Edição 458 | 10 Novembro 2014

A complexa relação entre jesuítas, indígenas e africanos ressignificada pela historiografia contemporânea

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Ricardo Machado e Andriolli Costa

Professora e pesquisadora Eunícia B. Fernandes debate os processos de compreensão históricos da Companhia de Jesus na América Latina a partir de uma perspectiva menos generalista


A professora e pesquisadora Eunícia B. Fernandes é cuidadosa com as palavras. Ao responder sobre a história dos jesuítas na América Latina tenta levar em conta as complexidade que estão em jogo e foge de generalizações, que na opinião dela não ajudam a compreender os contextos em análise. “A compreensão contemporânea abre espaço para as fragilidades e diferenças entre esses personagens colonizadores e, sem totalizá-los, permite identificar uns mais comprometidos com o Reino enquanto outros não. Permite ver os portugueses que andavam como os indígenas no meio do sertão e que, em alguns casos, sequer sabiam falar o português, apenas a língua geral”, exemplifica Eunícia, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

“Quando investigamos historicamente aquelas experiências pretéritas e nos aproximamos daqueles homens passamos a ver que os jesuítas defendiam coisas diferentes – Grã discordava de Nóbrega quanto à confissão com intérprete -, passamos a ver jesuítas adotando práticas nativas na sua vida diária – como o andar descalço nas matas”, aponta a entrevistada. Com relação ao esvaziamento religioso durante o processo moderno de secularização, Eunícia sustenta: “Durante os séculos XVI e XVII, apesar de muitos conflitos com os colonos, a Companhia de Jesus teve um massivo apoio da Coroa em suas decisões, garantindo-lhe privilégios de impostos. Já no XVIII o apoio não é da mesma natureza e os jesuítas são mesmo proibidos de entrarem na região das minas recém-descobertas, apesar da existência de muitos contingentes indígenas. Não podemos devotar apenas à secularização tal medida da Coroa, mas fato é que o Estado compreendia a si mesmo de uma maneira distinta e isso sim resulta desse processo”, argumenta.

Eunícia Barros Barcelos Fernandes é graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, realizou mestrado em Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – Puc/Rio e doutourou-se em História Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Atualmente é professora na Puc-Rio e autora de diversos artigos e livros dos quais destacamos A Companhia de Jesus na América (Rio de Janeiro: Contra Capa, 2013).

A professora coordena o Seminário temático simultâneo, A Companhia de Jesus e os índios no século XVIII: experiências num processo de secularização, na Unisinos, na Sala 1F102, na Unisinos. O evento, que se estende do dia 11 ao 13 de novembro, das 09h às 12h, faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU - Companhia de Jesus. Da supressão à restauração. A programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014. 

Confira  entrevista. 

 

IHU On-Line – Até que ponto a relação entre jesuítas e indígenas se estabeleceu a partir de um processo de colonização, digamos assim, vertical e até que ponto foi marcado por práticas híbridas de interculturalidade?

Eunícia B. Fernandes - A questão aponta dois pressupostos distintos que, esclarecidos, podem ajudar a compreender a experiência entre jesuítas e indígenas na colonização da América. O primeiro pressuposto diz respeito a uma compreensão iluminista de indivíduo e de totalidade, numa suposição de controle dos inícios, meios e fins. O segundo pressuposto diz respeito a uma compreensão contemporânea, onde o indivíduo é fragmentado e historicamente construído. Vejamos como tais princípios interferem na compreensão do verbo colonizar.

A compreensão iluminista quando olha para os documentos sobre o Reino de Portugal, por exemplo, o vê como algo indiviso e uno. Ao identificar em portugueses ou colonizadores, tal compreensão não deixa espaço para as diferenças e fissuras existentes nessa suposta unidade, pois apaga as diferenças entre cristãos e cristãos novos, entres aristocratas e camponeses e, de apagamento em apagamento, cria a imagem de um colonizador fictício que responde aos comandos régios sem dúvidas, sem questionamento ou sem interesses particulares. Já a compreensão contemporânea abre espaço para as fragilidades e diferenças entre esses personagens colonizadores e, sem totalizá-los, permite identificar uns mais comprometidos com o Reino enquanto outros não.  Permite ver os portugueses que andavam como os indígenas no meio do sertão e que, em alguns casos, sequer sabiam falar o português, apenas a língua geral.

Sem dúvida, o verbo colonizar supõe uma ação de domínio e, portanto, obrigatoriamente, uma ação vertical - como menciona a pergunta. Não há como ocultar que os inacianos vieram para a América para tentar fazer com que os indígenas deixassem de ser indígenas e passassem a ser outra coisa e que o faziam certos da verdade de suas intenções e ações. Não há como negar que Nóbrega,  quando formalizou o modelo dos aldeamentos numa carta enviada ao seu superior indicava a necessidade de subjugar os nativos e que isso deveria ser feito pela Coroa, ou seja, pela força das armas. Mas...

Dentro das intenções quais se transformaram em ações? E das ações, quais saíram como planejadas? E com o convívio, quem dominava o que? Quando investigamos HISTORICAMENTE aquelas experiências pretéritas e nos aproximamos daqueles homens passamos a ver que os jesuítas defendiam coisas diferentes – Grã discordava de Nóbrega quanto à confissão com intérprete -, passamos a ver jesuítas adotando práticas nativas na sua vida diária – como o andar descalço nas matas -, passamos até a ver que os muitos indígenas que aparecem como moradores dos aldeamentos criados por jesuítas não eram moradores fixos, mas que iam e vinham e faziam daquele espaço outra coisa que não o imaginado pelos padres.

A pergunta de vocês é “até que ponto”. Essa é uma pergunta que a historiografia nunca pode responder, pois não há uma única grade de medida tanto para os personagens que viveram aquela mesma experiência – cada um pode definir marcas diferentes para esse ‘ponto’ -, como para os investigadores que fazem a pergunta sobre os documentos, afinal, no caso citado, eu posso olhar para todos os registros daquela época sem ver os índios – como a História fez durante séculos – ou não.

 

IHU On-Line – De que forma as trocas entre os povos originários e os jesuítas não se reduziram aos aspectos religiosos, mas, sim, a uma troca cultural mais ampla com as alteridades ameríndias e africana?

Eunícia B. Fernandes - O propósito dos inacianos era catequizar, porém, de imediato devemos identificar que para que o resultado da devoção indígena ocorresse as estratégias utilizadas ultrapassaram em muito o ensino regular do evangelho. A formação dos aldeamentos e o convívio diário entre religiosos e indígenas definia – de per si – trocas as mais variadas, pois da subsistência até ao fato dos jesuítas estarem aqui através do Padroado português e deverem retorno à Coroa – o que implicava, por exemplo na exigência régia do ensinar o português (as escolas de ler e escrever) – os contatos não se restringiam ao âmbito religioso estrito senso.

E sobre as trocas com outros agentes sociais é preciso pontuar o que foi destacado na primeira questão: os contextos e a capacidade dos personagens estarem continuamente se fazendo. O que isso significa? Significa ver que a escravidão, diferente do que dizia a lei, não foi exclusividade para africanos ou afrodescendentes e que tal situação histórica unia negros da terra e negros da Guiné, tanto dentro de latifúndios como nos espaços de fuga, como nos quilombos.

Dizer de troca é dizer de experiência, de proximidade e isso não faltou no solo americano para tais grupos identificados na questão.

 

IHU On-Line – Em um contexto de hibridização cultural, que particularidades referentes aos idiomas se pode apontar? Como funcionavam e do que se tratavam as “línguas gerais”?

Eunícia B. Fernandes - A premissa da primeira questão pode ser útil aqui também. Quando se fala em colonização, na ação dos jesuítas com as escolas de ler e escrever o português e mesmo da exigência da Coroa quanto a isso, muitas vezes se esquece que a normatização da língua portuguesa ainda estava em processo, assim como a das outras línguas europeias que hoje conhecemos. 

Meus alunos, pesquisadores iniciantes, quando começam a trabalhar com a documentação sempre me perguntam “Mas professora, isso é português ou espanhol? É tudo diferente!”. A sensibilidade imediata, entretanto, não é acessada por aqueles que não trabalham com os documentos e quando ouvem sobre o tema das línguas já imaginam um colonizador falando o português contemporâneo, com uma gramaticalização completa e distinta e que se colocava no papel de gramaticalizar as línguas nativas. Não podemos ver bem assim....

Em primeiro lugar, ao lidar com o tema devemos ter clareza de que as línguas são elementos vivos, em permanente transformação e sem o controle absoluto de quem quer seja. E tal vivacidade transformativa se opera na experiência dos seres humanos que criam neologismos para situações, sensações, pensamentos novos, alteram significados de palavras antigas, brincam com as palavras de outros idiomas, apropriando-se delas. E a comunicação vai se fazendo em meio a toda essa confusão. E o contato entre grupos com práticas e línguas distintas exibe com maior vigor essa dinâmica, mas não devemos nos enganar, pois ela existe dentro de comunidades com a mesma língua.

O que isso significa? Que homens em contato que buscavam se comunicar certamente marcaram as referências linguísticas uns dos outros. As apropriações de palavras e modos de dizer indígenas e africanos por parte dos portugueses já foram pauta de muitos trabalhos desde Gilberto Freyre  e os atuais diálogos entre linguistas e historiadores enriquecem sobremaneira nossa capacidade de ver e pensar como aqueles homens do passado viviam e se relacionavam. Certamente ocorreu o mesmo com as línguas nativas de América, África e Ásia, pois do nome de novos objetos à identificação de novas situações e sujeitos – como os mestiços derivados desses encontros – palavras que inexistiam em seus vocabulários foram incorporadas.

Mas falamos de uma situação colonial, de uma intenção de transformação das terras e das gentes: a América num outro Portugal, os nativos em vassalos cristãos e fiéis. Deste modo houve estratégias para garantir a comunicação e, nesse ponto, os jesuítas se destacaram. Sua formação refinada e sua intenção deliberada de conhecer o outro para evangelizar, garantiu um esforço de sistematização de línguas nativas e a criação de gramáticas e dicionários que nortearam os adventícios em seu contato.

O fato de existirem muitas comunidades e etnias indígenas e ser localizada uma matriz comum entre aqueles que habitavam a costa garantiu que, num primeiro momento, tal sistematização permitisse a comunicação mais ampla e, através desse aprendizado, houve mesmo a normatização de línguas ao ponto dessa matriz ser levada para a região amazônica para ser ensinada aos indígenas de outras matrizes linguísticas e garantir o entendimento. 

Há, portanto, a criação de uma língua franca: uma ordenação europeia de línguas nativas com intuito colonizador que passa a mediar o contato entre europeus e nativos.

 

IHU On-Line – Como podemos explicar essas experiências a partir da ideia de secularização?

Eunícia B. Fernandes - A experiência da troca acontece tanto num mundo embebido pela religiosidade como em um mundo secularizado. O avanço da descrença e a preponderância do Estado e da racionalidade na direção das escolhas podem atingir os valores e as escolhas que os homens fazem nos contextos que vivem, mas é a investigação caso a caso que vai iluminar em conjunto o que poderia estar ocorrendo em termos de transformação no período. 

Não temos um trabalho que tenha se detido nessa perspectiva mais ampla para sugerir uma resposta, porém, há dados considerados até aqui que podem ser úteis. A primeira coisa é observar que a sensibilidade secular não se instaura de uma só vez e não deixa de conviver/ dialogar com sensibilidades religiosas, portanto, é preciso tomar cuidado com aquelas aspirações de criar unidades ou totalidades que explicam tudo e dizem no século XVI foi assim e no XVIII foi diferente: o historiador Fernand Braudel  alertou há décadas que os historiadores trabalham com vários ritmos de temporalidade e na longa duração observamos sentidos que persistem atravessando as mudanças.

Um segundo ponto seria não confundir a experiência vivida pelos agentes com as interpretações que hoje delas fazemos, assim, devemos ter em conta que a pergunta SUGERE que estejamos vendo AS MESMAS experiências com novos óculos, ou seja, indígenas e jesuítas viviam a mesma coisa e agora vejamos isso sob o ponto de vista da secularização. Não é isso. O processo de esvaziamento da resposta religiosa sobre o mundo vai mudar as ações, então não são as mesmas experiências. De um modo bem pragmático: durante os séculos XVI e XVII, apesar de muitos conflitos com os colonos, a Companhia de Jesus teve um massivo apoio da Coroa em suas decisões, garantindo-lhe privilégios de impostos. Já no XVIII o apoio não é da mesma natureza e os jesuítas são mesmo proibidos de entrarem na região das minas recém-descobertas, apesar da existência de muitos contingentes indígenas. Não podemos devotar apenas à secularização tal medida da Coroa, longe de mim fazer tal afirmação, mas fato é que o Estado compreendia a si mesmo de uma maneira distinta e isso sim resulta desse processo.

O exemplo mais radical dessa transformação no eixo das relações estabelecidas entre jesuítas e indígenas é o Diretório dos Índios. Legislação destinada aos indígenas do Pará e Maranhão em 1757, mas que depois validou-se no Estado do Brasil, o Diretório secularizou o trato dos indígenas, retirando dos jesuítas tal responsabilidade. 

 

IHU On-Line – De que maneira os documentos do século XVIII, que relatam a compra de escravas africanas por jesuítas para casamentos com indígenas a fim de aumentar a mão de obra, tensionam a ideia geral que a Companhia defendia a liberdade dos índios?

Eunícia B. Fernandes - Não precisamos chegar ao século XVIII para questionar a defesa inconteste da liberdade dos índios advogada pelos inacianos. Um dos problemas de olharmos para a história na visada da unidade identitária iluminista, como mencionei na primeira questão, é exatamente criar generalizações que sedimentam estereótipos que engessam o conhecimento histórico.

Os jesuítas, como poucos nos séculos XVI e XVII, eram homens de ideias, homens instruídos acima da média e comprometidos com o mundo que viviam, deste modo, supor que existiam aqueles que – num quadro de validade da escravidão - questionassem a liberdade dos índios não seria nenhum despropósito. Eles seriam homens de seu tempo. Muito mais complicado é lidar com o mito e querer que os registros da história o confirmem, apagando os homens e as experiências por trás do mito.

A Companhia de Jesus foi uma instituição que agiu vigorosamente em prol da liberdade dos índios e a existência de procuradores de índios que foram às Coroas portuguesa e espanhola ou ao papa - como António Ruiz de Montoya  ou Fernando Dias Taño - comprovam isso num amplo reconhecimento. Houve também outros que, sem a mesma notoriedade e no cotidiano de suas vidas, defenderam intrepidamente indígenas de colonos ávidos por fazerem deles escravos. Mas o ponto não é esse, ou melhor, a questão não se encerra aí. Há muitas outras. Há o fato dos religiosos precisarem de trabalhadores nas suas fazendas e, antes disso, nos próprios colégios. Há o fato de indígenas e aldeamentos desgastarem os religiosos junto aos colonos, sendo eternos motivos de disputas, e os jesuítas serem religiosos também para os colonos. Há o fato das vocações e habilidades de cada um e, entre os inacianos, não existirem exclusivamente missionários, desejosos do encontro com a alteridade. Há as variáveis e contingências momentâneas de uma vida nada simples.

Nóbrega queria catequizar, mas da crença de que os índios aprenderiam o ABC em dois dias veio o conhecimento das dificuldades de um batismo que não sanava os maus costumes e receio/cuidado com as ações de resistência como a morte do bispo Sardinha.  A defesa de que os índios deveriam ser primeiro subjugados – como já mencionei – não fora algo previsto ou advogado ao início, mas o constrangimento dos nativos à força passou a ser uma realidade para aquele jesuíta que sempre os defendeu.

Os estudos exibem que as fazendas jesuíticas tiveram um singular equilíbrio entre homens e mulheres, quando comparadas a outras unidades produtivas, assim como apresentam registros de casamentos e filhos, consolidando o ideal da família católica também de forma única. Mas eram unidades produtivas. Era necessário mão-de-obra. A estratégia de compra de escravas para casamento com índios garantiria uma prole escrava sem ‘escravizar’ os indígenas, mas mantendo-os nas fazendas. No mínimo, uma solução inteligente diante da situação da escravidão. 

Não acredito que a História seja um tribunal, não cabendo, portanto, o papel de culpar ou absolver, de dizer que os jesuítas foram melhores ou piores do que os outros homens de sua época. Acredito, ao contrário, que a ela caiba acessar os registros das experiências e através deles buscar compreender o que eles dizem, os significados que construíram para os seus contemporâneos, os valores que carregam, os seus porquês. Deste modo, a TENSÃO relatada na pergunta se esvazia. Ela só existe quando fechamos os olhos aos homens que viveram um certo contexto e acreditamos em mitos.

 

IHU On-Line – De que maneira a Companhia de Jesus moldou, de certa forma, o surgimento da cidade do Rio de Janeiro desde a segunda metade do século XVI? Que impactos trouxe à cultura fluminense da época?

Eunícia B. Fernandes - Minhas pesquisas apontam para uma atuação fundamental da Companhia de Jesus e dos índios na formação da capitania do Rio de Janeiro. Muito mais do que o momento de criação da cidade, onde os dois grupos citados tiveram papel preponderante, a construção dos limites do que se transformou no que hoje conhecemos como Rio de Janeiro em muito se forjou pela constituição de aldeamentos e fazendas jesuíticas, além dos processos de descimentos de índios efetuados pelos religiosos.

A costa fluminense era espaço permanentemente visado na navegação do XVI ao XVIII por muitos motivos: Cabo Frio era ponto de referência nas navegações, suas baías e enseadas permitiam a ancoragem de grandes navios e era um acesso conhecido para a região do Rio da Prata, isso tudo sem contar com o comércio do pau-brasil ou com a possibilidade de ataque aos navios lusos, haja vista Parati ser um dos portos de escoamento das minas.

Citei dados de períodos diferentes, outros de longa duração, mas que definem o risco que a Coroa portuguesa identificava levando-a a mobilizar-se seja na distribuição de sesmarias para efetiva ocupação lusa, na construção de fortalezas ou no armamento de contingentes indígenas responsáveis pela defesa. Em todos os casos, a intermediação dos religiosos da Companhia foi fundamental: na primeira, diretamente, ao assumir terras e a responsabilidade sobre elas para a defesa da Coroa portuguesa, nos outros, como responsáveis pelos índios – seja como mão-de-obra construtora ou como guerreiros – cabia a ela tanto a arregimentação como o controle imediato do envio destas forças.

No caso específico da cidade, que é bem menor do que a capitania, outros já exibiram a centralidade das ordens religiosas no processo de urbanização, para além do controle da formação – o colégio principal dos colonos era o dos jesuítas – e das consciências, afinal, além do ler e escrever, do cuidado na doença com a botica do colégio, as ações religiosas eram reguladoras numa sociedade altamente católica.

Quanto a impacto sobre a ‘cultura fluminense’, creio que, primeiramente, devamos ter cuidado no uso da expressão, precisando melhor o que é essa unidade imaginada e o que se está nomeando de cultura. Quanto à unidade da capitania, ela existia para alguns agentes, certamente a Coroa e seus representantes, mas mesmo para os jesuítas é preciso ter cuidado, pois se sua malha de colégio, aldeamento e fazendas garantia uma compreensão alargada do território, fato é que sua área de atuação ultrapassava a capitania, haja vista a casa e depois colégio do Espírito Santo ter sido durante muito tempo subordinada ao colégio do Rio de Janeiro, ou seja, quando os próprios jesuítas pensavam seu recorte espacial a partir do Colégio de São Sebastião, essa suposta unidade fluminense não existia. Quiçá para índios ou africanos.

 

IHU On-Line – Como a historiografia atual atualiza a perspectiva histórico-cultural da relação entre a Companhia de Jesus e os índios no Brasil do século XVIII? Por que o olhar se complexificou?

Eunícia B. Fernandes - Muita coisa mudou no conhecimento histórico – na teoria, na metodologia – mas muita coisa mudou na história que nós vivemos. Inclusive é boa oportunidade para reforçar que são dados totalmente interligados, afinal os historiadores são homens envolvidos nas suas sociedades e estimulados/municiados por elas para fazer seu trabalho.

Ao longo do século XX várias reflexões (não apenas para a História) expuseram que a produção do conhecimento humano é uma construção e subjetiva, essa percepção que retira a ilusão da objetividade absoluta foi fundamental no repensar das fontes e dos procedimentos. Além disso, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial a diversidade passou a ser valor preponderante, permitindo lugar social para grupos silenciados e, no bojo, para as diferenças étnicas. De modo bastante pragmático, o desenvolvimento das reflexões no campo da Antropologia caminhou, por exemplo, par e passo com a mobilização e organização social de grupos indígenas em prol de direito nos contextos contemporâneos.

Quando o historiador tem acesso a mais registros, a vozes múltiplas sobre a experiência, a complexidade é uma derivada, pois ele deve desenvolver mecanismos de pensar e lidar com isso.

Tal dinâmica ganhou, no Brasil, um que a mais, pois a historiografia não havia se detido de modo sistemático na história sobre os indígenas, portanto, as renovações da história cultural iniciadas na década 80 do século passado que muito fomentaram os estudos coloniais e, no caso, aqueles sobre as relações entre a Companhia de Jesus e os indígenas, ajudaram a criar e a sedimentar um campo de pesquisa fundamental para a reflexão das questões sociais brasileiras.

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