Edição 463 | 20 Abril 2015

A maternagem e a estética do controle

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Márcia Junges e Andriolli Costa

“Parece que, uma vez grávida, recai sobre a mulher o peso de entregar ao filho a energia não só de seu corpo, mas de sua alma”, discute Maria S. Schwengber

Pesquisadora de corpos-sujeitos e relações de gênero, Maria Simone Schwengber aponta que a valorização da maternidade não é algo intrínseco ao ser humano, mas uma construção cultural fruto de seu tempo. Apenas no final do século XVIII, quando surgem, pela primeira vez, recomendações escritas para que “as mães se ocupem pessoalmente dos seus filhos”, que este comportamento vai sendo introjetado. E hoje, é mais forte do que nunca.

 “O que chama a minha atenção é que nunca fomos tão incitadas a sermos donas de nós mesmas, mas ao mesmo tempo nunca fomos tão reguladas e controladas na própria ocupação de si. Parece que, uma vez grávida, recai sobre a mulher o peso de entregar ao filho a energia não só de seu corpo, mas também de sua alma”, reflete. 

Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ela alerta ainda que nossa saúde é administrada e gerenciada desde o embrião até o leito de morte. Esta ideia é reforçada não apenas por políticas públicas, nos tratados médicos ou em manuais, mas também pela mídia — tanto as tradicionais quanto as digitais. “Pode-se se dizer que a mídia passou a monitorar os corpos, inclusive os grávidos, através de uma rede de informações, dentro daquilo que denominamos de uma biopolítica informacional”, propõe.

Schwengber trata ainda da educação afetiva-sexual nas escolas, no que diz respeito à gravidez; sobre as corporeidades que envolvem o corpo grávido — em que a gestante muitas vezes passa a ser vista apenas como a portadora de um útero; e sobre as estratégias de governamento ao qual a gestante está sujeita. 

Maria Simone Schwengber possui graduação em Educação Física e mestrado em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, com doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente é professora assistente da Unijuí. Foi organizadora de diversas publicações, como Educação Física e Gênero: Desafios educacionais (Ijuí: Editora Unijuí, 2013) e Práticas Pedagógicas em Educação Física: espaço, tempo e corporeidade (Erechim: Edelbra, 2012).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Na contemporaneidade, pode-se falar em um imperativo da maternidade? Qual é o contexto de surgimento dessa concepção e o que ela significa?

Maria Simone Schwengber – Na cultura ocidental, ser mãe remete, ao mesmo tempo, a uma etapa e um estado específico da vida feminina que envolve a gestação, o parto e a lactação e também para cuidados anteriores e posteriores ao parto. Estes últimos constituem um conjunto de ações de longo prazo, dentre as quais se destaca a maternagem, e que envolve também criar e educar as crianças geradas. 

Um recuo no tempo, no entanto, permite-nos dizer que ser mãe foi significado, valorizado e propagado de formas muito diversas nessa cultura. Por exemplo, a função maternal não era objeto de atenção nem de valorização por parte da sociedade ocidental, as mulheres não eram glorificadas pelo fato de serem mães e o amor maternal não era um valor social nem moral. Essa situação se altera apenas em finais do século XVIII, quando se opera uma espécie de revolução das mentalidades e surgem, pela primeira vez, recomendações escritas para que as mães se ocupem pessoalmente dos seus filhos.

Controle do corpo

Num certo sentido, o rigor e o controle do corpo e da saúde da gravidez na contemporaneidade vêm à tona com renovado vigor. As orientações dos estudos da puericultura  intraútero, nos últimos quatorze anos do século XXI, posicionam a mulher gestante como a principal responsável não só pelo desenvolvimento e proteção do feto, como também pelos pressupostos da saúde do/a filho/a quando adulto/a. Parece que expande-se com mais força, a partir daí, a ideia de que a nossa saúde é administrada e gerenciada, desde muito cedo, desde o embrião/útero até o leito de morte. 

Entendo que a contemporaneidade alimenta uma renovada representação da maternidade e da gravidez a partir da reconstrução dos corpos, possibilitada pelas biotecnologias, com o aparecimento dos diferentes discursos que se multiplicaram nas políticas públicas, nos tratados médicos, em manuais, assim como nas inúmeras publicações, enfatizados pela mídia, como revistas, TV e, mais recentemente, sites, blogs, internet. Pode-se dizer que a mídia passou a monitorar os corpos, inclusive os grávidos, através de uma rede de informações, dentro daquilo que denominamos de uma biopolítica informacional, uma forma de governo que não depende [apenas] da relação corpo a corpo para fazer valer um poder sobre a vida, mas de um conjunto de técnicas e saberes que regulam a vida por meio das informações.

 

IHU On-Line - Nesse contexto, em que medida se pode falar numa educação dos corpos grávidos? Quais são os diferentes investimentos biopolíticos sobre os corpos maternos?

Maria Simone Schwengber – A partir da segunda metade do século XX, observa-se a existência de uma rede mais ampla de cuidados, de novos saberes, físicos, psicológicos, estéticos, odontológicos, nutricionais, como também uma série de produtos e serviços passa a ser destacada como fundamental a um “bom” pré-natal. A gestante, a partir daí, terá que produzir sua saúde associando diferentes práticas, a ideia de uma saúde “holística” feita pela própria gestante. Essa rede de saberes faz parte de um movimento contemporâneo que envolve uma nova politização do corpo grávido, nova não no sentido de inovadora, mas no sentido de uma atualização, exacerbação, complexificação e multiplicação de investimentos educativo-assistenciais que têm como foco [no caso, as gestantes].

 

IHU On-Line - De que forma revistas como a Pais & Filhos, por exemplo, abordam essa temática?

Maria Simone Schwengber – Essa revista é a mais tradicional do mercado brasileiro, sendo considerada uma das publicações mais vendidas. A Pais & Filhos emerge em 1968, e nesse contexto se apresentou como uma espécie de aliada, na tentativa de definir um estilo de mulher-mãe brasileira atualizada, moderna. Ainda a revista faz circular o pressuposto de que sujeito (a mulher) é seu corpo. Nesse sentido ela convoca, em particular, as mulheres, para a tarefa de cuidar de si, cuidar do que têm de mais íntimo e pessoal: o corpo, a sexualidade e a funcionalidade, ligando, por exemplo, a responsabilidade dos métodos anticoncepcionais muito mais às mulheres. Como explica Foucault, o cuidado de si implica o "conhece-te a ti mesmo", aplicando, efetivamente, ações sobre si próprio, pois, para além do conhecer-se, trata-se de governar-se.

Lendo a Pais & Filhos, logo nos convencemos de que seu projeto editorial opta por posicionar as gestantes de modo diferente das demais mulheres. A revista interpela a mulher gestante, colocando-a em uma posição de sujeito aprendente. O corpo grávido aparece em muitas imagens sem a roupa, como forma de olhar mais fundo, representa-a pelo seio e pelo ventre volumoso. O corpo grávido é apresentado como um corpo fragmentado, reduzido àquilo que importa dele, ou seja, algumas de suas partes: aquelas que se localizam no espaço que vai das mamas ao baixo ventre; retira essas partes do silêncio e convida o/a leitor/a a observar a função de cada uma delas. Cada parte tem um valor e uma função específica: mamas e abdômen estão relacionados com a maternidade e exigem práticas específicas de cuidado. As imagens demarcando os seios e a região pubiana produzem uma moldura de proteção e, ao mesmo tempo, de exaltação da barriga. A gestante passa a ter sua significação corporificada: a portadora de um útero. A gestante é posicionada como aquela que dá proteção, amparo à barriga, ou melhor, segurança, defesa e resguardo ao feto/embrião. 

 

IHU On-Line - Qual é a relação das escolas com as alunas gestantes ou mães? Como elas agem ao se depararem com os temas da sexualidade e da gravidez no seu cotidiano?

Maria Simone Schwengber – A escola é vista como instituição que tradicionalmente adota a padronização de comportamentos, condutas e pensamentos, normatizando e aceitando apenas o que está dentro dessa normalidade (idade/série compatíveis, sexualidade escondida ou reprimida, entre outros comportamentos e atitudes esperados dos alunos). Uma aluna gestante na escola, de um modo geral, é considerada, como escutamos nas nossas pesquisas, como uma desviante, desnaturada, anormal, estranha, fora do padrão aceito. Tem-se a impressão que sua presença mexe com a rotina escolar, desestabilizando a normalidade, permitindo, possibilitando ou até mesmo obrigando a abertura de novas discussões e tematizações na escola, como, por exemplo, os temas relacionados à educação afetiva-sexual.

De acordo com as nossas pesquisas, as escolas estudadas não possuem um projeto que trabalhe com a educação afetiva-sexual. Conforme nossos dados, “o que acontece são ações isoladas dentro de uma ou duas disciplinas, por iniciativa de um ou dois professores e não do grupo escolar”. 

Observamos que na prática ainda existe uma série de entraves para que esse tema seja debatido nos espaços da educação escolar. Um deles, por exemplo, é que muitos profissionais ainda percebem os adolescentes e os jovens como pessoas ‘em formação’, que necessitam de orientação e tutela, e que não têm maturidade suficiente para exercer plenamente seus direitos sexuais e seus direitos reprodutivos. Isso faz com que as informações e o acesso aos materiais pedagógicos de prevenção sejam pouco divulgados nos contextos das escolas.

Gravidez na adolescência

Outro elemento importante é que gravidez na adolescência, em grande parte das escolas brasileiras, tem sido vista e tratada, como vimos na nossa pesquisa, como questão mais vinculada ao universo feminino do que ao masculino. Parece que o menino (os guris) é uma figura com pouca presença e com parco poder de inclusão nos debates escolares. Entendo que exista aqui um universo educativo a ser construído, a partir de uma discussão sociocultural de gênero. Observamos, nas raras situações desse tema, que a saúde reprodutiva e a utilização de métodos preservativos residem muito mais como uma responsabilidade das meninas do que dos meninos. 

Reconhecemos que há uma variedade maior de métodos anticonceptivos disponíveis para as meninas, mas isso não justifica o esforço do envolvimento nas orientações de preservação dos meninos. Pois os meninos, tanto quanto as meninas, são partícipes na contracepção. Entendemos que a escola seja um lugar privilegiado para mudar comportamentos arraigados que atribuem às mulheres todas as responsabilidades pela contracepção e pelo número de filhos que possam ter. Desse modo, destacamos a importância de um investimento maior, no contexto escolar, em propostas que tematizem as relações de gênero desde a infância até a adolescência, devido à urgência em introduzir os meninos nessas discussões, porque a saúde afetiva-sexual e reprodutiva diz respeito a ambos. Entendemos que neste século o conceito de gênero comece, definitivamente, a fazer parte da educação escolar brasileira.

 

IHU On-Line - Nas suas pesquisas, a senhora analisa os discursos que (con)formam os corpos grávidos da medicina à educação física. Quais são os principais resultados encontrados?

Maria Simone Schwengber – Observamos um movimento que nos apresenta, em uma “nova” história, nas formas de relacionamento e gerenciamento dos corpos na gravidez. Multiplica e faz circular o enunciado, que continua sendo constantemente atualizado e ampliado por diferentes discursos, de que um bom pré-natal é a linha divisória entre a vida e a morte, a saúde e a doença, a normalidade e a anormalidade, [e] o que interessa é que isso é dito às mulheres, frequentemente, e que são elas que precisam cuidar de seus corpos grávidos e dos corpos de seus filhos. As fichas, os exames ou os registros, a carteira da gestante funcionam como estratégia política para tornar visível um determinado tipo de corpo e fazer a gestante estreitar o contato com esse corpo e principalmente com o do feto para perceber as próprias condições físicas, acompanhá-las, controlá-las e, de preferência, estendê-las a cuidados infinitos.

Nessa lógica a gestante precisa de cuidados especiais no decorrer desses nove meses (e mesmo antes) e isso se aplica às atividades desde médicas, nutricionais, odontológicas, até os exercícios físicos. Grávida! [Faça] Muitos exercícios — Livre-se dos tabus e garanta o seu bem-estar e o do seu filho. No mundo ocidental, se tem afirmado “uma cultura do movimento”, do exercício físico, sustentada pela ciência e pela tecnologia, sobrepondo-se aos indivíduos, aos grupos e às diferentes classes sociais, como prática importante de cuidado que (re)define seus objetivos como uma prática indispensável à saúde. Parece que hoje há uma tentativa de convencimento “da necessidade imperiosa de colocar o corpo em movimento, sem o que não há saúde”. Além disso, é interessante destacar que práticas corporais (o discurso da Educação física), de modo geral, até o início do século XX, eram consideradas atitudes prejudiciais não condizentes com a gravidez e, por isso, eram desaconselhadas. Acreditava-se que as atividades corporais provocariam abortos e roubariam oxigênio do bebê. As gestantes deveriam fazer repouso.

Há uma ideia que circula na cultura que caminha na direção de fortalecer a representação da posição mulher-mãe-forte, que demonstra força, firmeza e eficiência. As práticas corporais e esportivas corroboram com a formação discursiva da mãe-forte como atributo importante para o trabalho do parto, como também posterior do exercício da maternidade. O discurso esportivo introduz na cultura, de um lado, uma referência ao rendimento extremo, à competitividade máxima e à ultrapassagem dos limites das próprias forças, de outro, associa-se à ideia de um trabalho de aprendizagem do espírito de equipe, cooperação, negociação e mesmo de superação individual. Destaco ser o território esportivo, um território que “(...) fascina e desassossega, tanto porque contesta os discursos legitimadores dos limites e condutas próprias de cada sexo, como também porque faz aparecer a tensão entre liberação e controle de emoções”.

 

IHU On-Line - Quais são as mudanças mais marcantes nos padrões e experiências da maternidade contemporânea?

Maria Simone Schwengber – Uma das mudanças mais marcantes associa a representação da mãe controlada e preparada. Entendo que as oposições binárias — mãe-mulher preparada/despreparada, forte/fraca, resistente/frágil — reiteram uma distinção social baseada na forma física das gestantes, cuja atuação do desenrolar de uma gravidez saudável emerge como sinal de distinção social e poder. Há em curso uma valorização tanto da forma física quanto da moral (mãe com atitude) como elementos importantes de identificação.

A mãe que não assume determinados cuidados corporais sofre importantes formas de discriminação nas sociedades que cultuam o corpo e, sobretudo, nos serviços de saúde. Nesse sentido é que observamos que, aos poucos, os cuidados corporais assumem um lugar de diferenciação, chegando a funcionar, nos dias atuais, como formas de in-exclusão. Com efeito, os cuidados corporais mostram-se como uma forma de estar preparado para enfrentar os julgamentos e as expectativas sociais. 

Dessa forma, os cuidados corporais na gravidez vinculam-se também à visibilidade social que a gestante deseja atingir, ou seja, evitar o olhar do outro ou a ele se expor. Os cuidados corporais apresentam-se como um aspecto importante de coação social, na medida em que definem não só as insígnias de cada gênero, como também engendram a distinção entre diferentes identidades. Em última análise, os cuidados corporais são práticas normalizadoras e reguladoras que capacitam os indivíduos que a elas aderem a se sentirem pertencentes à normalidade.

 

IHU On-Line - Nessa perspectiva, as mulheres são realmente donas de si?

Maria Simone Schwengber – As gestantes hoje são incitadas claramente a se adequarem a um modelo ótimo de estética e de aptidão total, por meio de diferentes discursos da saúde. Discursos ensinam e instigam a gestante a desenvolver uma nova saúde, mais forte, autoaperfeiçoada, alerta, alegre, firme e mais audaz que todas as saúdes até agora. Nesse contexto em que as gestantes são responsáveis não só pelo desenvolvimento e proteção do feto, mas também pela saúde do filho quando adulto.

As estratégias de governamento propagadas pelos diferentes discursos parecem dizer às gestantes, de muitas e diferentes formas: sejam Donas de si?  O que chama a minha atenção é que nunca fomos tão incitadas a sermos donas de nós mesmas, conhecermo-nos, ao mesmo tempo nunca fomos tão reguladas e controladas na própria ocupação de si. Parece que, uma vez grávida, recai sobre a mulher o peso de entregar ao filho a energia não só de seu corpo, mas também de sua alma. 

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum ponto não questionado?

Maria Simone Schwengber – Todo esse empreendimento dos diferentes cuidados corporais caminha talvez na direção de a grávida encaixar os corpos que estão “fora do lugar” e a deixá-los aptos (BAUMAN ). O que significa estar fora do lugar? Hoje, é ser gordo/a, ter celulite, ser flácido/a, ser sedentário/a. A partir da década de 90 do século XX adquirem um grande impulso as práticas de prevenção e de promoção da saúde e também como práticas de modelagem estética dos corpos grávidos. 

É curioso observar, no entanto, o quanto essa inclinação [da maternidade], tida como inata e natural em nossa existência, é alvo da mais meticulosa e intensa vigilância, bem como do mais diligente investimento. Desmistificar a essência biológica da corporalidade feminina é descortinar a construção sociocultural do processo de gravidez como ato altamente regulável pela sociedade contemporânea e pelas diferentes áreas do saber.

Um enunciado que me chama a atenção: O que uma mulher vive na gravidez não deve ficar em seu corpo. Deve ficar apenas em sua memória. Os corpos grávidos são admirados, desde que não exibam as marcas da sua função: estrias, seios caídos, aumento de peso, falta de tônus muscular. Essas marcas tornam-se objetos de repulsa. Dessa forma, a memória do processo da gravidez, marcada nas dobras da pele, converte-se em doença-deformidade. Pergunto-me: será que não acontece nada de político aí? Parece-me que essas exigências para eliminar as marcas dizem muito, não de doença, mas da saúde moral e estética de uma época.

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