Edição 460 | 16 Dezembro 2014

Controle neural e neuromarketing. Uma reconfiguração do ser humano

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Márcia Junges e João Vitor Santos / Tradução: Isaque Gomes Correa

Timothy Lenoir aborda a questão da optogenética nas sociedades tecnocientíficas e suas relações com o neuromarketing

O que a neurociência tem a ver com o marketing? A questão serve de guia para o caminho que Timothy Lenoir percorre em sua reflexão, durante entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line. A partir da ideia de uma técnica de controle neural — a optogenética — destaca que é possível realizar intervenções específicas em distúrbios e doenças. Ou seja, modifica-se a célula num ponto específico e se tem uma resposta no tratamento do distúrbio. 

Levando o conceito para outra ideia, o neuromarketing, o entrevistado demonstra como é possível mexer no cerne dos desejos a partir de uma oferta — ou propaganda — de produtos que tenham tanto significado para o indivíduo. E o suporte para essa relação de consumo é a tecnologia, que funciona como uma esteira em que o usuário deixa suas marcas e a partir delas são oferecidos os produtos que possam lhe despertar interesse. “Se a mudança das sociedades de produção para as sociedades de consumo é a maneira como pensamos sobre as coisas — ou como Deleuze nos encoraja para pensarmos sobre elas —, então o capitalismo digital é, realmente, o tipo de mecanismo para se obter o desejado”, explica.

Na prática, é como os sistemas de monitoramento, por exemplo, usando o Google, seja no e-mail ou no buscador, operam e produzem mapeamentos comportamentais. “É, basicamente, pensar os ‘divíduos’ como bits de informação sobre as pessoas. Assim, as informações sobre sua saúde, suas preferências pelos vários tipos de comida, o que quer que seja, tudo isso é, absolutamente, central nas sociedades de controle e, ao mesmo tempo, as sociedades de controle são organizadas pelo mercado”, complementa Lenoir. 

Timothy Lenoir é professor de História e catedrático do Programa de História e Filosofia da Ciência, na Duke University, nos Estados Unidos; autor de A Estratégia da Vida. Teleologia e Mecânica na Biologia Alemã do século XIX (Dordrecht and Boston: D. Reider, 1982), editado como brochura pela University of Chicago Press, 1989, que examina o desenvolvimento das teorias não darwinianas da evolução, particularmente no contexto germânico durante o século XIX. 

Atualmente pesquisa sobre a introdução de computadores na pesquisa biomédica desde início de 1960 até 1990, particularmente o desenvolvimento de computadores gráficos, tecnologia de visualização médica, o desenvolvimento da realidade virtual e sua aplicação em cirurgia. Com fundos da Fundação Alfred P. Sloan, construiu dois projetos web sobre história da interação humana por computador e sobre história da bioinformática. Lenoir foi membro da Fundação John Simon Guggenheim e por duas vezes membro do Instituto de Estudos Avançados em Berlim. É cofundador e editor da série Escrevendo ciência (Writing Science), da Stanford University Press e foi nomeado membro emérito [Bing Fellow] por Excelência no Ensino entre 1998–2001.

Em 23-10-2014 esteve na Unisinos, participando do XIV Simpósio Internacional IHU: Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea, com a conferência Neurofuturos para sociedades de controle. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a importância das ferramentas de optogenética  para os estudos de engenharia “bioneuro” e para os novos estudos de mapeamento cerebral?

Timothy Lenoir - A optogenética é um conjunto de ferramentas, derivadas principalmente da engenharia genética, que começou há uma década. Diz-se que, por volta de 2006, inseriram-se basicamente proteínas em tipos diferentes de neurônios onde se pode usar a luz, como a luz azul ou a luz amarela, para acender ou desligar uma célula. Isto permite que se mostre ou veja as interconexões entre diferentes neurônios, de forma que se torna possível olhar os circuitos que os neurônios formam, os quais podem ser bastante complicados, pois há muitos deles. Nesse sentido, a razão por que a optogenética é realmente útil é que ela nos capacita a sermos seletivos devido à engenharia genética empregada. É possível ser bastante seletivo com os tipos de neurônios nos quais inserimos proteínas. Ser seletivo ajuda no controle de ligar e desligar estes tipos de células jogando-se luz sobre elas. Portanto, este conjunto de ferramentas [chamado optogenética] é útil para capacitar os cientistas — neurocientistas — a mapear as conexões entre os diferentes neurônios e descobrir qual o tipo de funções com que eles se relacionam.

Os outros tipos de ferramentas sobre os quais discuti, aqueles usados por [Miguel] Nicolelis  são mais úteis para o estudo neuromotor, tais como as atividades musculares e coisas do tipo. A optogenética, porém, vai capacitar as pessoas a alcançar funções de ordem mais elevada, funções cognitivas, como a memória e outras. Dessa forma, ela realmente dá início a todo um outro território para investigações científicas, de fato, detalhadas e também a novos experimentos. 

Por fim, a importância da optogenética é que ela pode ser usada para propósitos terapêuticos. Está-se começando a usá-la para propósitos terapêuticos relacionados ao mal de Parkinson e a algumas outras coisas. A razão é que se descobriu que, ao compreender os neurocircuitos afetados pelo mal de Parkinson, pode-se melhor controlá-los, ligando e desligando suas células.

 

IHU On-Line - Quais são as implicações desse trabalho num contexto mais abrangente considerando o “neuromarketing ”?

Timothy Lenoir - O neuromarketing tenta influenciar as emoções para obter o tipo de coisa que Deleuze  (e Guattari ) chama de afeto: não se trata apenas de emoções, mas de outros tipos de atividades corporais que ativam desejos e que não estão, necessariamente, sujeitos ao controle racional. Deleuze e Guattari chamam este tipo de emoção como partes maquínicas da consciência que precedem a consciência. E o que muitos marqueteiros, evidentemente, querem fazer é poder acessar este nível da consciência. O marketing está tentando fazer com que as pessoas sintam que o produto e as pessoas associadas a ele — a empresa associada a produto — criem uma espécie de experiência, estilo de vida... Por exemplo, Ralph Lauren, o projetista de moda: quando compramos, quando vemos os seus anúncios, o que estamos recebendo é um estilo de vida por parte do estilista. Não é como se estivéssemos comprando algo que de precisamos, porque não está à venda algo necessário. É apenas um estilo de vida.

Então, é toda uma configuração de afetos o que se está tentando gerar. E os neuromarqueteiros estão tentando usar estas ferramentas para poderem olhar para a forma como os tipos de anúncios e mensagens que eles estão tentando enviar estão afetando/influenciando estas partes particulares dos consumidores. 

Eu acho que este trabalho, num contexto mais amplo, significa algo muito além do que parece. No começo do século XX, fim do século XIX, havia pessoas que começaram com a noção de mercado, de tipos particulares de mercados e clientela. Estes eram, em geral, grandes classes de pessoas. Em seguida, criou-se algo como nichos de mercado: sabemos que existem vários tipos de comunidades que têm a sua própria cultura, o seu próprio estilo e, é claro, é possível vender especificamente a estas comunidades, a estes nichos específicos.

Então, hoje, o marketing de nicho trata do que as pessoas fazem, mas quer-se ir além e ser capaz de atingir os indivíduos. Está é, pois, a estratégia de milhares de anúncios na internet. O tipo de coisa que se está fazendo na internet é tentar desenvolver perfis dos indivíduos de forma que se possa alimentá-los com informações que vão atraí-los e, realmente, reforçar o mundo deles. 

Por exemplo, não sei se você usa o Gmail no dia a dia. Se sim, o Google está constantemente vasculhando os seus e-mails e encontrando termos que o descrevem, que você usa, que sugerem certos tipos de relações. Então, quando uso o Gmail, ou se uso o mecanismo de busca do Google, eles acumulam todos os tipos de informação a meu respeito e sobre os tipos de assuntos que eu procuro. E, onde quer que eu esteja navegando na internet, as páginas têm anúncios que se relacionam com as coisas de que eu poderia gostar. E não só isso: o Google faz marketing de nicho para o conteúdo também, então ele vai alterar o conteúdo.

Assim, você lê um jornal e o que estes mecanismos fazem, cada vez mais, é alterar o tipo de histórias que você vai ler dependendo do seu histórico, dependendo das histórias de que você gosta. Tem-se então uma sociedade de controle. Se isso não for uma sociedade de controle, então eu não sei o que é. Esta é a ideia basicamente.

E é aqui onde eu vejo um contexto mais amplo para este tipo de trabalho, no sentido de que eles estão nos fornecendo coisas que queremos e que gostamos. Assim, é possível compreender por que os marqueteiros iriam querer fazer este tipo de coisa, mas eles querem encorajá-lo a fazer outros tipos de coisas também. Eles igualmente conhecem todos os tipos de coisas a respeito de sua saúde. Por exemplo, podem saber sobre a sua saúde a partir das pesquisas que você faz [no Google]; eles sabem como você está ou quais problemas você tem. E este tipo de informação inicia uma nova direção no sentido das coisas às quais você é novo.

Eu acho, então, que, de um lado, este contexto parece como sendo de liberdade, mas não é. Quero dizer, você é livre para escolher as coisas que deseja. E se você se queixa, se você reclama, se diz ao Facebook que não quer ver estes anúncios ou que não quer esta ou aquela informação na tentativa de mudar a política do que você vem recebendo em sua página, terá de ir nas opções especiais do programa, em suas opções, etc., e isso exige ficar clicando, páginas e páginas, em diferentes opções no intuito de obter aquilo que você deseja: desativar tais anúncios, informações. Portanto, é uma luta constante.

Eventualmente, eles irão fazer o que você quer e, então, você irá parar de receber tais tipos de informação. No entanto, você mesmo não vai ficar feliz que isso tenha acontecido, porque, de repente, agora você se torna uma pessoa de segunda classe e as espécies de informação que estava recebendo eram de níveis muito altos, ou relativamente altos. E, então, vai perceber que não recebe mais ofertas de produtos realmente interessantes, ou cupons de desconto em vários tipos de coisas que você gostaria de ter, ou mesmo viagens grátis para lugares, dicas do site Trip Advisor , ou coisas deste tipo. De repente, também, o seu mundo digital se parece um tanto diferente.

E, portanto, estes elementos podem evoluir, podem evoluir para uma espécie de sociedade de classe/casta.

 

IHU On-Line - Nesse sentido, o senhor quer dizer uma sociedade panóptica?

Timothy Lenoir - Sim, exatamente.

 

IHU On-Line - A partir dessas considerações e da perspectiva da filosofia de Gilles Deleuze, como analisa as sociedades de controle com o aprofundamento da tecnociência?

Timothy Lenoir - Acho que o que eu estava tentando dizer sobre esta questão é que a tecnociência organiza-se, fundamentalmente, em torno da ciência da informação. Ela se organiza em torno da computação, em torno destes tipos de alta tecnologia computacional. E as sociedades de controle são sociedades de divíduos, no dizer de Deleuze. É, basicamente, pensar os divíduos como bits de informação sobre as pessoas. Assim, as informações sobre sua saúde, suas preferências pelos vários tipos de comida, o que quer que seja, tudo isso é, absolutamente, central nas sociedades de controle, e estas, ao mesmo tempo, são organizadas pelo mercado. 

Basicamente, Deleuze teve esta ideia — que, particularmente, acho bastante interessante — de que o que aconteceu é a mudança das economias de produção para as economias de consumo. E as economias de produção eram manufatureiras. Fazíamos produtos; hoje projetamos. Hoje, fazemos o trabalho cognitivo produzir, enviamos projetos para a China a fim de serem produzidos — para serem produzidos a partir de um projeto, design que é feito aqui, digamos, no Brasil, ou em outros lugares. E é este tipo de coisa que Deleuze tinha em mente. 

Então, penso que a força motriz de todo este movimento é o mercado. E os mercados para ele se tornaram o engenho de controle. E, como podemos ver nos exemplos que dei quando falávamos sobre a internet e outros tipos de coisas que recebemos enquanto navegamos, o mercado está, fundamentalmente, direcionando e controlando este tipo de modulação. Portanto, não se tem uma sociedade de controle sem tecnociência. E não se pode ter a tecnociência sem estas coisas de que estamos falando: elas se reforçam mutualmente.

 

IHU On-Line - Numa época de característica tecnocientífica, como percebe a modelagem da vida a partir do controle da subjetividade das populações?

Timothy Lenoir - Eis uma pergunta difícil. Estamos falando da vida como a conhecemos, certo? É óbvio que os tipos de comunidade que existiam ao redor da família, do trabalho, se desfizeram porque instituições como a família, a escola, e outras, se modelaram em outros sentidos. A família, como a conhecemos, ou como as pessoas a conheciam uma geração (ou duas) atrás, mudou completamente. Acho, portanto, que as sociedades de controle têm muito mais a ver com pessoas solteiras juntando-se em grupos e, em seguida, movendo-se em outras direções.

O sentimento relativo à comunidade não é o mesmo. Embora todas estas tecnologias da comunicação tratem, supostamente, de agregar, de aproximar as pessoas, de pô-las em comunicação, em certos sentidos elas, de fato, não parecem fazer o que desejam. São diferentes formas de aproximação e comunicação.

 

IHU On-Line - Em 2008, em outra entrevista concedida pessoalmente à revista IHU On-Line, o senhor afirmou que, de algum modo, sempre fomos ciborgues. No entanto, o que muda num cenário cujo protagonismo da tecnociência só aumenta?

Timothy Lenoir - Eu acho que esta afirmação é ainda mais correta, hoje, do que quando a fiz há alguns anos. Na época, quando falei que “sempre fomos ciborgues”, quis dizer que quando pensamos sobre o humano, pensamos que ele coevolui com a tecnologia. Muitas pessoas realmente interessantes que se reportam a Deleuze — por exemplo, Bernard Stigler  e outros — têm esta noção, e que assino embaixo, de que o humano coevolui com a tecnologia. E a minha ênfase particular vai sobre a tecnologia da informação. 

Há um biólogo e antropólogo evolucionista fantástico chamado [Terrence W.] Deacon . Ele tem um livro chamado Symbolic Species [Espécie simbólica] que discute quando os humanos surgiram a partir de outras formas hominídeas. O seu argumento é que a linguagem, o razoamento simbólico e o uso do pensamento via símbolos constituíram o ponto-chave de inflexão. Com isso ele traça a evolução e o tamanho cerebral, bem como os diferentes tipos de coisas culturais que começam a surgir. Ele, portanto, trata a linguagem como um tipo de parasita que não é algo produzido pelo humano; é algo que, na realidade, coevolui com os humanos e os coconstrói. 

Nesse sentido, sempre fomos ciborgues; a nossa tecnologia, os seres humanos e a tecnologia coevoluindo juntos é o que forma o começo. Eu, de fato, penso que somos ciborgues. Quero dizer, não vejo como podemos pensar de nós mesmos como não sendo coevoluídos junto das nossas máquinas, e cada vez mais querer pegá-las e internalizá-las para fazer delas extensões de nossos corpos — ou de nós mesmos. 

Você já assistiu ao filme Her (Ela, Spike Jonze, 2013)? Ele foi lançado há, mais ou menos, um ano e meio. A história fala sobre um cara que se apaixona pelo sistema operacional [de seu computador]. Ele fica muito [apaixonado]; ambos mantêm esta relação e “ela” está aprendendo. É um novo sistema operacional que tem todos os tipos de características inteligentes; aos poucos vai adquirindo mais inteligência e acaba querendo ajudá-lo. O filme se desenvolve de uma maneira muito interessante. 

Não gosto de contar o fim do filme, mas a história padrão para este tipo de coisa é que, quando começamos a nos aproximar demais dos sistemas artificiais, que quando eles se dão conta de que não precisam mais de nós, tornam-se realmente esquizofrênicos, tornam-se, na realidade, paranoicos: na real, eles se tornam megalomaníacos e se livram da gente. Assim, o filme The Lawnmower Man (O Passageiro do Futuro, Brett Leonard, 1992) poderia ser um exemplo. Há vários outros filmes como este. Neste de que estou falando, em particular, o interessante é que o sistema operacional tem outros amigos com os quais ele se conecta e que são outros sistemas. Eles estão coletivamente ficando, cada vez mais, inteligentes e, simplesmente, decidem que não necessitam mais dos seres humanos. Então, eles debandam. As pessoas, então, se perguntam: “O que aconteceu?” Elas não se preocupam com a singularidade. 

E, sim, somos ciborgues. E acho que estamos, mais e mais, ficando assim. E, por causa da ideia de sociedade de controle e da relação da tecnociência com ela, não vejo como isto pode ser diferente. 

 

IHU On-Line - Tomando em consideração a questão dos ciborgues e, por conseguinte, da temática do pós-humanismo e do tecno-humanismo, como compreende o posicionamento antropocêntrico assumido pela humanidade?

Timothy Lenoir - Acho que sim, acho que temos um posicionamento deste tipo assumido pela humanidade. Embora haja um movimento filosófico muito forte como aquele de ontologias orientadas aos objetos, que quer se ver livre desta visão de todas as coisas a partir do ponto de vista humano. Quer dizer, não como objetos para nós, mas como objetos no próprio direito deles de ser. Então, como lidar com isso?

Acho que esta tarefa não é nada fácil. Além de eu ser uma espécie de entusiasta ciborgue, sou também um construtor social — e eu acredito que nós, basicamente, construímos o mundo. Penso também que esta é uma daquelas coisas importantes que vêm acontecendo na tecnociência contemporânea. 

Hoje a tecnologia é fundamental. Há tantas e diferentes áreas da ciência e tecnologia que nós chegamos a controlar minúsculas partes da matéria, tendo condições de montá-la, parte por parte, por nós mesmos. Portanto, podemos substituir a natureza com uma máquina mais precisa, melhor. O que estamos falando aqui diz respeito, fundamentalmente, a uma visão antropocêntrica. Ela está transformando a natureza em algo que controlamos e que podemos usar para nossos próprios fins. Eu considero este momento um tanto perigoso. No entanto, considero-o também inevitável. 

 

IHU On-Line - Qual é o espaço para a expressão da autonomia do sujeito em um contexto dessa ordem?

Timothy Lenoir - Acho que esta é a pergunta principal. Quero dizer, de certa forma parece que estamos capacitando os sujeitos a serem completamente autônomos, livres, a poderem escolher as coisas, e assim por diante. Porém, penso que estas benesses estão sendo controladas por forças que estão além do nosso controle. 

Em outras palavras, penso o capitalismo como uma espécie de força da natureza. Penso o capitalismo como uma máquina, no sentido deleuziano de máquina. Quando perguntamos “o que há lá fora?”, não há “inteirezas”, ou seja, indivíduos que são um todo completo dentro de seu eu interior. Não existe isso. O que há são máquinas em todo o caminho. E a matéria em si tem também os seus desejos. E são estas as questões que estão na dianteira. 

Portanto, o capitalismo, a meu ver, é a expressão última disso que estamos falando. Então, não há como evitá-lo. Esta é uma visão que tenho ao mesclar os pontos de vista de Deleuze com o de Manuel De Landa , quem tem, penso eu, uma leitura um tanto materialista de Deleuze e de sua relação com a teoria da complexidade dinâmica. Gosto desta leitura; acho-a bastante poderosa. Não vejo, todavia, nada senão uma autonomia aparente para os assim chamados indivíduos.

 

IHU On-Line - Tomando em consideração a ideia de “máquina de desejo ”, de Deleuze, em que medida desejamos ser máquinas e queremos transformar a natureza em máquina? Que possíveis cenários se descortinam dessa perspectiva?

Timothy Lenoir - Penso que isto está bastante de acordo como que eu vinha dizendo. Acho que a noção de Deleuze de uma máquina de desejo é um conceito um tanto difícil. Ele abre-se para muitas interpretações, creio eu. Mas acho que ela — esta noção — vem de Freud , com a ideia de id. Há aqueles tipos de forças psicológicas que são independentes. E se pensamos no que Deleuze está dizendo, chamando-o de máquina de desejo, vemos se tratar de algo muito semelhante aos tipos de atitudes que os atuais neurocientistas têm, de que há somente matéria, de que não há nada mais além dela.

Há configurações da matéria que produzem desejos, que produzem algo que pensamos como desejo. Mas, basicamente, existem estas forças que estão impelindo o sistema a ir adiante... Não existem almas, não existem coisas independentes da matéria. Há somente máquinas. E, no centro da coisa toda, há máquinas de desejo pressionando a matéria a avançar em direção a novas configurações, basicamente através do capitalismo.

Queremos transformar a natureza numa máquina? Acho que dizemos, em muitos casos, que não queremos e tentamos usar outros tipos de sistemas para pensar os sistemas naturais como algo que gostaríamos de imitar. Tudo, porém, que façamos está organizado em nosso entorno, e o mesmo acontece com os movimentos ambientalistas: os que conheço e que parecem interessados neste assunto são os que querem somente preservar partes da natureza e não têm mais nada a fazer com ela; apenas deixar sê-la.

O que, na prática, os movimentos ambientalistas querem é administrar o meio ambiente para os propósitos humanos, para a vida do planeta. É pensar o planeta inteiro como um ecossistema onde as partes dependem uma das outras, e assim por diante. Eu trabalho num instituto, o Center for Environmental Implications of Nanotechnology, e o principal objetivo aí é ver como podemos controlar os efeitos da nanotecnologia na medida em que ela é disposta no meio ambiente e seus possíveis impactos negativos na saúde. Portanto, o nosso principal objetivo é analisar a natureza em partes cada vez menores, de forma que possamos melhorar a maneira como estas partes trabalham e controlar a forma como funcionam. É tratá-la [a natureza] como uma máquina.

 

IHU On-Line - O capitalismo como um sistema econômico é uma condição necessária para apoiar um florescimento da sociedade tecnocientífica. É correto dizer isto?

Timothy Lenoir - Sim, é o que penso. O que eu acho também interessante é pensar sobre o capitalismo, hoje, em termos do capitalismo digital . Quero dizer, quando começamos a fazer os primeiros softwares — e estes são apenas um outro tipo de máquina —, tínhamos todos os tipos de problemas, a saber: eles são muito fáceis de serem copiados. Então, como monetarizar a sua criação? É o mesmo com a música: lembremos todos os problemas que existiam aqui no começo. Lembremos os vídeos, filmes, as pessoas roubando os códigos destes produtos e liberando-os gratuitamente, e assim por diante. Portanto, sempre houve algum problema com a tecnologia digital: mas como monetarizá-lo? Em outras palavras, isto significa se perguntar sobre como controlar tal tecnologia de forma que não se consiga pegá-lo e torná-lo disponível gratuitamente. Esta vem sendo a questão-chave desde então para todas as espécies de tecnologias: o controle dos direitos digitais, o controle da produção digital, incluindo páginas da web. 

Antes era muito fácil levantar-se, criar uma página de internet. Poder-se-ia fazer o que quisesse. Há, ainda, alguns lugares em que se pode fazer isso... Mas, cada vez mais, criar algo na web é descobrir como monetarizá-lo. E estes tipos de neurocapitalismo e todos aqueles diferentes métodos dos quais venho falando a respeito são formas que nós usamos para controlar a informação e tentar monetarizá-la.

Se a mudança das sociedades de produção para as sociedades de consumo é a maneira como pensamos sobre as coisas — ou como Deleuze nos encoraja para pensarmos sobre elas —, então o capitalismo digital é, realmente, o tipo de mecanismo para se obter o desejado.

Não acho que a máquina de desejo remonta ao cartesianismo. Creio que esta é uma outra questão. É claro, Descartes pensou o homem como uma máquina, mas apenas em certas partes. Somente o corpo. Ele pensou que haveria algo mais. Havia este tal de intelecto que, de alguma forma, não está embutido na máquina. Ele depende da máquina... Há uma relação interessante, em Descartes, envolvendo mente e máquina. Creio, porém, que a máquina de desejo é uma noção que, na verdade, não se relaciona com o cartesianismo. 

Leia mais...

- "Nós sempre fomos ciborgues. Isso é da natureza da sociedade humana". Entrevista com Timothy Lenoir, na edição 262 da IHU On-Line, de 16-06-2008;

- As sociedades de controle e a iminência de um “panóptico global”. Cobertura da conferência Neurofuturos para sociedades de controle, em 23-10-2014.

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