Edição 462 | 30 Março 2015

CAROLINA DUARTE

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Carolina Duarte

Carolina Duarte – Psicóloga e Doula. Coordenadora do Gerando. Mestre e doutoranda em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora com o tema da Espiritualidade do Cuidado.
Foto: Acervo Pessoal

Creio em...

Foi com grande alegria que acolhi o desafio de dar meu depoimento. Percorri, então, um caminho novo, pois não posso dizer que sou uma pessoa religiosa. Cresci em uma família de origem católica tanto pelo lado materno como pelo paterno. Porém, meus referenciais religiosos não vieram de meu pai e minha mãe. Ele é ateu, pragmático e um tanto melancólico. Ela, bem, posso dizer que ela se aproximava mais da Nova Era do que de qualquer instituição religiosa definida. Havia um tom Marxista no ar da minha infância. Sou filha de pais questionadores. Ambos críticos do sistema, cada um a seu modo.

Este casal não batizou seus filhos ao nascer, não frequentava igreja alguma, não rezava formalmente, mas o elemento de uma espiritualidade difusa permeava o ambiente. Minha avó paterna reservava a Sant’Ana um lugar especial em sua sala de estar. Havia sempre uma flor vistosa ao seu lado e uma vela com pavio queimado, mas nunca aceso quando eu estava por perto. Afinal, criança que brinca com fogo faz xixi na cama. Este lado da família trazia também alguns elementos do Candomblé ou da Umbanda, pois viviam na Bahia e lá a proteção dos Orixás adentra todos os espaços.

O lado materno, em São Paulo, a convivência tinha um fundo que tendia às ideias feministas das mulheres fortes que me cercavam. Um de meus programas preferidos era passear com minha avó pela Av. Paes Leme. Caminhávamos sem pressa parando em cada lojinha dos chineses para comprar cacarecos, comíamos churros e terminávamos na Igreja. Não lembro o nome da Igreja, nem a que Santo estava ligada, mas aquele lugar me causava um misto de temor, curiosidade e admiração. Lembro do cheiro das velas e do som das batidas do meu coração naquele silêncio de solene penumbra. Ela, minha avó, era a única pessoa que me levava à Igreja, mas nunca a uma missa. Não havia rituais ligados a uma religiosidade mais estruturada, mas eu tinha sede de respostas e estas me chegavam às vezes através das falas de uma Babá, ou pessoas de fora que me fizeram introjetar o elemento da culpa cristã de forma perturbadora. Sentia medo de ficar sozinha, medo do escuro, medo de morrer, mas principalmente medo que minha mãe morresse. E foi justamente uma morte que me levou a uma missa pela primeira vez. Eu tinha nove anos quando meu bisavô materno faleceu. Lembro de implorar que me levassem ao enterro, imagine só, eu queria ir a um enterro. Minha mãe acabou consentindo. Chegamos, então, à Queluz, uma pequena cidade do interior de São Paulo onde meu bisavô era velado no centro da sala de estar de sua própria casa. Havia muitas pessoas, ladainha, flores, velas, penumbra... Um caixão aberto com um corpo branco coberto por um véu. Lembro do susto que levei ao reconhecer naquele corpo as feições de alguém que antes estava vivo. Chorei copiosamente e toquei nas mãos geladas que descansavam sobre seu peito. Mas quase que imediatamente alguém me tirou dali. Fui levada à cozinha onde me fizeram comer e ouvir os tios já discutindo divisões e partilhas. Depois, mais calma, voltei à sala, não sei se com permissão ou se por fuga, e sentei ao lado do Babo. Rezei, acho que pela primeira vez na vida, mas eu não “sabia” rezar. Fechei os olhos e pedi fortemente para que ele estivesse bem. Quando voltei a mim e abri novamente os olhos percebi que o choro da grande vela ao lado do caixão, aqueles filetes de cera derretida que escorrem ao longo da vela, tinham o formato de uma figa. Meu coração, então, se encheu de paz. Entendi aquilo como uma resposta de Deus ao meu pedido: ele estava bem. Percebi que no semblante do Babo, no fundo, havia um sorriso. Cuidadosamente descolei da vela a figa, levantei o véu que cobria o morto e lhe entreguei o elemento de proteção que lhe pertencia. Meu bisavô foi enterrado com um pouquinho de mim com ele. E sua figura permanece ainda hoje sendo a minha imagem interna de anjo.

Este evento, entre outros, fez nascer em mim a consciência de uma confiança que me constitui. Uma crença de que existe algo maior que me cuida, guia e protege. Porém, fez crescer ao mesmo tempo uma sensação de falta de pertencimento, uma falta de conhecimento sobre o que era permitido e o que não era. O desejo de me encaixar em uma religião, uma prática, uma família, fez com que eu pedisse, aos doze anos, para ser batizada e fazer primeira comunhão. Desejava ser aceita, aceita por Deus, e assim foi feito. Escolhi meus padrinhos e uma grande festa se fez. Porém, as raízes críticas e pragmáticas da minha família, que também me constituem, não me permitiram aceitar aquele Deus católico. Sinto hoje que absorvi a imagem Dele de forma misturada com a imagem do que os homens fizeram em nome Dele. Em minha adolescência, então, fugi da culpa e do julgamento católicos, mas mantive a esperança de que o “meu Deus” estivesse comigo. Nesse meio tempo, minha avó, aquela que me levava à Igreja, vira Budista. Realmente eu não tinha parâmetros sólidos onde me apoiar.

Ao longo da vida convivi com essa ambivalência: o desejo de me enquadrar e seguir uma tradição, e a minha incapacidade de compactuar com o fato de que as pessoas dentro de uma tradição acreditam que detêm A verdade. Visitei algumas linhas do Budismo, o Espiritismo Kardecista, a Antroposofia, passei pela filosofia Hindu, me encantei pelas palavras do Sufismo e recentemente experimentei a Umbanda. Aprendi de maneira esplendorosa com todas estas denominações. Genuinamente enxergo, sinto, verdade em todas, mas não consigo conceber que alguma detenha a totalidade da verdade. Hoje sou uma estudante de religião, de Ciência da Religião. Muitas vezes me pergunto o que uma pessoa com concepções religiosas tão soltas como eu está fazendo ao se aprofundar neste universo. A resposta a esse questionamento interno vem com a minha também dificuldade em conceber o mundo árido da secularização como A verdade. Eu creio, vivo, sinto e experimento o encantamento das relações, da natureza, dos ciclos. Eu vejo as ligações, mesmo que não possa explicá-las, nomeá-las. Elas me alimentam, me dão uma dimensão grandiosa do sentido da minha vida, e das vidas, todas elas. Então, ainda hoje, eu creio que sou pequena e sou parte de algo maior que me cuida, guia e protege. Creio também que o que essa força maior entende por cuidado, guiança e proteção, pode ser diferente do que eu entendo ou desejo, então me resta entregar, confiar, aceitar e agradecer. Eu me norteio pela gratidão, ou pelo exercício contínuo da gratidão como meta. Com base em um sentido reverente que confere a tudo que é vivo uma qualidade de existência, espero que o ser humano consiga um dia conviver em si, entre si e com os diferentes de forma respeitosa. Espero que a ideia do antropocentrismo seja revisitada, questionada e requalificada. Que a ela seja acrescido um outro valor, o da responsabilidade. Que os seres humanos se percebam não mais como dominadores ou superiores, mas como cuidadores, guardiões da vida em todo seu esplendor.

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