Igreja e que suas atitudes poderiam levar ao cisma.

Contudo, no momento essas são vozes solitárias. Todos preveem que a visita de Francisco aos EUA no próximo outono dará um impulso ainda maior à sua popularidade. No entanto, isso não é ainda um fato comprovado. Isso vai depender bastante do que ele disser quando se dirigir ao Congresso americano. Muitos dos congressistas são católicos, mas tendem a ser econômica e politicamente conservadores e a favorecer políticas referentes a problemas de justiça social, imigração, ecologia e assim por diante, que divergem bastante daquelas do Papa. Muitos católicos (assim como outros, é claro), apoiam as políticas desses congressistas. Será interessante observar o que irá acontecer e se os discursos do Papa diminuirão o amor que virtualmente todo mundo sente por ele no presente.

 

IHU On-Line - Sobre o Sínodo de Outubro, qual o significado desse tipo de encontro que suscita a colegialidade no pontificado de Francisco?

John W. O’Malley – Chamo atenção ao papel-chave que o Arcebispo Bergoglio desempenhou no reavivamento do CELAM  alguns anos atrás. O Vaticano II queria que as conferências episcopais exercessem um papel maior na Igreja pós-conciliar e conferiu a elas uma autoridade considerável. Embora as conferências não sejam a mesma coisa que a doutrina da colegialidade, elas estão estreitamente conectadas com ela. No começo dos anos 1980, o papel delas foi, entretanto, gradualmente diminuído. Ao reavivar o CELAM, Bergoglio indiretamente estava reavivando a colegialidade.

Por que a família? Eu realmente não sei. Entretanto, acho a escolha desse tópico consonante com a orientação do pontificado em direção aos problemas reais e concretos e a busca de solução para eles. A família continua sendo a unidade básica e mais fundamental da sociedade ao redor do mundo, não importando como a família seja definida. A Igreja Católica tem uma série de ensinamentos referentes a ela e diversas regras que a governam. Não é preciso ser um gênio para imaginar que no mundo de hoje a postura da Igreja está sendo desafiada por como muitas pessoas vivem de facto suas vidas. Como o Sínodo deixou claro, há muitos problemas que a Igreja deve encarar — divórcio (e anulações), poligamia, coabitação antes ou sem casamento e uniões de pessoas do mesmo sexo.

Termino com as palavras de Francisco, utilizadas para concluir o Sínodo no ano passado: “Queridos irmãos e irmãs, agora temos ainda um ano para amadurecer, com verdadeiro discernimento espiritual, as ideias propostas e encontrar soluções concretas às tantas dificuldades e inumeráveis desafios que as famílias devem enfrentar; dar respostas aos tantos desencorajamentos que circundam e sufocam as famílias. [...] Que o senhor nos acompanhe!”.■

Leia mais...

- O Concílio do impulso para a reconciliação. Entrevista com John W. O’Malley, publicada na IHU On-Line 401, de 03-09-2012;

- "Um outro concílio? Só se for em Manila ou no Rio, não em Roma". Entrevista com John W. O"Malley, publicada nas Notícias do Dia, de 23-01-2010;

- Entre o amor e o ódio, Deus e o conhecimento. A complexa história jesuítica. Entrevista John W. O’Malley, publicada nas Notícias do Dia, de 23-01-2015;

- Uma história de renúncias Papais. Artigo de John W. O'Malley, publicado em Notícias do Dia, em 03-03-2013, no sítio  do IHU;

- Dez formas para confundir os ensinamentos do Vaticano II. Artigo de John O'Malley, publicado em Notícias do Dia, em 28-01-2013, no sítio do IHU;

- Francisco vive a mensagem do Concílio em palavras e ações. Artigo de John O'Malley, publicado em Notícias do Dia, em 27-09-2013, no sítio do IHU.

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