Edição 459 | 17 Novembro 2014

Democracia e a prática da reciprocidade nos Direitos Humanos

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Ricardo Machado Machado | Colaborou: Fernanda Frizzo Bragato

O professor português Fernando Campos debate a problemática da defesa dos Direitos Humanos no Sul Global tendo como pano de fundo a globalização

Ainda que a ideia de democracia no Sul Global pressuponha dois âmbitos específicos, mas complementares — a democracia participativa e representativa —, há tensionamentos nesses modos de existir que não funcionam sem liberdade. “A democracia sem liberdade não é democracia; sem uma inclusão verdadeira, não há democracia; sem respeito pelos direitos humanos, não há democracia; sem os princípios básicos de cidadania, não há democracia”, pontua o professor e pesquisador Fernando Rui de Sousa Campos, em entrevista por e-mail à IHU On-Line

“Os desafios mais urgentes que se colocam à América Latina e à África passam, sem dúvida, pela resolução da injustiça social cada vez mais gritante, nomeadamente, o aumento do número de pessoas que passam fome, que não têm emprego, que não têm habitação, que não têm acesso à educação, que não têm acesso aos cuidados de saúde, que são vítimas de violência, de violação e de toda a espécie de exploração e exclusão social”, destaca o entrevistado. No que se refere à questão dos imigrantes, Fernando Campos sustenta que o principal desafio diz respeito ao tratamento com dignidade aos imigrantes.

Fernando Rui de Sousa Campos realizou sua formação acadêmica em Lisboa, sendo graduado em Ciência Política pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias – ULHT. Realizou mestrado em Estudos Africanos, Desenvolvimento Social e Econômico na África, no Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE. Doutorou-se em Ciência Política na ULHT, onde atualmente é professor. É autor, entre outras publicações, do livro As relações entre Portugal e São Tomé e Príncipe: Do passado colonial à Lusofonia (Lisboa: Edições Colibri, 2011).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como podemos compreender as complexidades no que diz respeito à democracia no Sul Global? De que ordem são os desafios à América Latina e à África?

Fernando Campos - Falar de democracia no Sul Global pressupõe a ideia da democracia que o povo tem, ou seja, como é vivida a democracia participativa e como esta se converte em democracia representativa. Penso que, na América Latina e em parte do Continente Africano, os dois polos da democracia referidos se concretizam. Contudo, chamo a atenção que, pelo fato de existirem muitos problemas sociais para os quais o poder político não “consegue” dar respostas, criando situações de injustiça social, pode contribuir para que a participação na vida política por parte dos cidadãos possa ser posta em causa por estes, devido à possível descrença na política e nos políticos. Por outro lado, a democracia sem liberdade não é democracia; sem uma inclusão verdadeira, não há democracia; sem respeito pelos direitos humanos, não há democracia; sem os princípios básicos de cidadania, não há democracia. Os desafios mais urgentes que se colocam à América Latina e à África passam, sem dúvida, pela resolução da injustiça social cada vez mais gritante, nomeadamente, o aumento do número de pessoas que passam fome, que não têm emprego, que não têm habitação — tendo em conta o aumento dos sem-abrigo —, que não têm acesso à educação, que não têm acesso aos cuidados de saúde, que são vítimas de violência, de violação e de toda a espécie de exploração e exclusão social.

Mas, há ainda a esperança de que a classe política aposte na promoção da dignidade humana, percebendo que o objetivo de qualquer Estado é o bem comum, e os políticos têm essa responsabilidade que lhes é confiada em democracia pelo povo. O exercício do poder político pressupõe, por parte de quem o exerce, uma estratégia, ou várias estratégias, que possam contribuir para que o exercício desse poder se possa concretizar da melhor forma.

 

IHU On-Line – Ao abordar a situação dos imigrantes, sobretudo os imigrantes que se deslocam do hemisfério Sul aos Estados Unidos e à Europa, quais são os principais desafios à garantia dos direitos humanos e civis? 

Fernando Campos - O principal desafio que se coloca aos imigrantes é serem tratados com dignidade. Enquanto seres humanos — não importa a latitude de partida ou de chegada —, devem ser tratados como pessoas e não como números, que preenchem estatísticas. Por outro lado, quem emigra, fá-lo majoritariamente, não por capricho, ou porque quer pura e simplesmente sair do seu país, da sua terra, das suas raízes. Não, as pessoas emigram porque vão em busca de uma vida com dignidade para si e para as suas famílias. Em período de crise econômica — como se vive atualmente em diversas partes do mundo, principalmente na Europa, mas também nos Estados Unidos, os imigrantes enfrentam cada vez mais ondas de xenofobia, exploração de “mão de obra barata”, que servem os interesses daqueles que tendo dinheiro e poder, não têm escrúpulos em aumentar o seu rendimento à custa da fragilidade humana. Há ainda um outro problema, também bastante sério, que envolve aqueles e aquelas que, iludidos por promessas de oportunidades nos EUA e na Europa, estão sujeitos a serem vítimas de tráfico, de exploração sexual e, em algumas situações, de “escravatura”. Os principais desafios passam por políticas que visem à integração dos imigrantes nas sociedades acolhedoras. Terem um emprego digno, participando na resolução dos problemas dessa mesma sociedade, através do pagamento de impostos, que se devem converter em receber, por parte dessas mesmas sociedades, os direitos que os naturais desses países recebem, como, por exemplo, o direito à habitação, à educação e aos cuidados de saúde. A tolerância tem aqui um papel importante para que os processos de inclusão se concretizem. Resumindo, uma inclusão plena só é possível se existir, por um lado, vontade política em acolher o imigrante e, por outro, abertura, tolerância e acolhimento por parte das populações acolhedoras. Não é tarefa fácil, basta que quem recebe o imigrante entenda que todos fazemos falta e todos necessitamos pôr em prática a reciprocidade.

 

IHU On-Line – Por que a questão das mulheres imigrantes é um aspecto particular e mais delicado de todo esse cenário da imigração?

Fernando Campos – As mulheres têm sido, ao longo da história, as maiores vítimas civilizacionais. O culto do machismo, considerando que o homem é um ser superior, porque é homem, fez com que muitas sociedades relegassem para segundo plano a mulher. Hoje, infelizmente, ainda assistimos a este tipo de mentalidade provinciana e tacanha, numa sociedade que se diz tecnologicamente globalizada, mas que, no que diz respeito a valores, está em alguns casos quase que na “idade da pedra”. Tudo isto para sublinhar que, no que à imigração diz respeito, as mulheres são mais vulneráveis do que os homens, são permeáveis a serem vítimas de ações que atentem contra a sua dignidade de mulher. São quem poderão estar sujeitas a situações de tráfico, ou, como algumas vezes acontece, são vítimas de promessas de emprego e, quando chegam aos países para onde vão, deparam-se com prostituição e outras atividades que não dignificam a mulher como ser humano.

 

IHU On-Line – No que diz respeito à garantia dos direitos civis e humanos a imigrantes, como a questão de gênero se torna um complicador ainda maior?

Fernando Campos - A questão do gênero é pertinente, uma vez que, apesar de tendencialmente se fazerem tentativas de se eliminar a discriminação pelo gênero, o fato é que a realidade nos mostra um cenário completamente diferente. As mulheres no acesso ao mercado de trabalho têm mais dificuldades do que os homens, bem como têm acesso a profissões menos valorizadas do que os homens. Quando desempenham profissões iguais às dos homens, recebem por vezes um ordenado menor, porque são mulheres. Também o fato de muitas mulheres quererem ser mães, do ponto de vista laboral, pode ser um problema, uma vez que, por vezes as empresas não aceitam mulheres para os seus quadros, em virtude de elas poderem vir a engravidar, ficarem de licença, ter de contratar quem as substitua e isso acarreta mais despesas para as empresas. Quanto aos “direitos civis”, a legislação aponta para uma equidade cada vez maior, mas falta ainda uma “revolução” de mentalidades. 

 

IHU On-Line – De que forma a relação do Norte global com o Sul Global impacta em pontos centrais no que diz respeito à garantia dos direitos humanos e civis dos países mais pobres?

Fernando Campos - Sendo a economia o motor de desenvolvimento das sociedades, torna-se por vezes um elemento “castrador” das mesmas, quando impede que todos participem do mesmo desenvolvimento, seja pelo país de origem, seja por religião, cor, gênero e outras situações. O mundo não pode funcionar como se fossem dois mundos: os com melhores recursos (Norte global) e os que se sujeitam ao que estes lhes querem oferecer. Não importa tanto a velocidade que cada país procura chegar à meta, o que é preciso é que todos cheguem. Ao estarmos perante um mundo moderno e global, a mobilidade e identidade são as duas faces da modernidade. Poder-se-ia perguntar por que razão os países desenvolvidos não têm a mesma ideia de globalização que os menos desenvolvidos? Porque esta, a globalização, não ameaça a sua identidade. De acordo com o Cardeal Óscar Maradiaga , de Honduras, “este mundo globalizado nos entrega, por um lado, a globalização da pobreza, e por outro, a maior privatização da riqueza”. Há, sem dúvida alguma, um problema na distribuição dos recursos.

 

IHU On-Line – De que maneira os processos de globalização aprofundaram as desigualdades sociais? Em que medida as imigrações em larga escala também são tributárias desta lógica?

Fernando Campos - Os processos de globalização aprofundam as desigualdades sociais, na medida em que a globalização econômica aproxima os países mais ricos uns dos outros, deixando de lado os países mais pobres. È certo que convém aos países mais ricos que haja uma dependência da parte dos países pobres, na perspectiva de existir uma certa hegemonia global, o que leva, por parte dos designados países do Norte, à existência de uma prepotência, e uma submissão por parte dos países do Sul. Um exemplo é o que se passa na União Europeia, com os países mais ricos (por exemplo, a Alemanha) a ditarem as regras do jogo aos países mais pobres.

 

IHU On-Line – De que forma o modelo de globalização instaurado há duas décadas e meia relegou as trocas sociais e culturais a um âmbito muito pequeno em comparação à hegemonização de um determinado modelo econômico global? 

Fernando Campos - É evidente que a globalização permitiu que os povos se aproximassem, que houvesse um encontro de culturas com o enriquecimento que isso trouxe para os povos. Por outro lado, a revolução tecnológica que a globalização proporcionou, teve e tem um impacto decisivo nessa aproximação. Contudo, e como já se referiu, o modelo econômico neoliberal que privilegia o ter em detrimento do ser tem sido motor da promoção de desigualdades, as pessoas valem pelo que têm, pelo título, pela posição social, e não pelo que são enquanto pessoas, o que pode pôr em causa os direitos humanos. Uma das pessoas que tem tentado desmontar este estado de coisas é Joseph Stiglitz , Prêmio Nobel de Economia 2001.

 

IHU On-Line – Considerando todo esse teatro político internacional, qual o papel da América Latina e da África na construção de alternativas democráticas mais compatíveis com os desafios do século XXI?

Fernando Campos – A América Latina e a África serão aquilo que os latino-americanos e os africanos quiserem que seja. Contudo, convém dizer que América Latina e África apresentam contrastes, incertezas e problemas sociais. No entanto, existe algo muito importante que não pode, nem deve ser esquecido — os seus povos. A generosidade dos povos latino-americanos e africanos, que, apesar dos constrangimentos sociais, aqui e acolá, nomeadamente, a violação dos direitos humanos — violência, violência doméstica, tráfico de pessoas, problemas na educação, nos cuidados de saúde, conseguir empregos e outros —, como já se referiu, é uma das características identitárias principais. O desafio maior para a democracia no século XXI passa pela garantia de justiça social. A democracia, quer na América Latina, quer na África, é o palco ideal para que, na perspectiva da Revolução Francesa , se consiga pôr em ação a “liberdade, igualdade e fraternidade” e, nesta perspectiva, se possa exercer os princípios da cidadania. 

 

IHU On-Line – Quais são os desafios para a construção de uma cultura de paz e justiça? Qual a contribuição do Sul global nesse contexto?

Fernando Campos - Pelo que foi dito até aqui, a não satisfação das necessidades básicas das populações pode pôr em causa a construção da paz e da justiça. Enquanto existirem seres humanos com fome, excluídos, marginalizados pela sociedade, fica comprometida a construção “de uma cultura de paz e justiça”. Existem exemplos na América Latina, África e Europa. Faço minhas as palavras do Papa Francisco, “enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais”.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Fernando Campos - Gostaria de acrescentar um dos grandes atentados aos Direitos Humanos neste princípio do século XXI — os radicalismos pseudorreligiosos. Este “novo” problema não ignora os já descritos, pelo contrário, os acentua. Torna-se necessário que os povos promovam a solidariedade autêntica e que todos se sintam convocados e percebam que é necessário “comprometer-se radicalmente com o bem de cada um no bem comum de todos” , para que a democracia, a tolerância e a cidadania na América Latina, na África e no resto do Mundo sejam motores para a construção de plataformas de Paz e de Justiça, à luz dos Direitos Humanos.

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