Edição 463 | 20 Abril 2015

A mística teresiana e a profunda transformação

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João Vitor Santos

Lúcia Pedrosa de Pádua apresenta a narrativa de Teresa de Ávila como caminho para buscar o contato íntimo consigo e com Deus, transformando o mundo a partir desse instante

A experiência mística é transformadora. A afirmação não chega a trazer novidade, mas e se pensarmos numa mística transformadora para além do espiritual, algo simplesmente humano? É com essa abordagem que a professora de teologia da PUC-Rio Lúcia Pedrosa de Pádua fala da experiência de Teresa de Ávila. Para ela, Teresa só alcançou o melhor da vivência mística porque encarou sua condição humana. “Ela prova que o amor espiritual é humano. Não existe amor puramente espiritual porque não somos anjos. Somos humanos”, pontua. Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line quando da sua presença no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Lúcia propõe uma leitura do legado de Santa Teresa para os dias atuais.

Lúcia entende Teresa como uma peregrina inquieta. Significa que a vê na figura de uma mulher que busca, vai atrás, quer movimento. Postura que, segundo a teóloga, o papa Francisco destaca ao dizer que temos de aprender a sermos peregrinos. Isso, pela mística teresiana, sinaliza transformações. “Francisco chama atenção para a necessidade de uma Igreja em saída. Ou seja, ele quer movimento na Igreja. Então, sabe que não há movimento se a gente não sacode a poeira de muitas coisas que engessam esse movimento”, destaca.

E não suscita só mudanças na Igreja. Através da experiência mística, Teresa tece uma narrativa de vida que incita a busca por algo mais. Coloca em cheque desde a condição da mulher, da oração e da busca pelo essencial. Logo, tal experiência pode passar a ser lida desde como forma de superar crises, até a conquista de espaços para as questões de gênero, cor ou classe social. “Teresa dilata e empodera as capacidades humanas. Descobre e dilata o eu interior na sua forma até mesmo de ver e compreender interiormente”, o que de fato suscita uma verdadeira e profunda transformação nas mais diversas instâncias da vida humana. 

Na entrevista, Lúcia demonstra como esse processo pode inspirar a humanidade hoje. Para ela, a prova da força dessa narrativa da experiência mística de Teresa de Ávila pode ser demonstrada pelo interesse em sua obra, estudada por várias áreas do saber. “Ela morre em 1582, a primeira edição das suas obras é de 1588 e não deixaram de ser publicadas.”

Lúcia Pedrosa de Pádua tem doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e pós-doutorado em Teologia da Espiritualidade pela Pontificia Università Gregoriana de Roma, na Itália. É professora de Teologia e Cultura Religiosa na PUC-Rio. Entre suas obras, destacam-se Espiritualidad de Encarnación de la Institución Teresiana: una reflexión a partir de la Teología Latinoamericana (Cochabamba, Bolívia: Editorial Serrano, 2006), O humano e o fenômeno religioso (Rio de Janeiro - RJ: PUC-Rio, 2010) e Santa Teresa. Mística para o nosso tempo (Rio de Janeiro: PUC-Rio e Reflexão, 2011).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como analisa o legado de Teresa de Ávila a partir dessa conexão íntima entre o amor espiritual e o amor humano?

Lúcia Pedrosa de Pádua - Eu vejo Santa Teresa como uma mulher que deixou uma herança enorme, quase do tamanho do que ela recebeu. Todos nós recebemos muito da história e, em geral, na maioria das vezes, deixamos pouco. Teresa deixa um legado impressionante em termos do conjunto de sua obra e de sua vida. Ela é estudada a partir de várias perspectivas. Eu conheço até quem a estude a partir da perspectiva da medicina popular, através das Cartas, e da administração, administração das comunidades, dos conventos que ela fundou. 

Agora, com certeza, seu grande legado é sua experiência de oração. E nessa experiência de oração há um processo, um caminhar. É um processo que ela vai experimentando, que vai vivendo ao longo da vida dela. E sobre essa relação entre o amor espiritual e humano, ela prova que o amor espiritual é humano. Não existe amor puramente espiritual porque não somos anjos. Somos humanos. Nenhum amor é puramente espiritual, embora na linguagem às vezes apareça esse dualismo. Mas ela prova e vai integrando todo esse amor que, segundo as palavras dela, aparecia “aos borbotões”. O amor espiritual, ou seja, o amor a Deus, é integradamente um amor humano, por ser um amor para os demais e por ser um amor para consigo próprio. No sentido de criar um autoconhecimento. Portanto, é um amor irradiante em todas as direções.

 

IHU On-Line - Então, assume-se essa condição humana. Portanto, o amor será humano. Mas se passa a desenvolver e trabalhar essa relação no espiritual. É isso o que fica do grande legado de Teresa?

Lúcia Pedrosa de Pádua - Ela vai desenvolvendo, vai descobrindo e se descobrindo em sua humanidade na medida em que vai descobrindo este Deus que tanto a chama. É uma dialética inseparável. Quanto mais perto de Deus, mais perto de si própria Teresa está. Essa é a dinâmica do Castelo Interior . Deus, como um sol, habita a pessoa, que é comparada a um castelo de diamante ou muito claro, como cristal. Este sol interior como que atrai uma entrada para dentro de si. Esta entrada dentro de si é também uma entrada na claridade de si mesmo. No melhor que a pessoa pode ter. No melhor que a pessoa se descobre do ponto de vista humano e ético. E este encontrar-se e descobrir-se humano e ético coincidem com o encontro cada vez mais profundo com Deus. Com o Deus de Jesus Cristo, como ela vai definindo mais tarde no seu caminhar espiritual.

 

IHU On-Line – Por que Teresa de Ávila é uma andarilha para tempos de peregrinação ?

Lúcia Pedrosa de Pádua - No tempo dela, foi chamada de mulher inquieta e andarilha. Hoje, nós admiramos o fato de ela ser uma andarilha, uma mulher inquieta. Porém, no tempo dela, esta expressão foi pejorativa. Foi uma expressão realizada por um núncio papal que, de forma pejorativa, vai dizer que Teresa é uma mulher inquieta e andarilha; e continua, ao dizer que é desobediente e contumaz; e continua ainda, ao dizer que, em termos de religião, inventa más doutrinas. Ou seja, desqualifica sua atividade como má doutrina. E continua, ao ir contra o Concílio de Trento , recém-finalizado. E, ao finalizar a frase, acrescenta que vai contra o apóstolo que ensinava que as mulheres não deviam falar ou ensinar. Portanto, Teresa era uma mulher que ia contra os costumes, contra o Concílio, contra os prelados e contra a própria Bíblia. Não é muito honroso e também é uma frase que demonstra a perseguição e os riscos pelos quais Teresa, com sua ousadia, passou. 

Hoje em dia, agradecemos essa explicação pejorativa porque ela é ressignificada. O papa Francisco, na abertura do Ano Teresiano , vai convidar os cristãos a entrarem na escola de Teresa, na escola da Santa Andarilha, e a aprenderem que na escola na Santa Andarilha somos todos peregrinos. É uma ressignificação, cinco séculos depois, positiva, que coloca essa inquietude e andar teresianos. 

Aí você pode me perguntar: em que sentido ela foi andarilha? Sabemos que ela foi uma andarilha como fundadora. Ela pessoalmente fundou mais de 15 conventos. Portanto, andou por meia Espanha. Foi uma andarilha dos caminhos da Espanha, na intempérie, na chuva, no vento, na neve, no sol inclemente das regiões do sul. E uma andarilha incansável porque sempre esperançada no futuro e no que viria depois. Ao mesmo tempo, nós podemos também descobrir na vida dela várias peregrinações. Toda a vida dela foi um grande processo de amadurecimento e de encontro com aquele que, segundo ela, sabemos que nos ama: o próprio Deus.

 

IHU On-Line - Como podemos entender o significado desse convite do papa Francisco para sermos peregrinos e teresianos? De que forma isso representa uma ressignificação de papéis da Igreja?

Lúcia Pedrosa de Pádua - Dois momentos. No tempo dela, esta ousadia foi admirada por vários varões e várias pessoas. Não podemos esquecer que ela teve a crítica, mas também teve seguidores. Hoje em dia, torna-se especialmente importante pelo fato de Francisco chamar atenção para a necessidade de uma Igreja em saída. Ou seja, ela quer movimento na Igreja. 

Então, sabe que não há movimento se a gente não sacode a poeira de muitas coisas que engessam esse movimento. Daí esse convite do papa, tão forte, de colocar a vida e as pessoas acima das leis, que podem engessar. É um convite ao dar-se. As peregrinações teresianas podem ajudar a gente nessa movimentação, nessa retomada de um dinamismo. Por exemplo: Teresa foi uma mulher que buscou, que não se acomodou. E que apresentou ao longo de sua vida muita jovialidade. E jovialidade nesse sentido de flexibilidade. Uma das palavras dela ao morrer: “é tempo de caminhar”. Uma pessoa doente que no leito de morte diz que é tempo de caminhar, indica uma pessoa que se coloca em movimento, deseja e busca. 

Busca que se manifesta desde o início da vida dela. Com sete anos, foge de casa querendo ser missionária. Nas palavras dela, queria ser “descabeçada pelos mouros, queria morrer mártir”. Mas nós temos também uma segunda fuga, para ser freira, para ser carmelita. Uma fuga difícil, pois o pai dela não queria esse caminho. Mas, mesmo assim, ela busca a sua felicidade. Aí está algo interessante, porque felicidade não é uma categoria do tempo dela, mas é do nosso tempo.

 

IHU On-Line - Pensando a partir da história de Teresa, quais são as principais peregrinações da mulher hoje dentro e fora da Igreja?

Lúcia Pedrosa de Pádua - A mulher tem sempre que ousar. Tem que buscar, não pode deixar essa movimentação. Porque vemos — os dados e a vida cotidiana mostram — que ainda não temos essa qualificação ou esta igualdade (com os homens). No tempo de Teresa, isso era muito forte. E ela teve que, primeiro, ser muito observadora. Cair na conta da desqualificação que as mulheres sofriam. Isso é algo para hoje: cair na conta, não abandonar o sentido crítico. 

Teresa foi uma observadora da mãe. A mãe dela teve nove filhos. Ela observava que a mãe e ela liam os livros de cavalaria sempre escondidas do pai. Sempre olhando para porta, com medo que o pai entrasse. Então, observa essa condição feminina que está dentro de casa. E observa isso dentro dela. A forma como é desqualificada por alguns varões, como o núncio, que é um dos testemunhos. Temos outros testemunhos também de catedráticos de Salamanca. 

Essa observação é crítica, que se abre à crítica. Nós temos uma oração dela que denuncia essa situação de encurralamento que as mulheres viviam. Ela diz, em forma de oração: “já não basta, senhor, que o mundo nos traga encurralados e que não haja virtude de mulher que não tenham por suspeita”. Teresa vai observar que as mulheres não podem falar em público aquilo que choram em segredo. Portanto, esta observação crítica e que é capaz de se expressar, Teresa expressa em forma de oração. Isso é muito belo. É uma função e necessária ao papel da mulher hoje em dia: a observação, a crítica e o falar, buscar palavras. A violência contra a mulher ainda necessita de muita palavra, muita denúncia. O Brasil vive essas denúncias em torno do 8 de março. Mas o 8 de março manifesta uma situação longe de ser ideal. Temos caminhado, mas está longe de ser até mesmo calculada.

 

IHU On-Line - E dentro da Igreja, quais os desafios da mulher peregrina?

Lúcia Pedrosa de Pádua - Um dos papéis importantes é crescer e desenvolver essa função teológica. A mulher teóloga é muito importante na Igreja e ainda são poucas as mulheres que se aventuram no caminho da teologia, no estudo teológico.

 

IHU On-Line – Por que são tão importantes? 

Lúcia Pedrosa de Pádua - Porque a mulher precisa se ver na teologia, na história e no futuro da teologia para descobrir sua qualidade. Nos fóruns, nas comunidades, como dirigentes da comunidade, como participantes principais que nós temos no Brasil falta ainda essa palavra da mulher especialmente nas instâncias mais qualificadas e mais decisórias.

 

IHU On-Line - Você fala, então, de uma mulher que não somente conte a história de varões, mas também se insira dentro dessa história?

Lúcia Pedrosa de Pádua - A barreira da inserção deve ser sempre galgada, pulada, na instância política, etc. Talvez a mulher não se veja ainda ocupando esses espaços como poderia, como deveria.

 

IHU On-Line – Por que você considera a experiência teresiana como grande janela através da qual vislumbramos as possibilidades humanas em sua comunicação com Deus?

Lúcia Pedrosa de Pádua - Teresa, como os grandes místicos, reflete algo de nós. Por isso são atuais. Aliás, as obras teresianas nunca deixaram de ser publicadas. Ela morre em 1582, a primeira edição das suas obras é de 1588 e não deixaram de ser publicadas. Por quê? Qual o segredo disso? Curiosidade? Não. Vontade de estudá-la? É pouco para esse êxito editorial. O êxito vem do encontro que a pessoa que a lê faz consigo mesma e com Deus e com ela. 

A pessoa que lê encontra algo de si. E além de encontrar algo de si, pode vislumbrar um si mesmo desconhecido. Lendo Teresa, nós podemos vislumbrar a enorme capacidade humana, a enorme capacidade e beleza. “Beleza e capacidade da alma”, na expressão dela. Teresa dilata e empodera as capacidades humanas. Descobre e dilata o eu interior na sua forma até mesmo de ver e compreender interiormente. Dilata suas capacidades de descobrir-se em suas potencialidades, de gerenciar medos, de avançar em coragem, de iniciar trabalhos insuspeitáveis antes. Então, lendo Teresa podemos, primeiro, admirá-la como pessoa, mas, pelas asas dela, voar também. Descobrirmos em nós dimensões adormecidas. Da nossa capacidade, interioridade e capacidade dinâmica.

 

IHU On-Line - É isso que também leva Teresa e sua obra para outras áreas do conhecimento?

Lúcia Pedrosa de Pádua - Teresa desperta o interesse de vários saberes. Primeiro essa forma dela de falar do humano vai despertar o interesse da literatura. Atualmente tem despertado especialmente a atenção da psicologia, psicologia profunda e outras vertentes. Porque Teresa é uma mulher capaz de falar em filigrana do humano. Não tem medo de descobrir em sua beleza e em sua fealdade, em suas mazelas, no mal que pode provocar. Isso a torna fascinante para a psicologia, essa filigrana com que ela descreve essa inter-relação entre corpo, mente e espírito. As capacidades psíquicas também de reciclar as memórias e refazer-se como pessoa humana e de integrar o próprio corpo em tudo isso, em toda essa experiência.

A História também desperta esse interesse. A história dos costumes tem em livros históricos de Teresa, como As Fundações , as cartas, um enorme veio. O Dicionário Teresiano , publicado há pouco tempo, é grande, foi caríssimo e demorou a ver a luz. Por quê? Devido à quantidade de nomes que Teresa cita, com nomes e sobrenomes em suas cartas. Pessoas tão diferentes e de estratos sociais tão diversos. São nobres, burgueses, há escritos ao rei, escritos a pessoas de ordens religiosas diferentes, ordem novas como os Jesuítas, ordens tradicionais, homens e mulheres, familiares. Teresa acompanha a vida de seus irmãos. Ela vai acompanhar até a terceira geração na sua família naqueles que sobreviveram ou que retornaram de incursões pelas Índias. Portanto, essa riqueza de detalhes e costumes, de narrativas presentes nas cartas que circulam pelo mundo da culinária, da medicina, dos chás, dos acontecimentos políticos, das guerras que vão atingir e provocar também a preocupação de Teresa. Tudo isso faz das cartas e das Fundações uma verdadeira crônica de época na qual podemos ver não só a vida cotidiana como também a vida política não fácil daquele tempo, de guerras e um tempo também de inquisições e perseguições.

 

IHU On-Line - Qual é o poder da narrativa de Teresa, já que é uma narrativa de si própria, da sua experiência? A impressão que se tem é de que são duas Teresas: a experenciadora, que vive a experiência, e a narradora, que transmite a mensagem dessa experiência.

Lúcia Pedrosa de Pádua - Teresa tem muita consciência de que há três momentos na narrativa. E ela escreve isso. O primeiro momento é a experiência. O segundo momento é refletir sobre a experiência, é saber, segundo suas palavras, “de qual graça se trata”. E o terceiro momento é saber comunicá-la. E ela vai fazer com maestria essa narrativa. 

Além disso, Teresa é uma mulher moderna. Está no início da modernidade. E o início da modernidade traz em si essa descoberta da subjetividade, e por isso Teresa vai ser uma narradora. O Livro da Vida  está escrito em primeira pessoa. Isso antes de Descartes . Ela começa falando, a primeira frase do livro é: “ter pais tão virtuosos e tementes a Deus me teria bastado, se eu não fosse tão ruim, junto com o que o senhor me favorecia para ser boa” . Ou seja, ela já começa ali falando de sua vida. 

O que acontece com a narrativa? É um gancho com o leitor, porque pela narrativa o leitor também se narra. E é uma das chaves do êxito editorial de Teresa. Ela não estudou teologia escolástica, como seu amigo João da Cruz  e outros. A sua forma de narrar, apesar de não ser desprovida de teologia, traz muita teologia através de leituras e conversas com os teólogos. Mas na hora de explicar, ela vai usar e buscar as suas próprias palavras e uma forma de ser compreendida. Assim, embutida na narrativa de Teresa, há uma intencionalidade didático-pedagógica. 

Profetisa narradora

Teresa quer ser compreendida para que sua mensagem cumpra a função. Primeiro, porque precisa narrar como os grandes profetas que diante de Deus têm que falar. Como o profeta Amós , que diz: “O leão rugiu. Quem não temerá? Deus falou: quem não profetizará?” Portanto, ser profeta é um imperativo que surge do interior de Teresa de forma irrevogável. Ela não pode ficar calada, os místicos não podem ficar calados. Ela precisa falar e tem o que dizer.  O que ela tem a dizer fundamentalmente é o que Deus faz com a pessoa humana. É a narrativa do encontro da pessoa humana com Deus e, antes, dessa busca que Deus faz. Deus realiza por cada pessoa humana. 

E Teresa tem o dom da pluma. O dom da fala. Ela é uma pessoa comunicativa. E ela mesma vai dizer: “quanto mais santas, mais conversáveis”. Portanto, a noção de santidade ligada a uma austeridade de palavras não é a vertente teresiana. E nisso ela vai ser pioneira. Esse conjunto de qualidades proféticas e humanas no sentido do dom mesmo particular de narrador, de faladora, de conversadora e leitora, que é Teresa, tudo isso vai fazer dela uma grande narradora. 

O Livro da Vida é narrativa em primeira pessoa, mas o Livro das Moradas também. É uma autobiografia, embora não seja em primeira pessoa. É uma forma de falar a sua experiência, do Castelo Interior, mas não em primeira pessoa. É outra forma de narrar o que viu de mais impressionante na sua existência, que foi a presença e a comunicação de Deus. Aliás, a teologia de Teresa também está ancorada na ideia de que Deus também é um falador. É um Deus, nas palavras dela: “que assim se comunica”. Que quer se comunicar, que desce, que condescende, que deseja e estabelece o contato com a pessoa humana, fazendo da pessoa humana uma maravilha.

 

IHU On-Line - Vivemos um momento no mundo, e no Brasil em especial, em que falamos muito em crise. Crise política, social, econômica e até do humanismo. De que forma a mística de Teresa de Ávila pode inspirar saídas para esse estado de mal-estar e crise?

Lúcia Pedrosa de Pádua - Teresa pode nos ensinar a ser mais consistentes e mais sensíveis com o outro. Há dois movimentos. Um que é centrípeto e outro que é centrífugo, provando que se exigem mutuamente. Vejo que nós podemos, cada um, mas como humanidade, caminhar nessa verdade diante de si mesmo. Abandonar um pouco a crítica que fazemos aos outros e a desculpa que nos damos a nós mesmos sempre. Isso não contribui para um estado ético. Porque caminhamos olhando para fora e olhando pouco para dentro. Mística e ética se complementam. 

Toda mística exige uma transformação interior. As transformações internas são lentas e necessitam uma experiência, e experiência exige tempo. Então, sermos transformados em nosso medo, nosso fechamento, em nossa falta de coragem de olhar o que em nós não é ético e não é bonito. Isso é uma necessidade atual de um estado ético, de uma situação ética. Ou seja, precisamos descobrir isso, fazer uma séria autocrítica da nossa fragilidade ética. Uma fragilidade muito encoberta por situações de corrupção, cobrindo nossa ética pessoal.

A mística forma sujeitos consistentes. Humanamente consistentes. E, aí, consistentes no seu autoconhecimento, na sua própria verdade e na sua coragem de transformação. E uma coragem de transformação sem perfeccionismo. Porque o perfeccionismo não ajuda nessa trajetória. Sabendo que tudo é um processo. Nesse ponto, o papa Francisco fala bem. O ser humano é um ser em processo. Então, não ter medo. A mística cria e recria uma qualidade nova de consistência humana e ética. A mística não pode ser vista como momentos de meditação. Ela é uma transformação profunda que atravessa o sujeito como um todo. 

Ao mesmo tempo em que a mística transforma e cria consistência, ela projeta e potencializa. O projetar e potencializar é poder enxergar o mundo, como o co-humano, como co-humanidade, na qual estamos juntos, na qual temos que pensar, refletir e atuar em projetos comunitários, de país, que vão para além de uma mudança efêmera aqui ou ali e que não tem consistência enquanto processo maior, enquanto passo a passo de uma nova comunidade, novo projeto, novo país. 

Corrupção é problema espiritual

O que temos feito? Temos dado passos? Mas falta muito. Nós estamos atualmente neste tempo de corrupção. Podemos dizer que esse é um problema espiritual também. Porque é um problema de formação humana, de subjetividades. Formação de subjetividades cuja tendência forte tem sido o fechamento, subjetividades fechadas. Fechadas em mundos próprios e reduzidos, como pode ser, por exemplo, o mundo do consumo. 

A subjetividade aberta tem que ir para além, muito além disso. Mas ninguém consegue ir além sem essa consistência interna. É importante caminhar juntos. É o que Teresa mostra. Biblicamente, temos aquela frase: Marta e Maria estão juntas. É tão simples, tão evangélico. O amor, o serviço sempre juntos. A contemplação e ação inseparáveis . Isso não é fácil. Ou melhor, é um caminho saboroso. Teresa vai convidar a isso. 

Por que não é fácil? Na ação nós queremos transformar, mas na oração nós temos que ter o chamado da humildade, não para transformar, mas transformar-nos. Então, são movimentos diferentes. E como estamos mais acostumados a exigir ou agir, às vezes transferimos esse mesmo movimento para a oração. E aí exigimos de Deus o que ele tem que fazer. Não aceitamos o movimento contrário que é de acolhida e de abertura para a novidade de Deus que os místicos vêm mostrar, que é sempre desconcertante.

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Lúcia Pedrosa de Pádua - A experiência de Teresa, na verdade, é extremamente simples. Muitas vezes pensamos na Teresa do êxtase. Como se o êxtase fosse o máximo na espiritualidade e na mística teresiana. E não. O êxtase não é o ponto de chegada dela. Ainda é uma parada. O ponto de chegada de Teresa é a integração da oração com a ação. É a integração de Marta e Maria. 

E quando Teresa ensina a oração é muito simples. Para ela, a oração é um trato de amizade. É uma conversa com Deus. Na expressão dela é “tratar de amizade com quem sabemos que nos ama. Estar com ele, muitas vezes, a sós”. Portanto, é um convite simples. Entende a criança, entende o jovem, entende o velho, entende o adulto. Porque as amizades são construções. Em cada etapa de nossa vida, elas exigem coisas diferentes. O que Teresa ensina, o magistério teresiano no fundo é muito simples. É bastante acessível. E por isso Paulo VI viu com tanto gosto que Teresa fosse uma doutora da Igreja. Doutora da Igreja Universal.

Leia mais...

- A liberdade da experiência no encontro com Deus. Entrevista com Lúcia Pedrosa Padua, publicada na edição 460, de 16-12-2014;

- Teresa de Ávila, mulher “eminentemente humana e toda de Deus”. Entrevista com Lúcia pedrosa Pádua, publicada na edição 403, de 24-09-2012;

- ''Mãe da psicologia''? Subjetividade, liberdade e autonomia em Teresa de Jesus. Entrevista com Lúcia Pedrosa Pádua, publicada em Entrevista do Dia, no sitio IHU em 08-01-2012;

- Teresa de Ávila: peregrina solar que inspira a busca pelo essencial hoje. Reportagem publicada na edição 461, de 23-03-2015.

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