Edição 463 | 20 Abril 2015

Violência com base em gênero - Avanços e desafios em Cabo Verde

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Ricardo Machado e Andriolli Costa

Carla Corsino, coordenadora do projeto de implementação da lei de VBG, explora as conquistas trazidas pela lei que criminaliza os abusos

Desde 1980, a República do Cabo Verde é signatária de diversos tratados, resoluções e declarações internacionais contra a discriminação e violência baseada no gênero. Ainda assim, em 2005, um inquérito nacional apresentou dados preocupantes no capítulo sobre violência doméstica. Das 1.333 mulheres entrevistadas, cujas idades variavam entre 15 e 49 anos, uma em cada cinco já havia sofrido violência — física, emocional ou sexual. Muitas, ainda, de maneira sistemática. 

A situação começou a mudar em 2011, quando entrou em vigor a lei de Violência Baseada no Gênero – VBG. A coordenadora do Projeto de Implementação da Lei no país, a assistente social Carla Corsino, relata em entrevista por e-mail à IHU On-Line as medidas implementadas e as mudanças trazidas. De início, aponta ela, foi necessário estabelecer uma lei que abrangesse não apenas a violência contra a mulher, mas aquela envolvendo gênero — compreendido como “uma construção social de papéis que se atribuem a pessoas do sexo masculino e feminino, transformando-os em homens e mulheres”. 

Após as medidas, o número de denúncias dos casos de violência triplicou entre 2010 e 2012. “Esse incremento substancial de denúncias pode ser explicado pelo maior grau de informação sobre a VBG, conjugado com a mudança de atitude que já não a considera como socialmente aceitável”. Em 2013, no entanto, os casos denunciados caíram, o que Corsino estima que se deva à diminuição das ocorrências. 

Carla Corsino é graduada em Trabalho Social, com mestrado em Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, ambos pela Universidade de Las Palmas de Gran Canaria. Atualmente é coordenadora do Projeto de Implementação da Lei de Violência Baseada no Gênero, em Cabo Verde, na África. Atuou vários anos como assistente social, colaborando para a gestão e implementação de projetos de atenção sociossanitária e de apoio a prostitutas vítimas de violência de gênero.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em se tratando da violência de gênero, particularmente, qual é o cenário atual em Cabo Verde?

Carla Corsino - O II Inquérito Demográfico e de Saúde Reprodutiva de Cabo Verde (IDSR-II) , realizado em 2005, evidenciou a forte prevalência de uma atitude patriarcal que justifica e naturaliza a dominação das mulheres pelos homens através de diferentes formas de violência e outras atitudes controladoras. Cerca de um quinto da população manifestou tolerância e naturalização ao recurso à violência física por parte dos homens para exercer o poder e controle sobre suas companheiras ou ex-companheiras. Contudo, até a entrada em vigor da Lei Especial sobre Violência Baseada no Gênero – VBG , poucos dados eram produzidos sobre a problemática. 

Quando a lei entrou em vigor, passou-se a produzir mais dados específicos sobre a VBG, tendo-se verificado que o número de denúncias dos casos triplicou entre 2010 e 2012. Esse incremento substancial de denúncias pode ser explicado pelo maior grau de informação sobre a VBG, conjugado com a mudança de atitude que já não a considera como socialmente aceitável, bem como pelo fato de o procedimento criminal ser público, permitindo a denúncia por qualquer cidadão. Por outro lado, no ano de 2013, o número de denúncias apresentadas à Polícia Nacional diminuiu ligeiramente em relação ao ano de 2012. Esse ligeiro abrandamento das denúncias pode ser explicado pela diminuição efetiva dos casos, tendo em vista que a sociedade está mais consciente e atenta após a entrada em vigor da lei, em função do trabalho que vem se fazendo nesse sentido. 

Exemplos

Alguns exemplos dos trabalhos que vêm sendo realizados passam pela parceria entre o Instituto Caboverdiano para a Igualdade e Equidade de Gênero (ICIEG) e a política nacional para capacitação de seus agentes, bem como a elaboração conjunta entre o ICIEG e o Ministério da Administração Interna do Protocolo de Procedimentos Policiais nos casos de denúncias de VBG. Ressalta-se também a elaboração do Guia de Assistência às Vítimas de VBG para profissionais das forças policiais, a assinatura do protocolo para implementação do módulo de gênero na Escola de Polícia e a formação de multiplicadores para Divulgação Comunitária da Lei VBG.

Outros exemplos a serem apontados são a elaboração de material de apoio para divulgação comunitária da Lei VBG em todas as Ilhas do país, direcionada a líderes comunitários e entidades parceiras, bem como a criação de uma Linha Denúncia, a elaboração e publicação da Versão Anotada da Lei VBG, a realização de workshops com Magistrados judiciais e do Ministério Público, dentre outras atividades que serão melhor especificadas quando se tratar do Programa de Implementação da Lei.

Além disso, cumpre-se ressaltar o trabalho que vem sendo realizado pela Rede Interinstitucional de apoio às vítimas de VBG, denominada REDE SOL, que congrega diversas instituições engajadas no combate à VBG (incluindo hospitais, ONG’s, polícia, Ministério Público, dentre outras) com o objetivo de prestar um atendimento multidisciplinar às vítimas. A Rede foi criada em 2004, sete anos antes da entrada em vigor da Lei, e com ela pretende-se que sejam implementados pelo menos um Gabinete de atendimento à vítima em cada Ilha do país, trabalho que vem sendo feito paulatinamente.

 

IHU On-Line – Você é a coordenadora do Programa de Implementação da Lei Especial sobre Violência Baseada no Gênero em Cabo Verde. A que se refere, exatamente, esta lei?

Carla Corsino - A Lei VBG é uma lei especial destinada a prevenir e reprimir a violência baseada no gênero. A Lei tem como objetivo não somente a punição dos agressores como meio de combate a essa violência, mas, especialmente, a sua prevenção, visto que a violência ainda assola o país e é praticada primordialmente pelos homens contra as mulheres, por se tratar de uma violência fruto das relações de poder desiguais historicamente construídas e ainda vigentes em nossa sociedade.

Portanto, a lei visa chamar à responsabilidade não só o Estado e os agressores, mas toda a sociedade, na medida em que seu objetivo primordial consagrado no artigo 1º é a efetivação da igualdade de gênero. Para tanto, a lei traz um conjunto de medidas de sensibilização e prevenção dessa violência, com o objetivo de informar e conscientizar toda a sociedade sobre as especificidades da VBG, obrigando o Estado e os demais poderes públicos à adoção de políticas públicas visando sua concretização. 

Tais medidas incluem implementação de medidas educativas que fomentem a igualdade de gênero e eliminem os estereótipos sexistas ou discriminatórios, salvaguardando o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais e a tolerância, a capacitação profissional das pessoas que intervenham no processo de informação, a proteção de alguns direitos laborais relativamente à vítima, o direito de acesso à justiça, a proteção social, o oferecimento de atendimento adequado, urgente e isento do pagamento de taxa na área de saúde, etc. Além disso, a lei não abandona o agressor à sua própria sorte ou à justiça, mas apresenta a necessidade de promoção de sua recuperação, incluindo a implementação de um programa de apoio psicológico e educativo.

Outras medidas

Para além da prevenção e sensibilização, a lei traz também medidas de assistência à vítima, como os Centros de Apoio às Vítimas e as Casas de Abrigo, a serem criadas pelo Estado em articulação com os Municípios e outras entidades, bem como a criação de um Fundo de Apoio à Vítima para garantir o custeio urgente de algumas despesas necessárias, além do funcionamento das estruturas de apoio, sendo que para esse fundo devem ser direcionados 50% das custas judiciais nos processos de VBG.

Por outro lado, passou a existir um novo tipo penal (o crime de violência baseada no gênero, previsto pelo artigo 23º da lei) com o objetivo de criminalizar especificamente as situações de VBG que na vigência da legislação anterior se punia com base em vários tipos penais, sem que fosse dada a essas situações a relevância necessária para a espécie de violência que se pretendia combater e punir. 

Além disso, a lei determina que o procedimento criminal é urgente, trazendo respostas mais rápidas às vítimas e a punição dos agressores em tempo hábil, e ficando agora toda a sociedade responsável na luta contra essa violência. A natureza pública do procedimento criminal é fato de fundamental importância no combate à VBG, tanto pela obrigatoriedade da denúncia para alguns profissionais, ao tomarem conhecimento do fato no exercício da profissão (polícia, saúde e funcionários públicos), quanto pela impossibilidade de desistência do procedimento criminal por parte da vítima, o que acontecia com frequência no âmbito da legislação anteriormente em vigor.

 

IHU On-Line – Por que a nova legislação usa os termos “Lei de Violência Baseada no Gênero”? Por que esse cuidado com a escolha das palavras?

Carla Corsino - Nos encontros à volta do anteprojeto de lei, decorreu uma acesa discussão sobre o objeto da lei, pois, para muitos, se deveria ter como objeto a prevenção e a repressão da violência contra a mulher, tendo em vista que vários documentos internacionais definem violência baseada no gênero como violência contra a mulher. Contudo, prevaleceu a opinião divergente de que o objeto da lei deveria ir além da violência especificamente contra as mulheres, enquadrando todo tipo de violência baseada no gênero. 

A importância de se romper com a configuração da violência baseada no gênero como aquela apenas praticada contra mulheres foi crucial, partindo da percepção de que as normas e valores assumidos pelas sociedades patriarcais podem levar a que também as pessoas do sexo masculino possam ser vítimas dessa violência praticada pelo exercício de poder em razão do gênero, sendo o gênero uma construção social de papéis que se atribuem a pessoas do sexo masculino e feminino, transformando-os em homens e mulheres. Portanto, o que se pretendeu foi abarcar como vítimas qualquer pessoa sobre quem se exerça uma violência baseada nas construções de relações de poder desigual em razão do gênero, incluindo-se mulheres, homens, homossexuais, bissexuais ou transgêneros.

 

IHU On-Line – O que é e o que faz o Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade do Gênero (ICIEG)? É voltado para que público? Que serviços oferece?

Carla Corsino - O ICIEG, criado em 1994, é uma instituição pública que elabora políticas públicas para a promoção de igualdade de gênero. A sua atuação tem se direcionado a diversos níveis de intervenção, quais sejam, macro, meso e micro, com o intuito de desenvolver e promover, tanto ao nível das práticas institucionais como ao nível das relações interpessoais, uma cultura de igualdade de gênero e da não violência no país.

 

IHU On-Line – Como as atividades de formação propostas pelo ICIEG têm contribuído para a prevenção da violência e a promoção da igualdade de direitos entre homens e mulheres? Cite alguns exemplos.

Carla Corsino - No sentido de acelerar os esforços das instituições e atores implicados na implementação da Lei VBG, o ICIEG tem apostado fundamentalmente no fortalecimento das respostas institucionais, mediante a capacitação, sensibilização e divulgação de boas práticas. Dentro das diversas atividades do Projeto de Implementação da Lei VBG, financiado pelo Fundo Fiduciário das Nações Unidas para Eliminar a Violência contra as Mulheres (Trust Fund), tem-se levado a cabo um conjunto de ações, em nível meso, o fortalecimento de alianças multissetoriais para uma ação coordenada, assim como das capacidades e competências técnicas específicas dos profissionais e dirigentes ligados a setores-chave (polícia nacional, magistrados/as, advogados/as, profissionais de saúde e de educação); a melhora e ampliação dos serviços de assistência e proteção às vítimas, bem como a capacidade de influência das ONGs junto dos/as decisores/as políticos/as. Em nível micro, o reforço à ação preventiva das escolas, capacitando professores e professoras do ensino básico e secundário, e da média, capacitando profissionais da comunicação social. Tem-se como ferramenta transversal, recorrente e predominante, a formação, agindo nos âmbitos de intervenção estratégica da (i) prevenção da violência, da (ii) melhoria da prestação dos serviços e do (iii) fortalecimento das respostas institucionais para o desenho de políticas, coordenação, seguimento e avaliação da VBG.

 

IHU On-Line – Considerando que estamos falando em “Violência Baseada no Gênero”, de que formas os homens têm participado das ações de prevenção da violência e a promoção da igualdade em Cabo Verde?

Carla Corsino - Em 2009, um grupo de homens das mais variadas áreas de formação e atuação criou a Rede Laço Branco de Cabo Verde. A Rede tem como objetivo a promoção da igualdade e equidade de gênero; o combate a todas as manifestações de violência, nomeadamente a VBG; a promoção e estímulo da assunção plena dos direitos e deveres próprios da paternidade; o apoio às políticas e iniciativas que fomentem a equidade de gênero na família, na saúde, na justiça, na educação, na política, na economia e na comunicação social. 

Para tanto a rede tem o intuito de sensibilizar, envolver e engajar os homens em Cabo Verde e a sociedade civil em geral no combate à VBG e a todas as formas de desequilíbrio de gênero, assim como na desconstrução de visões distorcidas de masculinidade. Nesse âmbito, os membros promovem a realização de diversas atividades como o “Teatro Fórum” e a “Conversa Comunitária”, um encontro de reflexão temática realizado quinzenalmente em que se aborda um tema para reflexão.

 

IHU On-Line – Que diálogos são promovidos entre Brasil e Cabo Verde?

Carla Corsino - Os diálogos são essencialmente nos domínios de pesquisa/produção e intercâmbios de conhecimentos. Neste âmbito, há um convênio (PEC-PG e CAPES) entre os dois países que assegura bolsas de estudos para graduação e pós-graduação, programas de iniciação científica, programas de mobilidade de docentes/pesquisadores e estudantes, sendo esse último assegurado essencialmente pela CAPES. Além, disso, existem protocolos ao nível das universidades e que têm fomentado redes de pesquisa, fóruns, colóquios, conferências, seminários internacionais, entre outros eventos de trocas de conhecimento. O fato de compartilharmos a mesma língua ajuda mais fluentemente este intercâmbio de conhecimento de saberes de recursos humanos e serviços. 

Através do programa que estou coordenando, o ICIEG fez um conjunto de Capacitações em Matéria de Gênero e VBG a diversos públicos-alvo. Para tal, foi necessária a contratação de Consultorias nacionais e Internacionais. Das internacionais, pudemos contar com a presença de três consultoras brasileiras que estudam e pesquisam temas sobre gênero e sexualidade: professora Jeane Félix da Silva  (Brasília), que facilitou dois ateliers sobre Direitos de Gênero; professora Maíra Kubik Mano  (Unicamp), que facilitou um atelier com profissionais da Comunicação Social em Matéria de Gênero e VBG e que está produzindo um Manual de Boas Práticas Jornalísticas para o Combate a VBG; e também tivemos o prazer de contar com a professora Maria Cláudia Dal'Igna  (Unisinos), que facilitou uma Formação em Matéria de Trabalho com Grupos Focais. 

Essas profissionais, para além de transmitir saber, se interessaram a todo momento em aprender do nosso país, suas especificidades e experiências, e se surpreenderam com o quão avançado está Cabo Verde no que concerne à Lei de Violência Baseada no Gênero, que não é uma lei apenas da mulher, mas uma Lei que defende a integridade da pessoa, enquadrando todo tipo de violência com base no gênero. ■

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