Edição 458 | 10 Novembro 2014

O Barroco que Habla Guarani. Cultura, arte e arquitetura jesuítica nas Américas

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Andriolli Costa

Jacqueline Ahlert resgata as características e peculiaridades de uma cultura material única e amálgama, que não pode ser reduzida a um “barroco missioneiro”

Da relação entre o jesuíta europeu e os povos nativos das Américas, surge uma cultura híbrida. Um "amálgama entre os acervos culturais e tecnológicos", como propõe a historiadora Jacqueline Ahlert. De artesanatos em couro a instrumentos musicais, de esculturas barrocas a sinos e castiçais, era possível dizer que "os pueblos missioneiros converteram-se em grandes centros culturais, com artífices especializados nas mais diversas áreas — em alguns aspectos mais atualizados em referência à Europa do que os centros urbanos circunvizinhos". 

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a professora ressalta que a arte, “intrínseca ao âmbito litúrgico-cultural dos loyolistas, foi utilizada como instrumento didático mediador da compreensão dos preceitos da religião católica romana por parte dos indígenas”. No entanto, ela não agia sozinha. A retórica, o calendário litúrgico, as festividades, a organização social e econômica, o urbanismo também eram elementos que corroboravam para a catequese indígena. 

Para ela, não é possível dimensionar os “prejuízos culturais” decorrentes da expulsão dos jesuítas das Américas — e de sua posterior supressão. Isso porque os “danos infringidos aos bens culturais provenientes da experiência missional continuam ocorrendo”. Uma perda histórica, pois este material, ainda que compartilhando características do barroco europeu, era fundamentalmente único e resultado dos processos híbridos. “Se as imagens são um visível-falar, as madeiras hablaban guaraní”, destaca ela.

Jacqueline Ahlert é graduada em Artes Plásticas, com habilitação em Educação Artística pela Universidade de Passo Fundo - UPF, onde também fez mestrado em História. Na Pontifícia Universidade Católica – PUC-RS concluiu doutorado em História Ibero-americana. Atualmente é professora da UPF e coordenadora da Especialização em Artes Visuais: fotografia, vídeo e outras tecnologias. É pesquisadora do Programa de Pesquisas Interdisciplinares da Região Platina Oriental, que recebe apoio do CNPq e da PUC-RS, e pesquisadora-responsável pelo inventário do acervo de estatuária missioneira e colonial, do Núcleo de Documentação Histórica do Mestrado em História - PPGH-UPF. 

A professora coordena o Seminário temático simultâneo Cultura material, arte e arquitetura jesuítica nas Américas, na Unisinos, na Sala 1F103. O evento, que se estende de 11 a 13 de novembro, das 9h às 12h, faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU - Companhia de Jesus. Da supressão à restauração. A programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quais foram as grandes contribuições dos jesuítas para a cultura material, as artes e a arquitetura nas Américas?

Jacqueline Ahlert - Os jesuítas, ao proporem a cristianização aos indígenas americanos, seja nas Missões de Maynas, Moxos, Chiquitos ou da Paracuária, acabaram também por possibilitar a formação de um amálgama entre os acervos culturais e tecnológicos dessas sociedades e os cristão-europeus. Os pueblos missioneiros converteram-se, sobretudo no decorrer do século XVIII, em grandes centros culturais, com artífices especializados nas mais diversas áreas, em alguns aspectos mais atualizados em referência à Europa do que os centros urbanos circunvizinhos. Nestes havia oficinas de onde saíam os mais variados artefatos, de louças a instrumentos musicais, de selas para os cavalos a oratórios, esculturas e pinturas, de sinos a castiçais. 

Enfim, quase tudo daquilo que requeria o povoado e as demandas de comercialização. O número de oficineiros variava conforme o seu tamanho, podendo ultrapassar os quarenta. Toda essa produção foi possível pela conjugação dos acervos e conhecimentos, os indígenas dominavam o meio, os jesuítas introduziram novas técnicas; estas foram adaptadas ao novo contexto, técnicas nativas se mantiveram, e assim sucessivamente.

Deste modo, afora a produção para demanda interna, a comercialização de instrumentos musicais e obras sacras pode ser indicativa das contribuições da organização jesuítica. Entretanto, para além dos remanescentes arquitetônicos e escultóricos vinculados às doutrinas — alguns transformados em Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO —, o conhecimento que os indígenas adquiriram estendeu-se por paragens mais vastas que aquelas do domínio das Missões. Durante parte do século XVIII e no século XIX, os missioneiros foram considerados a mão de obra especializada de grande parte da América Meridional, por exemplo. 

 

IHU On-Line – De que forma a arte foi utilizada como instrumento de catequização? 

Jacqueline Ahlert - Em todos os seus potenciais comunicativos. A arte, intrínseca ao âmbito litúrgico-cultural dos loyolistas, foi utilizada como instrumento didático mediador da compreensão dos preceitos da religião católica romana por parte dos indígenas. Além de suprir a dificuldade de comunicação oral nos primeiros contatos, contribuiu na introdução de um novo panteão de divindades às populações ameríndias. 

Este domínio compreende a musicalidade, a teatralidade e a iconografia de composições persuasivas. Nas tentativas iniciais realizadas em “missões volantes”, estandartes de Nossa Senhora Conquistadora eram carregados; oratórios portáteis, com estampas e esculturas, em frente aos quais eram ministrados sacramentos, acompanharam as campanhas de catequização mesmo depois de instaladas as doutrinas.

No entanto, não devemos circunscrever tais estratégias a uma ação inicial, tampouco isolada. Junto a elas estavam a retórica, o calendário litúrgico, as festividades, a organização social e econômica, o urbanismo, entre outros. Todos os elementos que convergiam na manutenção do discurso jesuítico.

Gradativamente, o papel atribuído aos santos, cujas imagens estiveram presentes em todos os momentos e espaços missioneiros, foi se complexificando. Na perspectiva duradoura estabelecida pelas orientações contrarreformistas, as obras e os gestos instituíam uma sequência lógica: imitação, gestualização e indução.

As formas artísticas, nos seus objetivos expressivo, persuasório e comunicativo, acabaram por fazer com que essa mesma propensão atingisse além da esfera espiritual, a social, colocando-as sob a égide de um modo peculiar de representação, fosse ele nas atividades litúrgicas cotidianas, fosse nas festivas. 

 

IHU On-Line – Por que o Barroco era considerado a arte da contrarreforma?

Jacqueline Ahlert - O Barroco passa a ser reconhecido como estilo no século XVIII e conceituado de modo depreciativo pela sua feição extravagante. No contexto da formulação de respostas à Reforma Protestante, no Concílio de Trento, realizado de 1545 a 1563, o que se constitui foi estratégias de manutenção da hegemonia católica, não exatamente um novo estilo artístico.  

O Concílio sistematizou as estratégias de evangelização, destacando a potencialidade das imagens. Promulgou, em sua última sessão de trabalho, o decreto sobre a invocação, a veneração, as relíquias dos santos e as imagens sagradas. 

A repercussão da doutrina tridentina não seria a mesma caso não estivesse fortalecida e promovida pela expansão colonial ibérica. O obstáculo reformista empolgava a Europa e ameaçava de isolamento os países peninsulares católicos. O catolicismo, fosse como religião, fosse como expressão política, viu na saída para a América a manutenção de sua supremacia. A ideologia contrarreformista introduziu e fixou as formas multifárias do Barroco. Além de ter a estética da conquista, seu componente de celebração dialogou com os cotidianos das populações europeias e estabeleceu interfaces com as culturas animistas. 

O mais importante neste sentido talvez seja compreendermos que o Barroco atrelou diferentes formas de representação, conformando uma “arte totalizante” voltada aos sentidos, numa ambiência barroquizante além das suas manifestações estéticas.  

A mecânica comunicativa barroca na América contemplava as manifestações imateriais das orquestras, coros em latim, missas, procissões, danças e encenações, celebrações sacras, jogos e recepção de autoridades até as vestimentas especiais, a gestualização e organização teatral em que eram dispostas as imagens no interior da igreja. Conforme o motivo celebrativo, as intervenções formavam sobre o espaço central do povoado uma nova e efêmera cenografia de arcos triunfais, altares portáteis, capelas domésticas, fogos, flores, plumagens. As chamas das velas, tochas, incensos, os toques dos sinos e outros mecanismos de persuasão causavam deslumbramento na população autóctone. 

 

IHU On-Line - De que forma a arte barroca se relaciona com o dualismo da sociedade ocidental daquele período? Como isso se refletia no trabalho jesuíta? 

Jacqueline Ahlert - Apesar de a ordem jesuítica haver sido criada no cerne da idealização da didática barroca como linguagem persuasória adequada à catequização, alguns subsídios indicados pelo Concílio de Trento  tiveram de ser adaptados à filosofia e estética loyolistas. De modo que os excessos ornamentais do barroco foram suavizados, como se percebe na comparação dos templos jesuíticos com os franciscanos, para elucidar. Como elaboração plástica, Sustercic  afirma que o estilo barroco alcançou as doutrinas paraguaias somente com a chegada de José Brasanelli , arquiteto, pintor e escultor que trabalhou nos ateliers missioneiros de 1691 até 1728. No auge da expressividade barroca, por vezes, importaram mais as concepções defendidas pelo fundador da Companhia, como austeridade e simplicidade, do que ilusionismos e assimetrias. 

É bastante impreciso transferirmos o contexto dualista da sociedade ocidental à realidade dos povoados missionais. Ancorar argumentações no texto conciliar, no âmbito artístico, seria igualmente complexo. Embora tenha apontado para um novo direcionamento, no sentido de buscar o controle sobre a execução dos novos programas iconográficos, este não impôs de fato nenhum sistema de regras muito preciso para a execução das representações sacras. A leitura de um “estilo” dificilmente corresponde a realidades complexas e de longa duração como a da experiência vivenciada entre jesuítas e indígenas em 159 anos, servindo somente e, variavelmente, como orientação. 

 

IHU On-Line – De que modo representações culturais e imagéticas com iconicidades tipicamente europeias foram influenciadas pelo intercâmbio cultural com as Américas? 

Jacqueline Ahlert - A escultura, a pintura, a arquitetura e a música estão entre as principais manifestações que condensaram o amálgama das influências formadoras da sociedade missioneira, conformando a cristandade e o animismo num contexto de reorganização e modificações parciais no espaço social, na projeção do imaginário e das práticas simbólicas. Como produtos de um desenrolar histórico, as produções artísticas estiveram relacionadas a elementos de imposição, interpretação, assimilação e resistência. 

As esculturas — sobretudo as de pequeno porte, de uso doméstico e particular — se afirmam pela expressão da historicidade. Nelas, “a cópia do gentil e nítido semblante de Santo Antônio era formulada pelo fusco carão de um índio, com todas as feições e gestos”, como observou um militar já em tempos de dispersão dos missioneiros; Cristos podiam usar vinchas no lugar da coroa de espinhos; santos, botas de garrão de potro; Nossas Senhoras, cabelos longos e negros como os das índias; anjos, feições de piás da terra. As vestes das santidades cristãs foram marcadas pelo movimento rígido e organizado do desenho esquemático, milenarmente presente no grafismo indígena.

O maracá, na música, faz apologia à construção de um terceiro elemento, nem europeu, nem guarani, mas missioneiro. Esse instrumento, dotado de certa santidade e força mágica que vem de sua “voz”, como já definiram alguns jesuítas, símbolo ritual guarani, foi incorporado como instrumento musical na liturgia missioneira — como mostra o friso dos anjos músicos na igreja de Trindad —, mas nesse momento já havia perdido aspectos de sua origem ritual e já se encontrava, no âmbito das doutrinas, desligado de suas virtudes xamânicas. 

Entre outros inúmeros exemplos que poderíamos citar, presentes nas técnicas arquitetônicas, na cerâmica, no uso de pigmentos, etc.

 

IHU On-Line – O estatuário jesuíta produzido por indígenas Guarani difere totalmente da representação tradicional cristã. Da mesma forma, em países andinos, é comum encontrar elementos da cultura local em pinturas e peças cristãs. De que forma estas hibridizações eram encaradas pela Igreja? 

Jacqueline Ahlert - Flexibilizar e fazer concessões fazia parte da didática jesuítica. Podemos ilustrar com uma passagem registrada pelo padre Cardiel , em 1758. Para compor um bom coral, escolhiam-se os de melhor voz, “ainda que vivessem como bárbaros”, afirmava o padre. Entre o número relevante de infiéis que iam aderindo ao cristianismo sem pressa, havia os que jamais se batizariam, mas, ainda assim, demonstrando aptidão, podiam desempenhar funções importantes na redução, como compor o grupo de músicos. Afinal, aos fiéis que bons músicos traziam à igreja certamente compensava relevar algumas faltas. O mesmo acontecia, possivelmente, com a ressignificação iconográfica e com a apropriação de elementos nativos.

É importante destacar que isso não conjectura a inexistência de hierarquias no sistema. Os curas acompanhavam de perto as atividades, e a maioria dos ofícios importantes era encarregada aos congregados. Competia a este seleto grupo a mediação entre os dois segmentos que compunham os povoados, o da área jesuítica e o setor indígena. 

Foram justamente as mediações que possibilitaram a existência de “fendas” no bloco jesuítico onde pode infiltrar-se o anseio criativo do índio artesão, desejo latente de atribuir sentido às representações religiosas.  

 

IHU On-Line – Qual o legado jesuíta para a cultura imaterial das Américas? 

Jacqueline Ahlert - A estrutura arquitetônica e material remanescente das antigas Missões é, também, referência cultural para as inúmeras comunidades Mbyá-Guarani que habitam a região próxima aos sítios arqueológicos, a exemplo de São Miguel Arcanjo e que, de modo significativo, também frequentam estes espaços. 

Neste sentido, pesquisas interdisciplinares têm contemplado os sentidos conferidos por estas comunidades à história e ao patrimônio material, configurando a imaterialidade do patrimônio na duração de práticas e cultos. Projetos como o Crespial, em vários pontos da América Latina e o “Inventário Nacional de Referências Culturais da Comunidade Mbyá-Guarani em São Miguel Arcanjo”, do IPHAN, concluído em 2007, constituem exemplos desse processo. 

Afora a existência de projetos sistematizados, por toda América ainda realizam-se celebrações aos moldes das antigas festividades missioneiras. É possível acompanhar esta permanência nas narrativas de militares e viajantes durante todo o século XIX, mesmo em meio aos conflitos bélicos. Adentrando o século XX e XXI, são expoentes destas manifestações as festividades de Corpus e da Semana Santa.

 

IHU On-Line – Com a supressão da Companhia, muitas de suas obras de arte foram confiscadas ou destruídas. É possível dimensionar os prejuízos culturais destes atos? 

Jacqueline Ahlert - Creio que não seja possível dimensionar, pois os “prejuízos culturais” infringidos aos bens culturais provenientes da experiência missional continuam ocorrendo. A Guerra Guaranítica enfraqueceu toda conjuntura, contudo, a expulsão da ordem da América espanhola, em 1768, foi o grande golpe. Medidas verticais e distantes da historicidade construída na experiência comunitária potencializaram os inconvenientes dos anos sucessivos à supressão da Companhia.  

Os pueblos foram constantemente saqueados. Suas posses, como sinos, pinturas, esculturas, castiçais e outras peças em prata, eram itens raros em outras localidades. De modo que os bens foram “pulverizados”, fosse através de roubos, fosse através dos êxodos de grupos de missioneiros, como o conhecido deslocamento promovido por Rivera. Inúmeras cidades uruguaias possuem sinos provenientes dos Povos Orientais.  

A Casa da Prata, em Porto Alegre, na década de 1830 abrigava mais de 60 arrobas de prata provenientes dos povoados missionais. As violações a este patrimônio foram contínuas. Durante a guerra civil de 1835-1845, retábulos e imagens foram reduzidos em lenha para aquecer e cozinhar para os soldados do Império acampados em São Borja na década de 1840. Todavia, incursões deste tipo não estão isoladas no tempo. Em 2007, a ignorância somada ao dogmatismo levou para o fogo duas imagens missioneiras, na mesma cidade, por um pastor evangélico.  

Foi somente no final da década de 1980 que houve uma preocupação em catalogar os remanescentes da cultura material missioneira. O atraso em dar início a um processo de preservação e valorização das imagens custou à história da arte sacra do Rio Grande do Sul e do Brasil a perda de grande parte deste acervo de valor histórico e artístico inestimável. No transcurso dos anos, foram alvo de roubos, incêndios e destruições causadas por incursões bélicas e de apropriação do espaço simbólico e geográfico das doutrinas. 

 

IHU On-Line – Como este legado material e imaterial permaneceu vivo durante os anos de supressão? 

Jacqueline Ahlert - Pela remanescência de imagens e práticas. Muitas imagens alcançaram o século XXI como bens simbólicos. A relevância dos acervos particulares não reside somente na perpetuação dos cultos domésticos ou nas estátuas em si, mas também na apropriação, identificação e práticas que as acompanham. 

Parte deste legado está em museus e nas igrejas. Entretanto, no geral, provieram de ambientes particulares. O acervo do Museu das Missões, por exemplo, reuniu o que foi possível, inclusive com ações coercitivas, de peças que estavam incorporadas no ambiente doméstico. Com importante significado histórico, tal patrimônio cultural se difundiu, reproduziu e recriou pelo povoamento e ainda tem seu lugar entre as famílias e grupos sociais urbanos e rurais.  

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar mais alguma coisa?

Jacqueline Ahlert - As representações culturais advindas dos interstícios do sistema missional constituíram-se na indexação acomodativa do panteão de santos e dos preceitos católico-jesuíticos, como expressão artística mestiça, consolidadas durante os séculos e ressignificadas, com derivações que chegam à contemporaneidade. 

É importante considerarmos que contextos complexos como o formado por jesuítas e ameríndios não devem ser reduzidos a conceitos totalizantes e estanques como o de “barroco” ou mesmo “barroco missioneiro”. Seja em termos arquitetônicos, seja nos escultóricos. Afinal, o que teriam construído os missioneiros como resposta simbólica e figurativa ao estímulo religioso exógeno que os havia interpelado? Se as imagens são um visível-falar, as madeiras hablaban guaraní, na expressão utilizada pelos colegas uruguaios. Muitas vezes é a própria mobilidade das imagens que é esquecida; sua maleabilidade, sua contextualidade.

O acervo remanescente da estatuária missioneira ainda está sob o estigma do ideal estético barroco. Salvo algumas exceções, reproduz-se, ainda hoje, o imaginário planeado pelos padres jesuítas para adornar, didaticamente, as igrejas e demais espaços oficiais de culto nas missões religiosas. Encartes turísticos, páginas da internet, livros de história, iteram a ideia de que o imaginário escultórico missional constituiu-se de belíssimas imagens monumentais, carregadas de poder persuasivo expresso nos drapeados, douramentos, gestos e semblantes dos santos esculpidos em madeira. No entanto, parte significativa deste acervo é composta de miniaturas. Imagens de uso pessoal e doméstico, que medem poucos centímetros, mas carregam a historicidade da elaborada ressignificação levada a cabo pelas sociedades indígenas. 

Se considerada a existência de uma “arte” de caráter missioneiro, sua maior expressividade estaria nas miniaturas e não na iconografia canônica barroca, apesar de toda contradição que aparente carregar essa afirmação. A formação de uma linguagem original, definida também como estilo, somente pode ser considerada a partir da intervenção indígena. Imagens elaboradas por jesuítas e reproduções fiéis ao cânone são a-históricas. Configuram um tipo ideal, ao passo que a construção de um estilo é um fenômeno histórico.

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