Edição 458 | 10 Novembro 2014

O imaginário antijesuíta em Portugal — Origens, Evolução e Metamorfose

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Ricardo Machado e Andriolli Costa

José Eduardo Franco descreve o que chama de “mito negro” sobre a Companhia de Jesus que, através de campanhas de difamação e ódio, muito se assemelha à fobia social antijudaica

Quando Inácio de Loyola, o fundador da Companhia de Jesus, faleceu, em 1556, a Ordem dos Jesuítas contava com cerca de 1000 membros e 35 colégios em funcionamento. Em 1773, pouco mais de dois séculos depois, já eram 23 mil membros e cerca de 800 estabelecimentos de ensino — dentro e fora da Europa. O crescimento ostensivo da Companhia, que passou a ter grande influência tanto na igreja quanto nos governos locais, gerou aquilo que o historiador português José Eduardo Franco chamou de mito luminoso sobre os jesuítas — em que seus feitos eram enaltecidos e solarizados, e sua falta lamentada e relacionada à derrocada social. 

No entanto, o incômodo causado pelo crescimento político da Ordem faz emergir com ainda mais força um imaginário negativo, alimentado por campanhas difamatórias, conspirações e intrigas. É o que Franco chama de mito negro dos jesuítas, “que tendia a atribuir os males, os insucessos e decadências sociais, econômicas, culturais, educativas e políticas ao papel dos jesuítas apresentados como conspiradores que cumpririam um plano secreto para estabelecer um domínio universal da Societas Iesu sobre a ruína de todos os poderes legítimos”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o historiador sugere: “Encontramos aqui muitos paralelos com a fobia social antijudaica e depois mais propriamente antissemita, enquanto ataque de teor racista ao povo hebreu, que percorreu toda a sociedade ocidental desde a Idade Média”. Para Franco, seria quase um sebastianismo ao contrário. “Ou seja, veem na Companhia não uma liderança salvadora, transformadora para melhor, mas um gênio mau, uma liderança que conduz tudo à decadência e ao obscurantismo.”

José Eduardo Franco é historiador, poeta e ensaísta especializado em História da Cultura. Possui doutorado em História e Civilização pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e em Cultura pela Universidade de Aveiro. Professor do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, ele coordena atualmente um vasto projeto de pesquisa, levantamento e edição dos Documentos sobre a História da Expansão Portuguesa, existentes no Arquivo Secreto do Vaticano. É também membro da comissão coordenadora do projeto da edição crítica da Obra Completa do Padre Manuel Antunes. 

Franco é autor de diversas publicações, das quais destacamos: O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil, no Oriente e na Europa (Lisboa: Gradiva, 2007), Vieira e as mulheres: Uma visão barroca do universo feminino (Porto: Campo das Letras, 2007) e Jesuítas e a Inquisição: cumplicidades e confrontações (Lisboa: Aletheia, 2007).  

O professor apresenta a conferência O mito negro dos jesuítas em Portugal e no Brasil: Origens, Evolução e metamorfose do antijesuitismo, no dia 11 de novembro, das 20h às 22h, no Auditório Bruno Hammes, na Unisinos. O evento faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU - Companhia de Jesus. Da supressão à restauração, e a programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em que consiste pensar um “mito negro” dos jesuítas em Portugal e no Brasil?

José Eduardo Franco – Consiste na construção de uma imagem extremamente negativa da natureza e da ação da Companhia de Jesus pelos seus detratores e inimigos viperinos de várias proveniências religiosas, sociais e ideológicas. Este mito negro assenta numa verdadeira doutrina antijesuítica que tendia a atribuir os males, os insucessos e decadências sociais, econômicas, culturais, educativas e políticas ao papel dos jesuítas apresentados como conspiradores que cumpririam um plano secreto para estabelecer um domínio universal da Societas Iesu sobre a ruína de todos os poderes legítimos. Encontramos aqui muitos paralelos com a fobia social antijudaica e depois mais propriamente antissemita, enquanto ataque de teor racista ao povo hebreu, que percorreu toda a sociedade ocidental desde a Idade Média.

 

IHU On-Line – Em linhas gerais, como são caracterizados os mitos positivo e negativo dos jesuítas? No que se diferem do ponto de vista da racionalidade?

José Eduardo Franco – A leitura negativa do contributo histórico dos jesuítas faz destes uma espécie de promotores de um sebastianismo ao contrário! Ou seja, veem na Companhia não uma liderança salvadora, transformadora para melhor, mas um gênio mau, uma liderança que conduz tudo à decadência e ao obscurantismo. A propaganda antijesuítica é muitas vezes simplista e primária, marcada pela maneira obsessiva, muitas vezes pouco racional, de ver nos jesuítas os únicos causadores dos males sociais e políticos, à luz do esquema hermenêutico conspiracionista da causalidade única e diabólica explicada por Léon Poliakov .

Mas o mito negativo é contrabalançado, como muito bem refere, por um mito luminoso. Se os jesuítas tiveram ao longo da história muitos adversários, críticos e perseguidores também suscitaram muitos admiradores, simpatizantes, patrocinadores e protetores que engrossaram um verdadeiro movimento de apoio à Companhia de Jesus e que explica em boa parte o seu sucesso e sobrevivência perante os enormes obstáculos e graves vicissitudes históricas que enfrentaram.

Não poucos destes admiradores viram nos jesuítas a ordem mais excelente da Igreja Católica e difundiram a imagem positiva da sua grande eficácia, abnegação heroica, dedicação e de grandes resultados pela sua ação metódica e estrategicamente bem planejada.

 

IHU On-Line – Quem foram os principais precursores do mito dos jesuítas em nível internacional? Como se sentiram após a supressão da ordem? O que sofreram? Como viveram?

José Eduardo Franco – Os fabricadores do mito negro dos jesuítas foram primeiramente membros da Igreja, nomeadamente de outras ordens, entre os quais pontificam dominicanos e franciscanos, mas também membros do clero secular, bispos como Melchior Cano , e membros de determinadas correntes católicas, como é o caso dos jansenistas  célebres Blaise Pascal  ou António Arnaut . Em paralelo temos a destacar figuras e correntes ligadas ao protestantismo que os jesuítas combateram. 

A seguir evidenciaram-se personalidades ligadas a Universidades, como é o caso da Universidade de Paris, com destaque para o seu advogado Étienne Pasquier , que escreveu o célebre Catecismo dos Jesuítas. No mundo político e econômico, evidenciam-se, na história do antijesuitismo, ministros, secretários de estado, juízes, detentores de cargos militares e administração, colonos e comerciantes. Além disso, encontramos perseguidores antijesuíticos em outras religiões, como budistas, hinduístas e islâmicos. Há a destacar ainda uma miríada de dramaturgos e escritores de vários países que dedicaram peças e romances inteiros a denegrir a Companhia de Jesus. 

No âmbito do universo imenso e diverso de detratores dos jesuítas, difícil de descrever nos limites desta entrevista, cumpre ainda referir alguns célebres egressos da Companhia. Trata-se de antigos membros que, por diversas razões, quiseram vingar-se de algum desagrado. Alguns deles escreveram libelos célebres contra os jesuítas, como é o caso mais famoso do autor polaco dos Monita Secreta  (Instruções Secretas dos Jesuítas). Esta contrafação pretendia apresentar-se como a revelação de um alegado manual do método de conspiração da Ordem de Santo Inácio e que explicaria o seu sucesso. 

Por outro lado, entre os construtores do mito luminoso encontram-se bispos, frades, nobres, comerciantes, aventureiros, reis e príncipes, além de pessoas simples do povo que confessaram por diversas vias a admiração e registraram o louvor dos méritos e competências superiores da Companhia de Jesus, defendendo e pedindo insistentemente o seu regresso nos períodos da sua expulsão e ausência.

Houve determinados momentos da história de cinco séculos de existência dos jesuítas em que figuras antijesuítas, que vieram a se tornar adversários da Companhia, assumiram posições políticas de comando supremo do Estado e usaram a sua posição de poder para combater e eliminar os Padres da Companhia, como o famoso caso de Pombal . Na segunda metade do Século das Luzes e no período do liberalismo e das primeiras ascensões dos regimes republicanos, que eram militantemente antijesuíticos, a Companhia de Jesus foi expulsa, extinta e correu mesmo o risco de desaparecer para sempre para gáudio dos seus detratores. No entanto, a Ordem de Santo Inácio revelou uma rara capacidade de renascer e regressar em força. Hoje, apesar das dezenas de expulsões totais ou parciais a que foram sujeitos ao longo da sua história em vários países, contando com uma extinção universal pelo Papa, os jesuítas estão pujantes e continuam a ser uma grande ordem na Igreja, o que revela a sua extraordinária capacidade de renovação e adaptação.

 

IHU On-Line – De que maneira a contrarreforma impulsionou os jesuítas a se tornarem (ou terem a impressão que haviam se tornado) quase maiores que a própria Igreja?

José Eduardo Franco – Os jesuítas afirmaram-se na modernidade em dois momentos cruciais. Primeiro, no quadro da querela protestante e da reação do movimento da contrarreforma que pretendia travar a expansão da reforma, nomeadamente a luterana  e a calvinista , no qual muitos jesuítas se destacaram, e a Companhia de Jesus, através de investimento na multiplicação de instituições de ensino católico de qualidade, funcionou como a Ordem da Igreja que gizou uma estratégia global de combate ao protestantismo no plano educativo, da renovação espiritual e na potenciação do ideal missionário tanto internamente na velha cristandade europeia como nas missões ad gentes. 

 

IHU On-Line – De que dimensão era a influência dos jesuítas na Igreja Católica? Como suas ideias suscitaram, inclusive, uma reforma na Igreja?

José Eduardo Franco – O crescimento exponencial da Ordem dos Jesuítas em poucas décadas, desde a sua fundação, em 1540, deveu-se à adesão de muitos membros provindos das mais diversas classes e setores sociais que permitiram oferecer amplos recursos humanos para a criação de uma rede mundial de missões, de colégios, de obras de assistências, assim como a aceitação de responsabilidades de destaque nas instituições da Igreja e da esfera política, em particular como conselheiros e assessores qualificados. Inácio de Loyola  e o seu grupo fundador da nova ordem aprovada pelo Papa Paulo III estavam imbuídos do ideário de renovação das sociedades cristãs na linha da proposta de conversão interior com expressão nas práticas exteriores do movimento chamado da “devotio moderna”, que exigia uma reforma testemunhal dos membros e das instituições da Igreja pelo regresso às da fé e tendo por referência os exempla evangélicos. Em sintonia com célebres reformadores como Erasmo de Rotterdam , os jesuítas procuraram, pela educação, pela pregação, pela vivência coerente dos sacramentos e pela direção espiritual, realizar uma grande operação de mudança cultural e das mentalidades.

 

IHU On-Line – Como surgiu e como se caracterizava o anti-iniguismo (referente a Ignácio de Loyola) e de que maneira essa postura se tornou, mais tarde, o antijesuitismo?

José Eduardo Franco – Realmente, o movimento de oposição aos jesuítas foi antecedido pela crítica e alguma hostilidade à postura de Inácio de Loyola no seu percurso de conversão peregrinante entre Espanha, França e Itália. Da parte de membros do clero e especialmente da Inquisição, de quem se tornou arguido, Inácio foi alvo de suspeita antes de se tornar o fundador oficial reconhecido pela Igreja de uma nova ordem. A sua catequese, os seus apelos a uma vivência mais radical e coerente da experiência cristã suscitaram desconfianças e hostilidade. Foi identificado por alguns como pertencendo aos grupos radicais que defendiam uma Igreja mais mística, mais despojada e mais pura como é o caso do Alumbrismo  espanhol que acabou por ser acusado de herético.

Estas desconfianças ultrapassaram-se com o reconhecimento canônico pelo papa do projeto inaciano de Ordem. Todavia, os jesuítas e a sua intrépida ação evangelizadora, apelando a uma conversão mais profunda, acabaram por continuar a suscitar muitos críticos e opositores quase em permanência até há bem pouco tempo. 

 

IHU On-Line – Por que o próprio surgimento da Companhia de Jesus é fortemente marcado por contradições, que ultrapassam a questão doutrinária da ordem, relativas a prerrogativas jurídicas e estatutárias da criação da Ordem?

José Eduardo Franco – A expansão, apelidada por alguns de meteórica, desta ordem nova na segunda metade do século XVI, usando para tal estratégias que hoje caracterizaríamos em linha com os critérios mais avançados de uma boa gestão empreendedora dos recursos em função dos objetivos a alcançar, provocou diferentes interpretações da parte de quem pretendeu oferecer uma explicação para este surpreendente sucesso. Uns, benevolamente, quiseram entender os progressos bem sucedidos da Ordem de Santo Inácio como sendo devido a uma assistência especial do Espírito Santo em consonância com o uso inteligente de estratégias racionalmente pensadas e inovadoras na captação de recursos e na sua aplicação eficiente. Outros, querendo ver um princípio demoníaco ou mal-intencionado a mover a Ordem inaciana, acusaram os jesuítas de usar artimanhas maquiavélicas e pouco apropriadas com os ditames do cristianismo. Em parte, podemos afirmar que, como por vezes acontece com quem é muito bem sucedido, a Companhia acabou por ser vítima do seu sucesso, atraindo invejas e adversários que não suportavam aquilo que entendiam ser a concorrência dos jesuítas, especialmente quando estes levavam a melhor.

 

IHU On-Line – De que forma o protagonismo social e político dos jesuítas foi, ao mesmo tempo, o combustível de ascensão e queda da Companhia de Jesus?

José Eduardo Franco – O envolvimento dos jesuítas em assuntos temporais, nomeadamente no plano político e econômico, acabou por contribuir para fomentar conflitos e dificuldades várias. Apesar das vantagens em termos e alargamento de influência e de captação de recursos da presença da Ordem em esfera de decisão política e de investimento econômico, a liderança jesuítica muito notada em várias esferas acabou por trazer prejuízos graves para a sua imagem. Sem dúvida, podemos ver aqui alguns fatores explicativos da sua ascensão e queda, embora não possam ser absolutizados. 

 

IHU On-Line – Como foi para os jesuítas integrarem uma ordem católica em um dia e no dia seguinte estarem expulsos, em alguma medida, sem rumo? O que isso significou para ordem?

José Eduardo Franco – Foi sem dúvida muito dramática a experiência de expulsão, exílio e extinção para aqueles que consagraram a vida toda a esta Ordem e ao seu ideal. Não obstante, a própria Companhia no seu conjunto acabou por fazer uma reflexão, uma revisão de vida, um exame de consciência que acabou por trazer lições de conversão de posturas e estratégias que se tornaram úteis quando da sua restauração. A experiência de queda acabou por proporcionar uma experiência de deserto, de despojamento em ordem a uma purificação e melhoramento espiritual. Se superadas, as crises podem acrescentar experiência e, no caso da Companhia, converter práticas e modos de estar na Igreja e na Sociedade. Penso que isso acabou por ser positivo para os jesuítas, que hoje constituem uma Ordem que, com uma grande experiência e patrimônio históricos, é muito prestigiada dentro e fora da Igreja, e continuam a desempenhar papéis relevantes em vários planos. Ainda hoje em dia os jesuítas têm no imaginário social e cultural uma marca de qualidade, prestígio e eficácia.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição