Edição 204 | 13 Novembro 2006

A crítica de Nietzsche à democracia

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Nesta quinta-feira, 16-10-2006, Márcia Rosane Junges, uma das jornalistas da revista IHU On-Line do Instituto Humanitas Unisinos – IHU conduz o IHU Idéias intitulado A crítica de Nietzsche à democracia.
Jornalista graduada pela Unisinos, Junges é pós-graduada em Ciência Política pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) com a monografia As influências de Dostoiévski e Maquiavel no pensamento político de Nietzsche, sob orientação do Prof. Dr. Valério Rohden. Esse tema foi apresentado em 2003 no XV Encontro Nietzsche – Caminhos percorridos e terras incógnitas, promovido pelo Grupo de Estudos Nietzsche (GEN), ligado ao departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Na primeira edição da revista Controvérsia, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos, em 2005, publicou o artigo Deus e metafísica em Ockham e Nietzsche, apresentado no Colóquio Pensar Contra Nietzsche, do GEN, em 2005. Em 26-10-2006 Junges apresentou a comunicação A negação do sujeito participante: a grande política enquanto tentativa de superação do niilismo no Grupo de Trabalho Nietzsche, dentro da programação do XII Encontro Nacional de Filosofia da Anpof, em Salvador, Bahia. A edição 143 da IHU On-Line, de 30-05-2005, traçou o perfil de Junges no IHU Repórter, disponível para download na página do IHU, www.unisinos.br/ihu.

Na entrevista que segue, ela constata que a grande política de Nietzsche é paradoxal, pois, por um lado, aprofunda o niilismo passivo e ativo, inspirada no radicalismo aristocrático grego. Por outro lado, as idéias políticas desse filósofo oferecem a possibilidade de se pensar uma democracia radical através do agon, entendendo-a como um “jogo de antagonismos”, sem o “apagamento das diferenças”. As idéias discutidas surgiram da pesquisa realizada por Junges no mestrado em Filosofia, concluído em agosto de 2006 na Unisinos, com a defesa da dissertação Nietzsche contra a democracia: a grande política como tentativa de superação do niilismo, orientada pelo Prof. Dr. Álvaro Valls. Indicada para publicação, a dissertação está recebendo os devidos ajustes.

Democracia agonística e radicalismo aristocrático, paradoxo nietzschiano

IHU On-Line - Qual é a principal crítica de Nietzsche à democracia e em que ela se fundamenta?

Márcia Junges
- A principal crítica que Nietzsche remete à democracia liberal da segunda metade do século XIX está fundamentada em sua acusação ao cristianismo como promotor da igualdade entre as pessoas. A democracia, expressão da decadência e fraqueza da Modernidade, assim como o arrebanhamento do homem em seu projeto são, para Nietzsche, dois problemas que demonstram o debilitamento político a que a sociedade se encontrava submetida. Ele compreendia a democracia como secularização dos valores cristãos, como igualdade niveladora e um culto da piedade e da compaixão. As características cristãs teriam sido transpostas para o campo político, reproduzindo sua lógica de pensamento nas instituições sociais e no sujeito, resultando na desvalorização da política como arena de conflito, ao modo grego. No aforismo 202 de Além de bem e mal, Nietzsche sustenta que, “com o auxílio de uma religião que fazia a vontade dos mais sublimes apetites de animal-de-rebanho, e adulava-os, chegou ao ponto em que, mesmo nas instituições políticas e sociais, encontramos uma expressão cada vez mais visível dessa moral: o movimento democrático é o herdeiro do cristão” . A democracia liberal desemboca no niilismo passivo: “creio que nos falta paixão política” , e sobre esse aspecto em específico devemos admitir que ele tem razão ao se referir tanto à sua época, quanto o teria se falasse a respeito da política de nossos dias no caso do Brasil, apática, ou, no máximo, reativa.

IHU On-Line - O que é a grande política? Qual é o papel do filósofo legislador nesse “programa”?

Márcia Junges
– Nietzsche não nos oferece detalhes sobre como a grande política deveria ser conduzida. Podemos dizer que esse é o programa filosófico nietzschiano para fundamentar uma nova ordenação do mundo, passando primeiramente por uma revolução cultural. Não há, portanto, um projeto político nietzschiano, mas sim uma saída cultural que modificaria as estruturas da sociedade. Na verdade, o problema político tinha importância secundária nas idéias de Nietzsche. Isso porque o condutor da grande política, o além-do-homem, a quem o filósofo também se refere como aristocrata do espírito, novo filósofo e filósofo legislador, seria apenas indiretamente um líder político. Em primeiro plano, receberia destaque a elevação da cultura, que, como conseqüência, traria a modificação política. Compreendemos que a grande política é um dos expedientes que Nietzsche oferece para superar o niilismo passivo e o ativo (bem como do reativo, numa leitura vattimiana). Ele entrega o martelo ao além-do-homem, que, por meio do niilismo completo, destruirá as estruturas decadentes do mundo e em seu lugar erigirá a “nova humanidade”, de modo dionisíaco, trágico, no sentido grego da palavra.

IHU On-Line - Como essa grande política pode funcionar como “tentativa de superação do niilismo” se, conforme o próprio título de sua dissertação menciona, há uma negação do sujeito participante?

Márcia Junges
– Em minha pesquisa, tentei refletir sobre o que restaria àqueles que não se enquadram no perfil do além-do-homem nietzschiano, tipo superior espiritualmente, conforme a interpretação de Oswaldo Giacóia , forte de vontade e apto a conduzir a humanidade para fora do caos. O último-homem, sujeito da pequena política, sinônimo da Modernidade e antagônico ao além-do-homem, incapaz de superar o peso da descoberta da morte de Deus e do niilismo como seu corolário, queda anêmico de vontade, apático, anulado como sujeito político e, portanto, como ator na sociedade da qual faz parte. Pensando na política atual, nossa sociedade está cheia de últimos-homens, sejam eles niilistas passivos ou ativos, conceitos que vou explicar em minha fala no IHU Idéias. Em Assim falou Zaratustra, o último-homem é a personificação do maior rebaixamento humano, cuja concepção de felicidade é uma mescla de sentimentos aburguesados, medindo seu sucesso de vida pelos bens que conseguiu reunir ao longo de sua existência. Ele é um fim em si mesmo, enquanto o além-do-homem é uma transcendência desse tipo decadente. O último-homem seria o receptáculo do desejo de fim, da grande piedade e do desgosto, gerando a vontade de nada, o niilismo. Nietzsche refere-se claramente a essa figura quando menciona quem é o alvo de seu desprezo na Modernidade. Entretanto, o último-homem não é negado por Nietzsche – ele sabe que esse tipo continuará existindo, e o niilismo, como evento deflagrado pela morte de Deus, possibilita às pessoas escolherem se querem, ou não, fazer a travessia e tornarem-se além-do-homem.

Radicalismo aristocrático e niilismo político

Assim, procurei demonstrar que, ao oferecer a grande política como um dos expedientes para superar o niilismo, Nietzsche enreda-se em ambigüidades que fazem desse projeto tanto uma possibilidade de reconstrução do mundo pelo homem como sujeito central, quanto aprofundam o niilismo passivo e ativo, e no caso da minha dissertação, o niilismo político. Em primeiro lugar, porque o filósofo corretamente admite, através do recurso do eterno retorno interpretado em sentido ético, e não cosmológico, a existência ad infinitum do último homem e do niilismo que lhe é intrínseco. Em segundo lugar, porque a moral dos senhores e dos escravos pressupõe uma divisão hierárquica, ainda que seja espiritual, na qual cabe a uns mandar, e aos outros obedecer, o que gera apatia, inação, conformismo. Claro esteja que, quando se refere a essa divisão hierárquica, muitas vezes se tem a impressão de que Nietzsche tem em mente algo semelhante a uma casta, porquanto entendia o conceito de nobreza ao modo grego, como uma areté impossível de apagar ou ocultar, dada por nascimento. Na tradição grega, o homem nobre é aquele identificado com a possibilidade de domínio e governo das massas. A sabedoria vem da natureza do indivíduo, e se é aprendida, possui menor mérito. Traduzida em areté, é essa natureza especial que justifica sua primazia política. O indivíduo aristocrático tem valor em si e não necessita de legitimação social para valer como sujeito político. A ele cabe transvalorar os valores, baseado na idéia do eterno retorno e na vontade de potência, superando o niilismo.

No aforismo 260 de Além de bem e mal, o filósofo diz que a resposta à pergunta O que a aristocracia ainda pode significar para nós, homens modernos? está condicionada ao tempo em que é dada. Por isso sua concepção não quer um retorno nostálgico da aristocracia grega, mas sim uma aristocracia baseada na excelência realizável por meio dos filósofos legisladores, com influências gregas. George Brandes , um dos únicos intelectuais contemporâneos de Nietzsche a reconhecer o sismógrafo que o autor representava, chamou esse posicionamento de radicalismo aristocrático - termo que, em consonância com Bruce Detweiler , pensamos expressar bem o caráter político nietzschiano. Os pilares do radicalismo aristocrático são a moral e a justiça trágicas, ou agonais, baseadas num entendimento dionisíaco, de competição, na disputa entre as diferenças sem a sua eliminação, mas sim a sua convivência salutar porque separada. Nietzsche sabia que não era mais possível trazer de volta o modelo aristocrático grego, pelo que se fazia imprescindível a instituição da aristocracia como liderança legítima pelas virtudes, perpetrada pelo filósofo legislador, o aristocrata moderno. A escala hierárquica continuaria, contudo, a ser nevrálgica no programa filosófico nietzschiano, no qual o pathos da distância tem importância cabal. Assim, fica exposto o paradoxo de que, por um lado, a crítica de Nietzsche à democracia resulta tanto numa concepção política radical aristocrática (com o caráter aprofundador do niilismo passivo político) e, por outro, numa possibilidade de construção de uma democracia radical, sem o apagamento das diferenças.

IHU On-Line - Trazendo a discussão para o século XXI, em que medida a crítica de Nietzsche à democracia continua válida?

Márcia Junges
– Ainda que alarmantes, as acusações de Nietzsche ajudam a compreender diversos aspectos da sociedade atual, sobretudo se pensarmos que uma de suas afirmações mais corretas diz respeito à noção de que o liberalismo descambou numa compreensão de liberdade que desemboca num relativismo vazio. As tradições do passado estariam, assim, ameaçadas, e o presente, imobilizado por uma apatia que resulta na decadência e na corrupção. A solução nietzschiana da grande política é legitimada não por um contrato social ao modo rousseauniano, e sim pela noção de cultura, ou ainda, por um viés “supramoral” , calcado na vontade de poder. Esse aspecto apresenta muitas dificuldades, como aponta Pearson, para quem o desejo do filósofo em que o além-do-homem conduza a humanidade passa por uma consecução de atitudes amorais. Todavia, tendo em vista que a democracia criticada por Nietzsche é a democracia liberal da segunda metade do século XIX, sobretudo aos movimentos da Alemanha de Bismarck , é forçoso admitir que sua crítica possui certa dose de razão ao identificar os traços niilistas passivos contidos nesse sistema político. Como aponta Schumpeter , no caso das democracias representativas, a participação popular fica restrita ao processo político e circunscrita por ele, uma vez que os sujeitos políticos são caracterizados por sua natureza instável e consumidora. Macpherson  salienta que a passividade dos eleitores é estimulada por um sistema político configurado justamente com esse propósito. Conscientes dessas características, os partidos podem explorá-las convenientemente. Isso se parece, ou não, com o que assistimos nessas eleições?

IHU On-Line – Alguns autores como Lawrence Hatab  e Chantal Mouffe  propõe repensar a democracia através do pensamento de Nietzsche. Como isso é possível?

Márcia Junges
– Um dos grandes paradoxos que encontro em Nietzsche está em sua recepção política. Usado como fundamento pelas mais diferentes correntes ideológicas (basta lembrar das imputações terríveis a ele creditadas por conta da apropriação indébita pelo nacional-socialismo, tema que aqui, por questão de espaço, fica impossível de abordar), o filósofo, embora indiretamente, não renega por completo a democracia, mesmo que a ela desfira críticas ferozes. Esse sistema político seria mais um jogo de antagonismos. E é pelo engendramento desses antagonismos que será possível pensar os movimentos culturais. No aforismo 242 de Além de bem e mal, ele afirma que o homem animal de rebanho é tão desejável quanto o homem de exceção, portanto não quer exterminar com os primeiros em privilégio dos segundos. Assim, é necessário entender as idéias nietzschianas dentro de um conceito de antagonismos para que possamos captar as sutilezas de sua crítica à política moderna. Se por um lado, é fundamental que venham os novos filósofos, executores da grande política, é importante também que vivam aqueles que lhes dêem “suporte” – os últimos-homens, algo bem hierárquico e que nos remete à República de Platão, malgrado seu repúdio ao dualismo platônico. Entretanto, apenas ao além-do-homem será dada a chance do domínio de si, de legislar em função do comando da humanidade. Giacóia sinaliza, contudo, que é um equívoco pensar que as diferenças de estratificação econômica ou social fazem parte da proposta nietzschiana. O além-do-homem não teria um sentido social ou biológico. A figura do nobre e do senhor seriam provocações à Modernidade, e o aristocrata nietzschiano um aristocrata do espírito. Por isso, num conjunto, não se pode nem se deve entender o rebanho como massa de manobra dos senhores, sobretudo porque Nietzsche já enxergava uma escravidão remunerada na Modernidade.

Uma democracia agonística?

Assim, paradoxalmente, a política agonística nietzschiana também pode pressupor uma defesa da democracia, respeitando as diferenças, os antagonismos e os conflitos. Como o filósofo se inspirava no modelo grego aristocrático, defendia que as constantes políticas fomentadas pelo agon eram fundamentais para as cidades-estado e também para o avanço cultural. Uma homogeneização política poria fim ao conflito e instituiria o domínio de um indivíduo, apenas. Para preservar a liberdade da dominação, Nietzsche pensava na importância do agon como espaço público para a competição aberta. Aqui há uma possibilidade na filosofia nietzschiana para pensarmos em democracia. A política agonística não elimina as diferenças, mas dá espaço para que, pelo diálogo organizado, elas possam se manifestar.
Alan Schrift  explica que conflitos e antagonismos têm articulação fundamental com a democracia radical e plural. Tomando em consideração o pensamento de Nietzsche, tal acepção é plausível porque, pensando no amor fati, a existência é feita de momentos apolíneos e dionisíacos. Assim a política também precisa ser pensada. Nietzsche, nesse aspecto, ofereceria uma materialização do agon e, consequentemente, da democracia, ao afirmar a importância dessas contrariedades sociais.

William Conolly é da mesma opinião e afirma que o agon e sua natureza contestatória como argumento a favor de uma democracia revigorada, entendida não como busca pelo consenso, mas com um espaço social dinâmico no qual o respeito agonístico está revestido “pelas contradições inerentes a qualquer sociedade” . Esse pathos da distância é fundamental para que as relações democráticas continuem a existir e se fortaleçam. Assim, as diferentes propostas da política agonística nietzschiana não podem ser pensadas como oposição ou contrários inconciliáveis, mas como contrariedades fundamentais para a tolerância e a emergência do novo. A crítica nietzschiana a esse sistema político centra-se na tentativa cristã de uniformização, de extirpação das diferenças pensadas sempre e apenas como oposições maniqueístas. Nesse sentido Nietzsche é antidemocrático. Se pensarmos, entretanto, na sua celebração agonística, aí podemos encontrar elementos de fomento à prática democrática, embora, como salienta Schrift, Nietzsche não vinculou o agon à democracia . Cabe destacar que, ao fim de nossas investigações, entendemos que dentro dessas ambigüidades democráticas e anti-democráticas, há um acirramento destas últimas e, por isso, em linhas gerais, pensamos Nietzsche como anti-democrático, corroborando a apatia e negando a participação política do último-homem.

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