Edição 460 | 16 Dezembro 2014

A beleza e a incompreensão de uma vida contagiosa

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Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução: Ivan Pedro Lazzarotto

Cristiana Dobner discute a trajetória espiritual de Teresa de Ávila e os reflexos de seus ensinamentos às religiosas na contemporaneidade

A incompreensão e a intensa espiritualidade dos místicos nem sempre são percebidas por seus contemporâneos. É preciso que a poeira do tempo se assente para que se compreenda e respeite as diferenças e o despertar de Deus. “Precisamos lembrar que nem todas as pessoas, as mulheres em específico, são chamadas a ‘se unir com Deus seguindo o mesmo caminho. No final das contas é o Espírito que desperta o desejo e Ele sabe como tocar diferentemente cada pessoa que a Ele se abrir’”, explica Cristiana Dobner em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“Todavia, Teresa se torna emblemática para as mulheres de agora sob muitos perfis: a sua capacidade de reação de uma maneira particular reta e dominada somente por homens; a sua tenacidade frente às dificuldades impostas pelas instituições, sejam eclesiásticas, sejam municipais para erguer monastérios pobres, sem rendimentos”, complementa. Para a entrevistada, a espiritualidade de Loyola reverbera nos escritos de Teresa de Ávila. “São espiritualidades irmãs, muito próximas. O ‘magis’ de Inácio ressoa em todas as obras de Teresa, o que sempre estimula a dedicação absoluta; a necessidade de um discernimento preciso e comprovado e a entrega de si a um guia espiritual ressoam como convites inacianos. A Humanidade de Cristo permeia os escritos de ambos e  transborda de suas vidas”, argumenta.

“Os fenômenos místicos, superabundantes na vida de Teresa, são seus peculiares e não imitáveis. (...)Teresa se questionava constantemente: Senhor, o que quer de mim? Devemos permanecer sempre nessa questão, habitar a Palavra e se deixar conduzir. A presença de Deus na vida de Teresa foi tangível da mesma forma que é tangível a sua resposta: uma dinâmica de amizade, tecida de louvor e adoração”, encerra Cristiana Dobner.

Cristiana Dobner é irmã carmelita descalça, escritora, estudiosa e pesquisadora da teologia. É tradutora de textos do alemão, inglês, francês, espanhol, holandês, hebraico e russo. Além disso, colabora com várias revistas e jornais no mundo. Ela vive no mosteiro de Santa Maria del Monte Carmelo, na localidade de Barzio, na província de Lecco, Itália.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que sentido se pode dizer que Teresa de Jesus era uma humanista?

Cristiana Dobner - Sob tantas perspectivas a pergunta pode receber várias respostas, e considerarei algumas de acordo com a argumentação da própria Teresa, mulher radicada na história e profundamente humana. Demonstra por toda a sua vida sempre aberta e disposta ao encontro com os outros. Teresa tinha recebido um dom particular, colocado a serviço do seu testemunho de dedicação à Igreja: o dom de pessoa, como definem os espanhóis. Também se pode chamar de empatia, a capacidade de ouvir outras pessoas, ou seja, a certeza do acolhimento que Teresa infundia, na ausência absoluta do medo do confronto e das garantias a serem dadas pelo espaço de outros em detrimento do interlocutor.

Esse aspecto, porém, não permanece isolado, mas se coloca de acordo com o carisma recebido: a oração, em conformidade como abertura de louvor e de intercessão para todos, com uma postura de profundo encontro com o seu grande e único Amigo, do qual se ramificavam todas as suas amizades, o Senhor Jesus. Não em uma abstração teológica ou com um apelo moral, mas no âmbito da vida de Teresa, encarnada, com Jesus Cristo, feito carne. Uma vida vivida com a Humanidade de Cristo, o Deus Homem por amor. Deste encontro nasce e jorra toda a sua humanidade, porque sabe oferecer às pessoas a resposta aos grandes questionamentos que conduzem a sua existência, dirigindo-a plenamente na história para a única Beleza eterna: o amor Trino.

 

IHU On-Line - Quais foram as principais intuições e modificações da reforma empreendida por Teresa de Ávila na ordem carmelita? Como a comunidade recebeu tais mudanças?

Cristiana Dobner - A grande novidade é constituída pela oração, inserida no interior da Regra Carmelita que não a previa. Dois pontos: uma pela manhã e outra à noite, onde a carmelita que seguia Teresa na sua intuição redescobria sua profunda identidade: se deixar transformar pelo Espírito e “estar”, como Elias,  de fronte ao Vulto de Deus em intercessão oblativa para todos.

Teresa quis também que se considerasse atentamente a clausura, não como um recinto — corria então um provérbio “a mulher e a galinha até a casa vizinha!” — ou como um lugar segregado, mas como a condição que consentia à vida quotidiana de uma carmelita de se expressar melhor: no silêncio e na solidão. A comunhão amorosa no caminho de união com Deus é, de fato, solicitada. A comunidade de onde Teresa provinha e com a qual compartilhou a vida monástica contemplada e aderida em partes, em partes não aceitou: na plena liberdade.

 

IHU On-Line - Como se deu a expansão da ordem carmelita para outros locais a partir dessa reforma?

Cristiana Dobner - Na Espanha foi Teresa quem preparou o terreno e fundou, com meios escassos e cansativos, 17 monastérios. As suas filhas começaram a se expandir por... contágio... Quando alcançavam um país ou uma localidade, o estilo de vida “teresiano” atraía e se transformava em semente fecunda de vida.

 

IHU On-Line - Em vida, Teresa de Ávila era incompreendida por suas companheiras de convento. Qual é a recepção e a importância de sua trajetória espiritual entre as religiosas contemporâneas?

Cristiana Dobner - Precisamos lembrar que nem todas as pessoas, as mulheres em específico, são chamadas a se unir com Deus seguindo o mesmo caminho. No final das contas é o Espírito que desperta o desejo e Ele sabe como tocar diferentemente cada pessoa que a Ele se abrir. Todavia, Teresa se torna emblemática para as mulheres de agora sob muitos perfis: a sua capacidade de reação de uma maneira particular reta e dominada somente por homens; a sua tenacidade frente às dificuldades impostas pelas instituições, sejam eclesiásticas, sejam municipais para erguer monastérios pobres, sem rendimentos; a oração que desejava ser praticada por mulheres quando do contrário a sociedade machista acreditava que a mulher fosse somente capaz de orações vocais e incapaz de uma oração silenciosa e articulada; a sua capacidade de agregar e conduzir grupos de mulheres; a sua habilidade de escrever em uma época onde a mulher era analfabeta e era banida da arte de escrever; o seu comportamento firme, digno, astuto e bem humorado, com quem devesse controlar os seus escritos. Porém, o que mais atraía e fascinava a religiosa era a sua capacidade de acolher a irrupção de Deus e indicar aos demais como proceder com discernimento para caminhar (andar! verbo que Teresa tem afeição) nos caminhos de Deus.

 

IHU On-Line - Quais eram as principais obras de ascetas que inspiraram Teresa de Ávila em sua conversão e vida monástica?

Cristiana Dobner - Deixo que a própria palavra de Teresa responda, no Livro da Vida fala que o seu pai tinha muitos livros de boa leitura: “Meu pai amava muito a leitura de bons livros, e ele tinha muitos livros em uma linguagem vernácula porque também seus filhos os leriam”. Particularmente amava muito “a leitura de bons livros”. Nas suas Constituições deixa também uma lista de livros que podem ser encontrados nos conventos: “A Priora busca bons livros, especialmente aqueles dos monges cartuchos,  Flos Sanctorum, Contemptus mundi,  Oratório dos religiosos, os livros de P. Luigi di Granada  e de Pietro di Alcantara ”.

Na sua época eram lidos prevalentemente livros de devoção, dentre os quais a Imitação de Cristo, a Vida Cristã do cartucho Ludovico di Sassonia, e as obras de Ugo di Balma , cartucho de Meyriat, Santa Brígida  e Santa Gertrudes . Em 1559 a famosa edição de livros proibidos pelo Inquisidor Fernando de Valdés  turvou muito Teresa, “Quando foi proibida a leitura de muitos livros em vernáculo lamentei muito porque alguns me recriavam, e não pude ler porque os permitidos estavam em latim”.

 

IHU On-Line - Diz-se que muitas dessas obras inspiradoras para Teresa inspiraram, igualmente, Inácio de Loyola  a formular os Exercícios Espirituais. Mais tarde, Teresa teve como confessor o padre jesuíta Francisco de Borja , que reassegurou a divina inspiração dos pensamentos da religiosa. A partir desses elementos, há alguma proximidade entre a espiritualidade inaciana e a de Teresa de Ávila?

Cristiana Dobner - São espiritualidades irmãs, muito próximas. O “magis” de Inácio ressoa em todas as obras de Teresa, o que sempre estimula a dedicação absoluta; a necessidade de um discernimento preciso e comprovado e a entrega de si a um guia espiritual ressoa como convites inacianos. A Humanidade de Cristo permeia os escritos de ambos e transborda de suas vidas.

 

IHU On-Line - Qual foi o impacto da leitura de Santo Agostinho  em sua formação e conversão?

Cristiana Dobner - Teresa escreve: “Perguntemos às criaturas, como ensina Santo Agostinho — acredito nas Meditações ou nas Confissões — de Quem são feitos, e nos vejamos a partir de estar lá como tolos, perdendo o tempo em atender aquilo que nos foi dado uma vez. Pode ser que desde o princípio o Senhor não volte a nos favorecer, não somente em um ano, nem sequer em muitos. Eles desconhecem o porquê, e nós não devemos procurar entender, não existindo motivos. Conhecendo que devemos servi-lo pelo caminho dos mandamentos e dos conselhos, caminhemos por esse com diligência pensando na vida e na morte de nosso Senhor e ao quanto devemos: o resto virá quando Ele desejar!

Aqueles que amam dessa forma são de grande utilidade porque tomam para si todas as angústias e deixam que os outros se beneficiem sem dor e sofrimento. Seus amigos se tornam de imediato perfeitos, porque acima de tudo, acreditem, ou se rompe a amizade — a menos que a amizade seja muito íntima — ou então que eles obtenham, como Santa Mônica  e Santo Agostinho, a graça de caminhar na mesma estrada e chegar juntos ao Senhor. Deus está em todo lugar. Mas onde está o rei está a sua corte. Por isso, onde está Deus, está o céu. Saibam sempre que onde se encontra a Majestade Divina está toda a sua glória.

Lembrem o que falou Santo Agostinho, que depois de ter procurado Deus em muitos lugares o encontrou finalmente dentro de si. Então, acreditam que seja de pouca importância para uma alma sujeita a distrações compreender essa verdade e conhecer que para falar com o seu Pai celestial e se alegrar de sua companhia não há necessidade de subir ao céu, nem de levantar a voz? Por mais baixo que se fale, Ele, que está sempre muito próximo, nos escuta sempre. E para procurá-lo não precisamos de asas porque basta que fiquemos sozinhos e o contemplemos em nós mesmos. E ainda assustado com a condescendência de tal Convidado, nos fale humildemente como Pai, possa contar as dores que sofre, possa pedir o remédio, reconhecendo-se indigna de ser chamada sua filha. Naquele tempo me deram as Confissões de Santo Agostinho, e acredito que pela providência divina, porque não somente não o havia procurado, mas também nem sabia da sua existência.

Sou muito devota de Santo Agostinho: primeiro porque o monastério no qual entrei para vida religiosa era da sua Ordem, e depois porque ele era um pecador. Os santos que foram pecadores e que Deus chamou ao seu serviço me consolavam muito, parecia que encontrava neles um apoio, na confiança de que o Senhor me perdoasse como os havia perdoado. Porém, repito, me desolava muito o fato de que esses, chamados por Deus uma vez, não o haviam mais abandonado, enquanto eu havia sido chamada por inúmeras vezes, e isso me afligia. Mas tomava novamente coragem, pensando no amor que Eles me traziam, porque jamais duvidei da sua misericórdia, embora de mim mesma, e muitas vezes.

Iniciando a leitura das “Confissões de Santo Agostinho”, me parecia ver ali a minha vida, e me aconselho muito com este glorioso santo. Quando alcancei a sua conversão e li a voz que ouvi no jardim, tive a nítida impressão de que estava ouvindo puramente eu, e por um longo tempo permaneci em prantos com a alma enormemente perturbada. Luta. Oh, a liberdade que me fazia dona de mim mesma! Surpreendo-me por ter sobrevivido a tanta angústia! Bendito seja Aquele que me mantém viva para me fazer sair da morte funesta!

Parece que a minha alma recebia de Deus grandes forças. Certamente ele escutava os meus gemidos e teve piedade de minhas lágrimas. 

Comecei a sentir crescer em mim o desejo de estar cada vez mais com Ele e de tirar dos meus olhos todos os maus acontecimentos, longe dos quais sentia imediatamente amar a Deus. Sentia de amá-Lo, me parece: mas não compreendia ainda como eu deveria, no que consistia amá-Lo verdadeiramente.”

 

IHU On-Line - A visão de Jesus marcou profundamente toda a trajetória de Teresa e motivou sua disposição a imitar a vida e os sofrimentos do Crucificado. Qual é o sentido dessa entrega e o que esse ato diz à humanidade de nosso tempo?

Cristiana Dobner - O desejo se baseia na semelhança, ou seja, em seguir a vida de Jesus para podê-Lo imitar o mais próximo possível. A humanidade atual não deve perder de vista o próprio Jesus Cristo, do contrário cai em uma vã devoção que leva para fora da estrada. Não aquele Jesus que desenhamos na nossa imaginação ou sensibilidade, mas aquele transmitido pelo Evangelho, aquele que quando pessoa viva caminhou sobre a terra da Palestina. Significa então reconhecer que pedras vivem no grande mistério da salvação oferecido a todos, se deixar transformar, perder o nosso egoísmo e sermos abertos ao Espírito que nos ensina a olhar o bem ao próximo, do que preferir ao nosso próprio bem.

 

IHU On-Line - Quais são os traços fundamentais do misticismo de Teresa de Ávila e em que ele segue inspirando a vida religiosa de suas seguidoras em nossos dias?

Cristiana Dobner - Teresa cativa porque não escreve um livro de teoria ou de uma vaga espiritualidade, mas narra a vida no Espírito. Quanto nela ocorreu de forma misteriosa. Hoje quem a segue deseja se deixar fascinar pelo que foi vivido assim longe de tudo quanto é virtual ou comercial na nossa sociedade. É um impulso gratuito de um mundo comprometido com a medida de ganhos, de eficiência.

Os fenômenos místicos, superabundantes na vida de Teresa, são seus peculiares e não imitáveis. Quanto ao invés deixou a todos nós “e o desejo de ver Deus, de procurá-Lo porque não temos experimentado procurar. Não para nos inclinarmos a um alegramento que feche em si, mas para nos lançarmos em uma estrada que Teresa chama “o verdadeiro caminho para o céu”, aquela da oração atravessando a nossa história no interior da história da humanidade e transformando aquelas forças escondidas que modificamos.

Teresa se questionava constantemente: Senhor, o que quer de mim? Devemos permanecer sempre nessa questão, habitar a Palavra e se deixar conduzir. A presença de Deus na vida de Teresa foi tangível da mesma forma que é tangível a sua resposta: uma dinâmica de amizade, tecida de louvor e adoração.

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