Edição 465 | 18 Mai 2015

Francisco: o primeiro Papa totalmente pós-Concílio

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João Vitor Santos | Tradução Sandra Dall'Onder

Massimo Faggioli compreende o pontificado pela perspectiva do Concílio Vaticano II. Para ele, o Papa aceita o encontro eclesiástico “como um dado fundamental da Igreja de hoje”

A novidade contida em Francisco, reconhecida por teólogos, leigos e religiosos, está em pensar uma Igreja aberta para o povo, mais simples e comprometida com o diálogo. São ares que renovam o oxigênio de uma entidade secular para que encare desafios da modernidade e pós-modernidade. Para o historiador Massimo Faggioli, a própria escolha de Bergoglio, um bispo latino-americano, em 2013 revela o desejo de renovação na Igreja. Renovação que aparece também na leitura que tem do Concílio Vaticano II. Cinquenta anos depois desse encontro eclesiástico, tem-se o primeiro Papa que aceita as orientações conciliares e pensa a partir delas. “João Paulo II e Bento XVI eram homens do Concílio Vaticano II e seus pontificados estavam empenhados em corrigir as trajetórias do Concílio. Francisco aceita o Concílio como um dado fundamental da Igreja de hoje”, destaca.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Faggioli apresenta a ideia de reforma creditada ao Papa como a vontade de deixar a Igreja “mais terrena” e atual. “O catolicismo do Papa Francisco se expressa na capacidade de combinar o antigo e o novo, o radicalismo evangélico e as devoções”, completa. Em outro ponto, destaca que toda essa novidade não é aceita com unanimidade. Isso se manifesta numa oposição ao estilo bergogliano. “Há uma oposição institucional (aqueles do status quo eclesiástico), a oposição teológica (as mesmas pessoas que estão contra o Vaticano II) e uma oposição política (aqueles que veem Francisco como um Papa que não entenderia a necessidade de o catolicismo ser politicamente conservador)”, explica. Por fim, ainda apresenta sua leitura sobre o conceito de misericórdia e o significado do jubileu proposto por Francisco.

Massimo Faggioli é doutor em História da Religião e professor de História do Cristianismo no Departamento de Teologia da University of St. Thomas, de Minnesota, Estados Unidos. Seus livros mais recentes são Vaticano II: A luta pelo sentido (Paulinas, 2013); True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium (Liturgical Press, 2012); e, em espanhol, Historia y evolución de los movimientos católicos. De León XIII a Benedicto XVI (Madrid: PPC Editorial), 2011.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em que momento se encontrava a Igreja quando Jorge Mario Bergoglio surgiu como novo Papa?

Massimo Faggioli - A Igreja estava em um momento de grave crise, não só pelos escândalos da Cúria Romana, mas também pela sensação clara de que o catolicismo não poderia suportar mais os atrasos em relação ao Concílio Vaticano II  (liturgia, o ecumenismo, a eclesiologia, etc.). A renúncia de Bento XVI é também, em certo sentido, o reconhecimento da crise de um paradigma teológico. Neste sentido, Jorge Mario Bergoglio-Francisco de 2013 é um Papa diferente do que teria sido se ele tivesse sido eleito em 2005.

 

IHU On-Line - O que significa dizer que Francisco dessacraliza a figura do Papa? Como isso aparece em relação aos pontificados anteriores?

Massimo Faggioli - Francisco dessacraliza a figura do Papa no sentido de retirar todos os elementos da Corte Romana, até mesmo pela áurea infalível do passado. Quando Francisco fala sobre si mesmo e seu passado na famosa entrevista com Antonio Spadaro,  SJ, para a Civiltà Cattolica,  nos dá um vislumbre extraordinário de sua biografia em termos muito humanos. Francisco segue no caminho aberto por João XXIII  e seus sucessores, com a diferença de que sua carreira eclesiástica não foi linear, mas muito "acidentada" e cheia de imprevistos. Isto nos proporciona uma contribuição fundamental para o tema de seu pontificado, a misericórdia.

 

IHU On-Line - De que forma Francisco dialoga com o Concílio Vaticano II e em que aspectos se diferencia de João Paulo II e Bento XVI?

Massimo Faggioli - João Paulo II e Bento XVI eram homens do Concílio Vaticano II e seu pontificado estava empenhado em corrigir as trajetórias do Concílio. Francisco aceita o Concílio como um dado fundamental da Igreja de hoje, sem o compromisso de rediscutir o pós-concílio. É uma diferença fundamental. Em certo sentido, Francisco é o primeiro Papa totalmente pós-Concílio, não sente nenhuma nostalgia do pré-Concílio.

 

IHU On-Line - Em que aspectos o seu comportamento pós-Conciliar contribui para reformar a Igreja e como?

Massimo Faggioli - Essencialmente em uma recepção total do Concílio Vaticano II, mas especialmente através da intuição crucial de Gaudium et Spes  sobre a relação entre a Igreja e o mundo: uma aceitação da dimensão humana e histórica da Igreja, sem romper com a vocação profética da Igreja no mundo. As reformas que Francisco propõe visam tornar a Igreja mais terrena, mas não abstraí-la do mundo concreto.

 

IHU On-Line - Para além das questões conciliares, mas considerando a história da Igreja, quem inspira o Papa Francisco? Quem seria o antecessor mais próximo de Francisco?

Massimo Faggioli - O mais próximo é certamente João XXIII. Há muitas semelhanças não apenas entre suas biografias, mas também entre os seus pontificados. Mas há também, do ponto de vista intelectual, afinidades com Paulo VI,  especialmente com a exortação Evangelii Nuntiandi  de Paulo VI.

 

IHU On-Line - Quem é a oposição a Bergoglio e como ela se articula?

Massimo Faggioli - Existem raízes diferentes entre eles. Há uma oposição institucional (aqueles do status quo eclesiástico), a oposição teológica (as mesmas pessoas que estão contra o Vaticano II) e uma oposição política (aqueles que veem Francisco como um Papa que não entenderia a necessidade de o catolicismo ser politicamente conservador). 

Aqueles que se opõem a Francisco têm uma mistura destas três mentalidades diferentes. Mas o maior obstáculo certamente está representado pelas Conferências Episcopais, pelos bispos nomeados nos trinta anos anteriores, especialmente em certos países, como os Estados Unidos.

 

IHU On-Line - Com o anúncio do “Jubileu da misericórdia” , o Papa Francisco imprime uma mudança, uma “reorientação” na Igreja? Como e de que tipo?

Massimo Faggioli - O catolicismo do Papa Francisco se expressa na capacidade de combinar o antigo e o novo, o radicalismo evangélico e as devoções. Um desses casos é o Jubileu extraordinário da misericórdia, anunciado em 13 de março e delineado com a bula pontífica publicada em 11 de abril, Misericordiae Vultus  Os elementos tradicionais são baseados naqueles do instrumento jubilar do cristianismo medieval, mas o contexto em que aparece a decisão do Papa promete um jubileu diferente do ano de 2000. 

Nesse sentido pleno de significado é o amplo parágrafo no qual Francisco justifica a escolha da data de 8 de dezembro de 2015: "No quinquagésimo aniversário da conclusão do Concílio Ecumênico Vaticano II. A Igreja sente a necessidade de manter vivo aquele evento. Para ela começou um novo curso de sua história” (parágrafo 4). A longa citação do discurso de abertura do Concílio por João XXIII, Gaudet Mater Ecclesia,  teve importância semelhante à citação na exortação Evangelii Gaudium. A escolha de um jubileu sobre o tema da misericórdia a partir de uma ruptura histórica que começou com o Concílio Vaticano II confirma os paralelos entre Francisco e João XXIII e entre as duas estações histórico-teológicas. 

Francisco não deixa de recordar a potencialidade ecumênica e inter-religiosa do jubileu — uma das continuações do Jubileu de Wojtyla, entre tantas inconstâncias. O tempo e o modo do Jubileu de Francisco, bem como algumas passagens temáticas da bula, demonstram um jubileu menos centrado em Roma e menos trabalhado através de grandes eventos. A ênfase em relação aos pobres e à periferia, a ênfase na corrupção e na tentação do dinheiro promete um jubileu de natureza diferente daquele de João Paulo II. Foi há apenas quinze anos, mas parece que se passou um século.

 

IHU On-Line - A figura de Francisco caiu nas graças da imprensa internacional. A que atribui isso?

Massimo Faggioli - A imprensa gosta de novidades e este é definitivamente um fator para a simpatia em relação ao novo Papa. Mas existem novidades substanciais no Papa Francisco que chamam a atenção: os pobres, a imigração e o estilo de vida do Papa. Estas são coisas que se enquadram na percepção que a opinião pública mundial (católica ou não) tem da Igreja Católica, de que a Igreja Católica também deveria se preocupar. Neste sentido, a atenção da imprensa e a dos fiéis em todo o mundo é muito semelhante.

 

IHU On-Line - Em artigo publicado no Global Pulse,  em fevereiro deste ano, o senhor destaca as conversas com jornalistas durante os voos como marca das viagens do Papa Francisco. Por quê?

Massimo Faggioli - Porque nessas ocasiões Francisco sempre disse coisas notáveis, quase como se a distância de Roma o fizesse sentir-se livre para enfrentar temas novos e diferentes. Mas há também o conhecimento de que, ao viajar, a cobertura da mídia sobre o Papa é maior e por isso é o momento certo para falar certas coisas.

 

IHU On-Line - No mesmo artigo, o senhor diz que o “Papa Francisco entra no sistema de simulacros da nossa sociedade através da porta pós-moderna da mídia global”. O que significa?

Massimo Faggioli - O sistema dos "simulacros" (para citar o filósofo francês Jean Baudrillard ) é típico do sistema de comunicação global como um sistema de símbolos cuja realidade factual, o conteúdo, pode ser preenchido ou permanecer vazio. Francisco tem consciência da necessidade de preencher de conteúdo a sua dimensão midiática. Neste sentido, Francisco é comparado a João Paulo II, menos estrela, mas mais consciente dos riscos do sistema da mídia.

 

IHU On-Line - Que leitura geopolítica e geocultural Francisco tem da Europa? E do mundo?

Massimo Faggioli - Do ponto de vista global, a eleição de Bergoglio ao Pontificado tem o significado de uma correção de rota dada à Igreja Católica a partir do ponto de vista da geopolítica do catolicismo. A Igreja latino-americana, que se tornou o laboratório da doutrina social da Igreja sob o comando de Paulo VI, sofreu durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Primeiro houve a luta contra a Teologia da Libertação,  depois um claro eurocentrismo. Esta parte do catolicismo mundial surgiu a partir do conclave com o cardeal jesuíta, apesar de uma evidente falta de representação no Colégio dos Cardeais. No momento do conclave de 2013, a América Latina teve 42% de católicos em todo o mundo (cerca de meio bilhão de um total de 1,2 bilhões), mas apenas 19 de 117 cardeais, contra os 62 da Europa (onde vive agora apenas 25% de todos os católicos). É uma nova geopolítica, que reconsidera o hemisfério sul como decisivo para o destino do mundo e da Igreja. O papel da Europa no catolicismo global deve ser todo repensado. ■

 

Leia mais...

- Vaticano II. 50 anos depois, apenas o início de um longo processo de recepção. Entrevista com Massimo Faggioli, publicada na IHU On-Line 401, de 03-09-2012.

- Sínodo: dos ''valores inegociáveis'' à ''gradualidade''. Artigo de Massimo Faggioli, publicado em Notícias do Dia, de 10-10-2014, no sítio do IHU;

- A Igreja contextualizada e liberacionista do Papa Francisco. Artigo de Massimo Faggioli, publicado em Notícias do Dia, de 05-02-2015, no sítio do IHU;

- O ecumenismo 2.0 do Papa Francisco. Artigo de Massimo Faggioli publicado em Notícias do Dia, em 04-08-2014, no sítio do IHU;

- Iraque, o "problema americano" do Papa Bergoglio. Artigo de Massimo Faggioli, publicado em Notícias do Dia, em 21-08-2014, no sítio do IHU;

- Contra os fanáticos, é preciso de mais teologia. Artigo de Massimo Faggioli, publicado em Notícias do Dia, em 20-01-2015, no sítio do IHU;

- Os católicos e a política diante do Isis. Artigo de Massimo Faggioli, publicado em Notícias do Dia, em 18-02-2015, no sítio do IHU;

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