Edição 459 | 17 Novembro 2014

O não lugar do teólogo no debate bioético

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Andriolli Costa e Ricardo Machado | Tradução: Isaque Gomes Correa

Teologia Pública - Gaymon Bennett reflete sobre a relação entre ciência, tecnologia e religião, e o espaço da teologia nas discussões que envolvem a sociedade tecnocientífica

Imersa nos preceitos da tecnociência, a sociedade contemporânea tende a manifestar as dimensões da vida humana a partir do paradigma técnico. É assim com a economia, com a política, com as relações humanas e, até mesmo, com a religião. Em contrapartida, o teólogo Gaymon Bennett diverge deste ponto de vista, pois não compreende que a religião esteja subordinada à ciência. "As relações entre ciência, tecnologia e religião são estabelecidas nas práticas da vida diária", destaca ele, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E propõe: "É a partir destas práticas que devemos pensar mais seriamente nestas relações, mesmo que isso signifique pensar um pouco menos (separadamente) sobre 'ciência' e 'religião'".

Pensar a articulação entre estes dois discursos que se propõem autoconsistentes é um entrave que se manifesta mesmo no diálogo aberto entre as áreas. Bennett, que atua como consultor na área de teologia, afirma que quando os teólogos são convocados para as comissões de bioética, nunca é para atuarem verdadeiramente como teólogos. Cumprem, desta forma, papel apenas de “representantes de comunidades religiosas” ou indivíduos motivados pela busca pelo “sentido da vida”. Em verdade, ele salienta, tanto a comunidade científica quanto a religiosa e seus praticantes compartilham essências universais e atemporais. Promover a relação, e não o afastamento, pode se provar um caminho mais proveitoso para ambos.

Gaymon Bennett possui graduação e doutorado em Ética Teológica pela Graduate Theological Union, em Berkeley, nos Estados Unidos, e doutorado em Antropologia Cultural pela University of California. Foi diretor de Comunicações do curso de Ciência e Religião do Center for Theology and the Natural Sciences (CTNS) em Berkeley (EUA). Atua também como assistente de pesquisa do quadro de aconselhamento ético da Geron Corporation, que trabalha com pesquisa em células-tronco, na Califórnia, Estados Unidos. Bennett é professor de Religião, Ciência e Tecnologia na Faculty of Religious Studies, no Arizona (EUA). Junto com Ted Peters, é autor de Construindo pontes entre a ciência e a religião (São Paulo: Unesp, 2003). Com Paul Rabinow, escreveu Designing Human Practices: An Experiment with Synthetic Biology (Chicago: University Press, 2012).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em nossas sociedades predominantemente tecnocientíficas e tecnoculturais, como se dá a relação entre ciência e religião?

Gaymon Bennett – Posso, evidentemente, apenas falar sobre a situação nos Estados Unidos, embora suspeite que muitas de minhas impressões concernentes às relações entre ciência e religião — e creio que poderíamos acrescentar tecnologia — são características também em outras partes do mundo. É absolutamente importante que façamos uma distinção de, pelo menos, dois aspectos presentes na pergunta. Primeiro, precisamos pensar sobre as múltiplas relações entre ciência, religião e tecnologia e dentro delas. Com certeza não há somente uma forma em que estes domínios da vida são reunidos. Segundo, precisamos pensar sobre a que estamos nos referindo quando usamos os termos ciência e religião, ou ciência, religião e tecnologia. O grande historiador americano da filosofia Richard McKeon  costumava ensinar a seus alunos a seguinte equação: um termo = uma palavra + um conceito + um referente. Ao longo de diferentes épocas e lugares as palavras muitas vezes permanecem as mesmas. O que tais palavras significam e a que se referem é que muda consideravelmente. Penso que, hoje, uma das principais dificuldades em compreendermos como a ciência, a religião e a tecnologia se relacionam é que, muitas vezes, não especificamos o que queremos dizer por estes termos e ao que eles se referem no mundo.

Ciência, religião e tecnologia

Isso posto, acho que existem várias maneiras de se pensar sobre como a ciência, a religião e a tecnologia se relacionam atualmente. Um modo predominante é, em grande medida, o retórico. “Ciência” e “religião” estão sendo mobilizadas em discursos contestatórios como se fossem duas entidades separadas e autoconsistentes. Uma das razões pelas quais este modo retórico funciona tão bem é porque, evidentemente num certo nível, ciência e religião se separam e, na relação entre si, são um tanto autoconsistentes. Mas esta separação e autoconsistência relativa é mais uma questão de história institucional, pois todas as comunidades científicas ou praticantes de ciências, todas as comunidades religiosas ou seus praticantes, partilham de alguma essência universal ou atemporal! Grande parte do mundo moderno tardio se constituiu sob o signo de um imaginário político — podemos chamar de um imaginário secular — que tem, há muito, separado institucionalmente religião e ciência. Então, um modo predominante é esta separação retórica e institucional da religião e ciência como autoconsistentes e mais ou menos opostas.

Pode parecer deste primeiro ponto que, numa cultura predominantemente tecnocientífica, a religião encontra-se numa posição dominada em relação à ciência e tecnologia. Não me é óbvio que este seja o caso, ao menos nos Estados Unidos. Embora seja verdade que, nos níveis de política de Estado e de investimento econômico, a ciência e a tecnologia são dominantes em relação à religião. Este simplesmente é o caso que os futuros “salvíficos” nos quais estamos investindo são, em grande parte, tecnocientíficos. Eu trabalho em instituições, públicas e privadas, que recebem centenas de milhões de dólares em financiamento e investimento visando o apoio de um futuro tecnológico. Mas ainda é o caso nos EUA que as vidas de muitas e muitas pessoas se constituam ou por legados culturais ou mesmo por instituições ativas da religião. Hoje todos estamos familiarizados com o fato de que “a religião não foi embora”, como às vezes se diz. Portanto, mesmo onde se fala sobre a religião, a ciência e a tecnologia como autoconsistentes e coisas separadas, e até mesmo onde as instituições culturais, políticas e econômicas continuam dominadas pela ciência e tecnologia, não é o caso de que a religião tenha, consequentemente, definhado.

Mundo tecnocientífico

Uma última observação sobre este tema: uma terceira forma na qual as relações entre ciência, religião e tecnologia se estabelecem — e creio que, em muitos sentidos, esta seja a mais importante e mais interessante — é o simples fato de que as pessoas e instituições estão vivendo suas vidas em mundos saturados tanto pelos legados religiosos como pelos científicos. Se for o caso de que o mundo é predominantemente tecnocientífico, ou, se pudermos dizer de forma mais cuidadosa, que as formações tecnocientíficas chegaram para permear quase todas as dimensões de nossas vidas hoje, então é o caso, não obstante, de que as comunidades e os indivíduos religiosos, bem como as comunidades e pessoas impactadas pela religião, estão simplesmente diante da tarefa de viver a vida neste mundo permeado. Isso significa, dito de forma bem simples, que os jovens religiosos estão crescendo mediando suas vidas através das tecnologias digitais; que as pessoas, religiosas e não religiosas, estão consumindo comida artificialmente modificada. Significa também que os cientistas e as instituições científicas estão abrindo espaço num mundo marcado pela religião. Meus colegas cientistas em saúde pública global, por exemplo, estão perfeitamente cientes do fato de que quando se envolvem “na base”, em partes do mundo com as maiores disparidades na saúde, eles inevitavelmente precisam interagir e trabalhar, lado a lado, com instituições religiosas. Desse modo, penso ser crucial termos em mente que as relações entre ciência, tecnologia e religião sejam estabelecidas nas práticas da vida cotidiana. Creio que sejam nestas práticas diárias que precisamos pensar mais seriamente sobre tais relações, mesmo que isso acarrete pensar um pouco menos sobre “Ciência” e “Religião”.

 

IHU On-Line – Qual a contribuição da teologia para o debate bioético em torno das nanobiotecnologias?

Gaymon Bennett – Em anos recentes — e falo principalmente sobre a situação nos EUA —, as contribuições da teologia têm sido modestas no campo da biotecnologia avançada. Este fato não resulta de uma carência de mentes capacitadas ou de trabalho de qualidade! Diferentemente, trata-se de uma combinação daquilo que se pode chamar “posicionalidade” e micropolítica da verdade.

Aos teólogos lhes foi dado, basicamente, uma única e importante oportunidade de contribuírem seriamente para a bioética nos EUA, e esta oportunidade se deu através da participação deles em comissões federais de bioética, ou como membros das comissões ou especialistas (peritos) que dão seus testemunhos às comissões. Em ambos os casos, houve a tendência de colocar os teólogos ou como “representantes” das comunidades religiosas ou como indivíduos motivados por “questões de significado”. Nos dois casos, os teólogos, na medida em que são autorizados a participar no jogo da verdade sobre a natureza e o significado da biotecnologia, quase nunca lhes é permitido falar como tais — ao menos não de um jeito que possam ser levados a sério. No primeiro caso, como representantes das comunidades e das tradições, a eles se pediu para desempenharem um papel de especialistas sobre o que “estas pessoas” pensam. Nesse sentido, os teólogos serviram para representar as opiniões de um círculo eleitoral. No segundo caso, quando lhes pediram para falar como especialistas (peritos) sobre questões de significado, esperavam que eles “traduzissem” o discurso religioso num discurso filosófico “geral” vernacular que é, putativamente, mais neutro e, portanto, publicamente aceitável num discurso pluralista. Nesse sentido também, não me é óbvio que se está permitindo que os teólogos sejam a voz da teologia.

Hoje, este é um problema claramente sabido, e tem havido várias tentativas de confrontá-lo, tanto dentro do estudo do secularismo e da política quanto nas próprias comissões de bioética. Um exemplo deste último, que foi bastante marcante: o primeiro encontro da comissão de bioética do governo Obama  foi sobre a questão da “biologia sintética”  — isto é, a perspectiva de ser capaz de criar formas novas de vida através de projeto assistido por computador e construção automatizada. Durante o curso destas reuniões, um dos presentes sugeriu que as “preocupações religiosas” eram aquelas que lidam com a possibilidade de “violações intrínsecas da natureza”. Um dos membros da comissão perguntou a esta pessoa o que ela queria dizer com isso, tendo recebido a seguinte reposta: “Sou de uma tradição religiosa, moldada pelo movimento dos direitos civis nos EUA; a minha tradição preocupa-se profundamente com questões de justiça. Justiça não diz respeito apenas a violações intrínsecas da natureza”. O comentário foi simples e direto: era uma preocupação para com a definição cuidadosa dos termos. Mas no curso da reunião este comentário provou-se muito disruptivo positivamente. Disruptivo porque tornou acessível o diálogo sobre o que significa falar em nome da religião em ambientes políticos a respeito da supremacia da ciência. No decorrer da conversa, outro perito disse acreditar que “se deveria pedir às pessoas religiosas que querem falar sobre suas crenças para traduzirem suas tradições em termos que sejam parte de algo como uma razão universal”. Em resposta a este outro membro da comissão, Daniel Sumasy , médico e também padre franciscano, falou: “Para traduzir nesse sentido, eu teria que retirar de minha tradição toda a sua rica especificidade. Nesse caso, por que eu teria que falar afinal?” Este foi um momento importante para se mostrar a forma na qual as vozes religiosas são disciplinadas e policiadas em tais espaços bioéticos. Estes encontros não são novos, certamente, porém permanecem sendo oportunos.

Contribuições

Um último pensamento sobre este assunto: embora eu tenha dito pensar que os teólogos deram contribuições modestas ultimamente — e me incluo aqui! —, penso que existem muitos teólogos trabalhando em campos que poderíamos chamar de religião política ou política religiosa, os quais estão tendo um impacto substancial. Nestes estão incluídos os teólogos que trabalham como parte das organizações ativistas religiosas, que fazem parcerias com outras ONGs não religiosas para levantarem questões sobre as formas nas quais as novas biotecnologias estão não só aumentando as nossas capacidades técnicas, mas também intensificando as relações de poder explorador existentes, especialmente com relação ao capitalismo global e ao cuidado com o meio ambiente. No momento, penso que estas contribuições são limitadas em parte porque tais grupos tendem a pintar todas as tecnologias e organizações tecnológicas com as mesmas cores — não acho que as questões presentes nos biocombustíveis de segunda geração, por exemplo, sejam as mesmas que se apresentam no desenvolvimento de drogas ou na saúde pública global. Não obstante, estes ativistas, trabalhando em nome de suas tradições religiosas, são parte de um mecanismo vital de levantar questões e exigir respostas na medida em que estas potências biotécnicas se intensificam.

 

IHU On-Line – Qual o espaço da razão e da religião na constituição do ser humano nas sociedades tecnocientíficas impactadas pela nanobiotecnologia?

Gaymon Bennett – Esta é uma pergunta muito importante, e acho que é uma daquelas que não têm uma resposta óbvia. Parece haver dois modos predominantes de razão e religião com respeito à tecnociência e à questão do humano hoje. O primeiro poderíamos chamar de “biopolítico”, ainda que eu faça algumas restrições quanto a este termo. O segundo poderíamos chamar de “dignitário”. O que quero dizer por biopolítico é que a maioria das vozes religiosas nos diálogos sobre como a tecnociência está contribuindo para moldar os nossos futuros humanos torna-se na questão de como — ou se — a vida pode ser melhorada em termos biomédicos ou ambientais. A resposta conhecida dos intelectuais religiosos a questões sobre as novas tecnologias tende a incluir algo no sentido da ideia segundo a qual as novas tecnologias são aceitáveis até o ponto em que elas contribuem para melhorias na saúde — humana e ambiental. É neste sentido que penso que a razão religiosa está sendo indexada ao biopolítico: a ideia de que o que realmente importa sobre as novas tecnologias e, talvez, até mesmo sobre as novas formas tecnocientíficas, de forma mais ampla, é até que ponto elas contribuem ou não para a melhoria médica e ambiental da vida, junto da questão de quem são aqueles que têm suas vidas melhoradas e quem, por assim dizer, “se deixa morrer”.

Eu penso, na verdade, que este modo biopolítico de raciocínio é bem importante na atualidade. O termo biopolítica, em muitos círculos acadêmicos, refere-se às potências nefastas do mundo moderno — exploração e dominação sob o signo do neoliberalismo. Uma série de textos filosóficos bastante importantes, escritos cerca de uma década atrás, marcaram a biopolítica como a lógica da era dos impérios modernos ou dos campos modernos de extermínio. Compreendido propriamente, no entanto, penso que biopolítica aponta para a questão de até que ponto estamos investindo na melhoria dos padrões de saúde das pessoas e populações. Nesse sentido, trata-se simplesmente da lógica que visa o aumento da vida e não pode, por si, fazer perguntas tais como: vidas de quem? Sob quais condições? Quem está decidindo? Quem está sendo excluído? Quem está sendo desempoderado? E assim por diante. Os críticos da biopolítica estão muito certos em discernir que, em situações de biopolítica, há muitas e muitas pessoas sendo excluídas e exploradas. O problema, todavia, e onde eu penso que precisamos permanecer vigilantes sobre não desistir de contrariarmos os regimes biopolíticos, é que estes regimes estão, na verdade, sendo deixados para as cúpulas em muitas partes do mundo e em muitas comunidades. Nos EUA, assim como noutros lugares, as disparidades na área da saúde entre ricos e pobres são enormes e flagrantes. Nesta situação de disparidade, acho que os intelectuais religiosos e outros críticos religiosos deveriam continuar exigindo que a vida dos mais vulneráveis fosse melhorada.

Dignidade humana

Um segundo modo de raciocínio que, penso eu, as comunidades religiosas estão fomentando em relação à questão da tecnociência e aos nossos futuros humanos é o que, em minha obra, chamo de “dignitário” — um estilo de razão política e antropológica que se ancora na noção da dignidade humana. Os modos dignitários de raciocínio são aqueles ancorados numa visão de humano como, de alguma forma, intrinsecamente inviolável. Eles operam numa lógica que chamo de “archonic” [literalmente, arcônico] — formado a partir dos termos gregos para “primordial” e “juiz”. Uma forma arcônica de raciocínio sobre o humano é uma forma de pensar que afirma que os humanos são, primordialmente, definidos por uma dignidade intrínseca e que esta dignidade intrínseca pode ser usada para julgar o estado atual das coisas no mundo. Então, é importante compreender que uma noção arcônica ou intrínseca da dignidade humana é, na verdade, relativamente nova. Antes do desenvolvimento das Nações Unidas e, depois, no Concílio Vaticano II  na década de 1960, a noção de dignidade humana normalmente se referia ou a um aspecto particular ou característico dos seres humanos — de que eles eram racionais ou que foram criados por Deus, etc. — ou que a dignidade era algo alcançado através da posição na vida, tal como a unção dos reis, ou algo alcançado através do autodesenvolvimento (automelhoramento), tais como as noções renascentistas de cultivo das virtudes do tipo “divinas”. A política dignitária hoje, seja em ambiente religioso ou não religioso, tende, pelo contrário, a enxergar a dignidade humana como intrínseca e primordial — sempre já dada e que se autojustifica.

Modos Dignitários

Os modos dignitários de raciocínio tendem a estar articulados através do discurso dos direitos humanos, mas esta não é a única forma em que se manifestam. Tais modos também são articulados pelas comunidades religiosas em termos da forma como Deus quer que os humanos existam no mundo. Alguns dos documentos do Concílio Vaticano II são os mais articulados desta segunda forma de articular a política dignitária. Estes documentos caracterizam o mundo secular como incapaz de discernir as melhores formas da vida humana e da relacionalidade. Como consequência, os humanos seculares são incapazes de viver de tal forma que seria apropriado para a sua dignidade intrínseca. O papel da Igreja é o papel do discernimento pastoral: nas situações onde a cultura tecnocientífica está criando ou variando novos padrões de ser no mundo, a exigência pastoral é discernir quais os modos de viver que são consistentes com a dignidade e propor formas nas quais o poder poderia ser exercido com conformidade. Este tipo de discernimento pastoral chegou a marcar muitas das publicações subsequentes do Vaticano sobre as novas tecnologias e, mesmo, as novas formas tecnológicas de viver no mundo. Penso, no entanto, que os usos mais articulados destas políticas dignitárias pós-Vaticano II foram, por sua vez, articulados por aquilo que podemos chamar de Teologia da Libertação.  Há a impressão de que a Teologia da Libertação foi melhor em transformar as políticas dignitárias em práticas do que outros aspectos da Igreja Católica — que, de certa forma, faz paralelo entre a experiência das políticas dignitárias e os direitos humanos. A ONU, ao longo dos últimos 50 anos, esteve em menos condições de dar forma à prática dos direitos humanos do que muitas outras organizações não governamentais.

Em todo caso, penso que os modos biopolítico e dignitário de raciocínio se tornaram formas predominantes de relacionar a religião e a questão do humano e os meios sociais que estão sendo dominados pelas instituições, práticas e formas de pensar características da ciência e tecnologia. Acho que o lugar onde precisamos prestar atenção — e é aqui que o meu atual trabalho está focado — é em como as comunidades religiosas e outras estão retrabalhando e conectando os modos biopolítico e dignitário de raciocínio na luta para trazer à articulação uma racionalidade política e ética mais poderosa. Será fundamental assistir e ver — e, onde for apropriado, contribuir para — a formação destas racionalidades religiosas políticas híbridas.

 

IHU On-Line – Nesse contexto, como as novas formas de vida antropossintéticas restabelecem uma nova ecologia biológica na contemporaneidade?

Gaymon Bennett – A meu ver, esta é uma das perguntas mais interessantes. Num de seus últimos artigos, Michel Foucault  propôs que uma atitude moderna ou um ethos moderno fosse uma atitude em que deveríamos perguntar: que diferença faz o hoje em relação a ontem? Para responder a esta pergunta, Foucault sugeriu que precisamos cultivar práticas éticas nas quais nos envolvamos simuladamente numa interrogação crítica do mundo, mas que também sempre reconheçamos que pertencemos ao mundo que nós criticamente interrogamos. Isso significa, na visão do Foucault, que não temos direito de “menosprezar o presente”.

Penso que a máxima de Foucault de não menosprezarmos o presente continua sendo um dizer poderoso na atualidade. Ele nos coloca numa situação em que não podemos criticar o que está errado no mundo como se não participássemos nele e como se houvesse outro mundo, mais utópico, para o qual simplesmente poderíamos escapar. Uma atitude que interroga criticamente o presente mas que se recusa a menosprezá-lo é uma atitude bastante difícil — quanto mais compreendo os detalhes específicos de como e onde a ciência, a tecnologia e a religião estão interagindo no mundo, mais me percebo exposto às injustiças, mesquinharias e banalidades do mundo! Mas não é como seu eu ficasse à parte de todas estas coisas, independentemente de quanto eu tente não exacerbá-las.

A questão aqui, e a razão por que eu trago a máxima de Foucault em relação à sua pergunta, é que penso haver uma tendência ou para pensar da criação das novas ecologias biológicas no mundo como algo inevitável ou como algo intrinsecamente problemático. Acho que nenhuma das duas seja verdadeira. Na verdade, acho que estamos criando novas ecologias biológicas e não estou convencido de que isso seja necessariamente negativo em seu todo — embora, dadas as forças de dominação e exploração no mundo, seja provavelmente negativo na maior parte das vezes. Penso que precisamos lembrar de pensar o “bio”, presente no termo “biológico”, em seu rico sentido primeiramente sublinhado por Hannah Arendt . Assim como esta autora apontou, bio é um prefixo que se refere à vitalidade pura, frequentemente interpretada em relação à “biologia”. Mas ele também é um prefixo que se refere a uma vida vivida humanamente — como em “biografia”. Uma importante questão, hoje, que precisamos pensar a respeito e com a qual temos que lidar é a seguinte: dado que a criação de novos organismos vivos é uma prática humana atualmente, prática que está conectada a novas formas de vida científicas integradas nas novas tecnologias das instituições científicas, como devemos envolver criticamente o “logos” da “bios”? Quais são as ecologias humanas e não humanas que estão sendo criadas não só porque liberamos organismos geneticamente modificados ou novos geneticamente para dentro das paisagens ambientais existentes, mas também quais as ecologias humanas e não humanas que estão sendo criadas pelo simples fato de que vivemos num mundo onde uma grande maquinaria política e econômica está sendo posta em funcionamento para a criação destes organismos e para o investimento de nossas esperanças — e medos — nos mundos que estes empreendimentos podem criar? São estas ecologias mais amplas — ecologias de novas instituições e práticas — tanto quanto os novos organismos vivos ou sintéticos que, penso, precisarão ser o espaço para reflexão profunda e sustentada sobre as relações entre ciência, religião e tecnologia hoje. 

Leia mais...

- O lugar do antropos sintético. Entrevista com Paul Rabinow e Gaymon Bennett na edição 429 da IHU On-Line, de 15-10-2013.

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