Edição 204 | 13 Novembro 2006

Capitania d’el-Rei: aspectos polêmicos da formação rio-grandense

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

I CICLO DE ESTUDOS SOBRE A FORMAÇÃO SOCIAL SUL RIO-GRANDENSE: A LEITURA DE SEUS INTÉRPRÉTES

O livro Capitania d’el-Rei: aspectos polêmicos da formação rio-grandense. Porto Alegre: Globo, 1970, de Moysés Vellinho. Essa é a obra em análise no I Ciclo de Estudos sobre a formação social Sul Rio-Grandense: a leitura de seus intérpretes, marcada para esta quinta-feira, dia 16-11-2006, na sala 1G119 do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O palestrante é o historiador gaúcho Mário Maestri, da Universidade de Passo Fundo (UPF). Sobre o tema, confira a entrevista que segue, concedida por e-mail.

Maestri é graduado, mestre, doutor e pós-doutor em Ciências Históricas pela Université Catholique de Louvain, em Louvain La Newe, na Bélgica. É co-autor, ao lado de Robert Ponge, de Desse pão eu não como!  Portugal: Zonanon, 2003. Maestri apresentou o livro Sobrados e mucambos, de Gilberto Freyre, na programação do II Ciclo de Estudos sobre o Brasil, promovido dia 15-042004, pelo Instituto Humanitas Unisinos. Sua palestra originou o artigo publicado no Cadernos IHU número 6, de 2004, intitulado Gilberto Freyre: da Casa-Grande ao Sobrado. Gênese e Dissolução do Patriarcalismo Escravista no Brasil. Algumas Considerações. No mesmo dia 15-04-2006, o professor conduziu o tema A casa das sete mulheres: literatura, história e trivialidade no evento IHU Idéias. Sobre ele, o professor concedeu à IHU On-Line uma entrevista, que publicamos na edição número 96, de 12-04-2004. O evento também rendeu a publicação, em 2004, do número 17 de Cadernos IHU Idéias, intitulado As sete mulheres e as negras sem rosto. Os dois textos estão disponíveis no site www.unisinos.br/ihu. No III Ciclo de Estudos sobre o Brasil, em 28-04-2005, Maestri falou sobre o livro O escravismo colonial, de Jacob Gorender. A respeito do tema, concedeu uma entrevista à IHU On-Line, edição 138, de 25-04-2005. Todas as contribuições de Maestri estão disponíveis para download na página eletrônica do IHU, www.unisinos.br/ihu.

IHU On-Line - Como a obra Capitania d'El-Rei: aspectos polêmicos da formação rio-grandense, de Moysés Vellinho, ajuda a contar a história da formação social sul rio-grandense?

Mario Maestri
- Sem jamais se transformar em um grande protagonista, Moyses Velhinho (1901-1980) emergiu na política regional e nacional no contexto da chamada Revolução de 1930, na esteira da proposta de superação da ordem federalista e de construção autoritária de um forte Estado nacional brasileiro. Porém, foi como crítico literário e, sobretudo, como historiador, que desempenhou, por longas décadas, importante papel político, cultural e ideológico no Rio Grande do Sul. Moysés Vellinho destacou-se, sobretudo, como ensaísta e por dirigir, de 1945 a 1957, a célebre revista Província de São Pedro. Sua produção historiográfica propriamente dito não foi ampla, restringindo-se sobretudo a três livros, publicados, a partir da década de 1960, sempre pela prestigiosa livraria Globo, de Porto Alegre: O Rio Grande e o Prata: contrastes [1962]; Capitania d́El Rei: aspectos polêmicos da formação rio-grandense [1964]; Fronteiras [1975]. Dastaque-se que o IEL e a Corag acabam de lançar, na Coleção Meridionais, uma nova edição de Capitania d'El Rei.

IHU On-Line - E como historiador, qual a importância de Moysés Vellinho para nossa cultura?

Mario Maestri
- A bem da verdade, Moysés Vellinho não pode ser caracterizado propriamente como historiador, na acepção plena do termo. Para ele, o uso e a seleção do dado documental eram e deviam ser regidos pelas necessidades da produção de visões do passado que consolidassem as propostas do presente que via como necessárias. Nesse sentido, foi sempre sobretudo um propagandista e ideólogo e jamais um cientista social. Com o passar dos anos, essa sua característica assumiu, em alguns casos, um nível mais do que paradoxal, verdadeiramente hilário. Por exemplo, em Capitania d'El Rei, registra seu descontentamento com o hiato entre sua descrição de Rafael Pinto Bandeira como herói pátrio magnífico, de garbo portentoso, e os poucos retratos que conhecemos do personagem, feito em sua época, que o apresentam como "cavaleiro gordo e canhestro" que "aos 50 anos" já necessitava de "banquinho para montar".  Assim sendo, Vellinho "desafiou" os artistas plásticos a produzirem iconografia sobre o herói que se afaste da realidade e abrace o mito necessário! Enquanto ideólogo do Estado burguês nacional-autoritário em construção, a grande tese de Vellinho foi a gênese do RS como parte do esforço civilizador excelente do Estado colonial lusitano no sul da América. Uma visão ideológica em contradição [secundária] com as visões de matriz liberal-pastoril que enfatizavam o caráter regional-platino do RS e [principal] com a necessidade do reconhecimento da importância no passado rio-grandense de um multifacetado mundo do trabalho, sempre marginalizado e espoliado.

IHU On-Line - Então, qual é a atualidade dessa obra para entendermos melhor o Rio Grande do Sul?

Mario Maestri
- A produção historiográfica de Moysés Vellinho, reconhecidamente já sem valor científico, é de fundamental importância para conhecermos o processo de gênese, desenvolvimento e consolidação de interpretações míticas sobre a sociedade sulina, não raro, ainda dominantes. Formado nos anos 1930, Vellinho abraçou as teorias exóticas das raças superiores e, melhor do que qualquer outro autor, levou até os anos 1970, semimodernizadas, interpretações já dominantes na historiografia de fins do século 19, sobre a singularidade do Rio Grande, como região produto de um meio e de uma raça especiais. Em verdade, retomando interpretações desenvolvidas anteriormente por autores como Assis Brasil, Alcides Lima, Rubens de Barcellos, Salis Goulart, etc., Moysés Vellinho realizou uma verdadeira limpeza étnica do passado sulino, no que se refere à enorme contribuição do americano nativo e do trabalhador escravizado, apresentando o Rio Grande quase apenas como produto do esforço do lusitano e do luso-brasileiro. Em sua obra historiográfica de escriba das classes proprietárias, Vellinho praticamente não se refere ao trabalhador negro escravizado, apesar de contar, quando escrevia, com abundante informação documental sobre a indiscutível importância demográfica do africano e afro-descendente no Sul. Quanto ao nativo (guarani),  apresenta-o como "raça irrecuperável em franca regressão histórica", saudando literalmente sua extinção e massacre pelos paulistas! Sua historiografia é também profundamente misógina, praticamente não se referindo às mulheres no processo de nossa formação social.

IHU On-Line - De que modo visões como a de Moysés Vellinho permanecem ainda hoje em dia? Qual a importância da discussão de sua obra para os dias de hoje?

Mario Maestri
- Entre os rio-grandenses, são ainda gerais as visões do RS como produto quase exclusivo do trabalhador livre, com destaque - no norte do Estado - para um imigrante alemão e italiano absolutamente mitificado. A fazenda pastoril do meridião do RS continua sendo apresentada como base da construção de uma sociedade singular que teria desconhecido as contradições sociais, como as existentes entre o peão e o fazendeiro, entre o gaúcho e o proprietário, entre o escravizador e o produtor escravizado. O conhecimento e crítica científicas das raízes culturais mais próximas das atuais visões alienadas sobre o passado e o presente são instrumentos imprescindíveis para a construção de visão socialmente positiva sobre nossa sociedade.  Um processo, temos que reconhecer, ainda muito limitado no Rio Grande do Sul. Se não, como podemos compreender que o arquivo histórico municipal de Porto Alegre tenha sido batizado e continue ainda levando o nome de um ideólogo, indiscutivelmente racista e elitista como Moysés Vellinho.

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição