Edição 458 | 10 Novembro 2014

Da supressão à “Restauração” (1773-1814): A Companhia de Jesus, entre continuidade e descontinuidade

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Por Luiz Fernando M. Rodrigues

Criada em 1540, pelo espanhol Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus tem desde seu inicio uma trajetória de controvérsia e confrontamento. Baseada em princípios missioneiros e dialógicos, a Ordem se permitia ao sincretismo e a hibridização cultural, atraindo críticas do Vaticano. Mais do que isso, a influência política e social crescente dos jesuítas – notórios educadores e administradores de instituições de ensino – incomodava tanto as outras ordens quanto as monarquias absolutistas da época. O professor e historiador Luiz Fernando Medeiros Rodrigues, apresenta um breve – porém detalhado – panorama do contexto histórico que levou a Companhia de Jesus de sua supressão à restauração.


Luiz Fernando Medeiros Rodrigues é graduado em Filosofia Eclesiástica pela Faculdade de Filosofia Cristo Rei, em História e Estudos Sociais pela Unisinos e em Teologia pela Pontifícia Università Gregoriana, onde também concluiu seu mestrado na mesma área e o doutorado em História Eclesiástica. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. É um dos organizadores do livro A experiência Missioneira: Território, Cultura e Identidade (São Leopoldo: Casa Leiria, 2012).

O professor coordena o seminário temático “Um corpo sempre em exílio, sempre por voltar? Entre a continuidade e a descontinuidade”: a ação missionária da Companhia de Jesus, sua supressão e o restabelecimento da Ordem, que acontece entre os dias 11 e 13 de novembro, das 9h às 12, na Sala 1F102 da Unisinos. O evento faz parte do XVI Simpósio Internacional IHU – Companhia de Jesus da Supressão à Restauração. Confira a programação completa em http://bit.ly/CiaJes2014.  

Eis o artigo.

Um dos temas que mobiliza os historiadores que se debruçam sobre a história da Companhia de Jesus diz respeito à sobrevivência da Ordem, depois de 1773. Mais precisamente, sobre o estatuto dos jesuítas que ficaram na Rússia Branca, depois da proclamação do breve de supressão clementino. A discussão historiográfica se concentra sobre a continuidade entre a “antiga Companhia “e a “Companhia restaurada” por Pio VII, em 1814. Não “duas” diferentes Ordens, mas uma única Companhia que continuava a sobreviver, apesar da descontinuidade dos fatos ocorridos entre 1773 e 1814. Na verdade, a questão de fundo é aquela que trata sobre a identidade da Companhia.

Em 1556, ano da morte de Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus formava um corpo de 1000 jesuítas, atuando em cerca de 150 obras, incluindo residências, noviciados, casas professas e colégios. Os documentos fundacionais da Companhia fixaram o extremo cuidado que Inácio teve em indicar aos membros da Ordem que os limites geográficos e os eventuais obstáculos humanos, ao contrário de barrarem o dinamismo apostólico de seus membros, deveriam ser motivo para que o jesuíta não abandonasse a sua missão. As barreiras encontradas deveriam predispor os jesuítas a superarem os novos desafios e a serem mais abertos a todas as direções. Apenas um século mais tarde, o número de membros da Ordem crescera para 15 mil e as obras para 550 . Neste movimento de expansão missionária, muitos membros da Companhia já tinham sofrido o martírio nas distantes missões do Japão, da Etiópia e do Canadá. Na longínqua China,  os jesuítas, valendo-se do princípio de “acomodação”, característico da Companhia, tinham estabelecido relações com importantes membros da corte imperial. No Paraguai,  os inacianos tinham implantando um sistema reducional que seria considerado modelar para as missões na América do Sul. Em seus colégios, a Companhia educava a cerca de 150 mil alunos. E muitos jesuítas eram confessores dos monarcas católicos. Em, 1773, ano da supressão da Ordem, os jesuítas somavam cerca de 23 mil, distribuídos por 39 províncias, e suas obras chegavam a cerca de 1,6 mil, com 800 colégios no quais mais de 15 mil professores ensinavam. 

Quando o Papa Clemente XIV assinou e publicou o breve Dominus ac Redemptor, aos 21 de julho de 1773, abolindo a Companhia de Jesus, a Ordem fundada por Inácio de Loyola encontrava-se em crise desde décadas e a sua primazia cultural e espiritual vinha sendo contestada por vários setores da sociedade civil e eclesiástica. Apesar disto, a Companhia ainda representava uma das forças mais importantes no mundo católico, não apenas na Europa, mas também nas missões no Novo Mundo e no continente asiático.

Crises

Muito embora as crises tenham sempre várias e difusas raízes, a que abateu a Companhia pode ser compreendida com os movimentos que iniciaram nos anos de 1630, quando terminaram as tensões entre as missões da Companhia na China e na Índia, os dominicanos, e as Congregações Romanas do Santo Ofício e de Propaganda da Fé. O contraste entre alguns setores da Cúria Romana e a Companhia concentrou-se, sobretudo na aplicação do “princípio de adaptação” dos jesuítas, segundo o qual, alguns missionários da Ordem adotaram práticas rituais tradicionais do confucionismo chinês ou do hinduísmo (na Índia) como estratégias culturais e políticas. A principal censura das Congregações romanas dizia respeito à laicidade e à ortodoxia de tais adaptações, interpretadas como sincretismo. Para os jesuítas, tratava-se apenas da aplicação daquela “acomodação” teorizada no Cerimonial do Japão pelo famoso missionário jesuíta Alessandro Valignano  e aplicada por Matteo Ricci  na China e Roberto de Nobili  na Índia.

A crise, em parte fruto da falta de comunicação entre as partes, terminou com a definitiva condenação dos ritos chineses (1742) e malabares (1744) pelos Papas Clemente XI, em 1715, e Bento XIV, em 1742 . No entanto, à condenada práxis missionária dos jesuítas no Oriente, que reduziu drasticamente a atividade missionária dos jesuítas na China e arranhou sensivelmente a imagem da Companhia na Cúria Romana, deve-se acrescentar a reorganização das reduções do Paraguai, que tinham sido envolvidas nas disputas de conquistas territoriais entre Espanha e Portugal na América Colonial.

O Tratado de Limites de 1750, celebrado entre Espanha e Portugal, estabelecia a cessão de uma parte do território a leste do rio Uruguai ao império lusitano, onde se encontravam sete reduções da Província Paraguaia da Companhia de Jesus. A resistência dos índios, organizada pelos jesuítas, obrigou Portugal a uma campanha militar contra as falanges de índios resistentes, a fim de se apropriar do território das missões que passava, pelo tratado, a pertencer a Portugal. A consequência foi o deslocamento dos cerca de 29 mil índios das reduções jesuíticas deste território para as terras pertencentes ao império espanhol. Apesar da resistência, as forças indígenas sucumbiram frente a violência dos ataques portugueses. 

Nem o Padre Geral da Companhia, Ignazio Visconti (1751-1755), nem o visitador Lope Luis Altamirano (1689-1767) perceberam que tanto a “guerra guaranítica”, quanto a “querela dos ritos chineses”, eram sinais manifestos da crescente afastamento entre as Cortes e a Companhia, primeira etapa de uma estratégia cujo objetivo final seria a aniquilação da Ordem.

A oposição dos missionários jesuítas da Província do Paraguai que atuavam nas Reduções foi associada, pelo governo português, poucos anos mais tarde, à resistência dos missionários da Vice-Província do Maranhão e Grão-Pará a perda do poder temporal das aldeias de índios no norte do Brasil, além da participação ativa dos jesuítas portugueses na campanha contra a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, e à falta de cooperação dos missionários nas operações de demarcação do Tratado de Limites das fronteiras na região amazônica. Estes dentre outros motivos, conduziram, a partir do final de 1757, a uma situação de irreconciliáveis tensões entre o governo metropolitano português e a Companhia de Jesus.

Especialmente em Portugal, apesar de ter perdido o monopólio da educação da classe dirigente, até meado do século XVIII, os jesuítas ainda eram a Ordem religiosa mais numerosa no Orbe católico, muito embora gozassem de prestígio cada vez menor junto às cortes europeias, em relação aos séculos precedentes. O apoio às críticas, nem tanto veladas, de alguns dos mais influentes jesuítas portugueses aos sectores descontentes com a administração ilustrada pombalina agravou a posição da Assistência de Portugal da Companhia de Jesus perante o governo de D. José I. 

Jesuítas em Portugal

Apesar de sofrer duros ataques da maquina publicitária pombalina, que difundia com eficácia uma política antijesuítica pelas Cortes europeias, a Ordem nunca deixou de formar figuras intelectuais de relevo. Contudo, se o apostolado intelectual da Companhia de qualquer forma se mantinha vivo na Europa, nas regiões de missão a situação era diferente: na China, os jesuítas continuavam a participar do Tribunal das Matemáticas em Pequim, mas na América Lusitana, gradativamente, eram menos consultados e afastados dos centros de poder na Colônia. Em parte, tal situação acompanhava a progressiva composição cada vez mais local das províncias e vice-províncias, reflexo da redução daquela vocação universalista da Companhia. Neste momento, a Companhia contava com 42 províncias e com cerca 23 mil jesuítas.

A tentativa de regicídio do monarca português forneceu uma oportunidade à Coroa para eliminar todos os grupos oposicionistas, da alta nobreza ao clero. Associados ao complô contra o soberano, Portugal foi o primeiro estado a desferrar o ataque direto contra a Companhia. A Carta Régia de 3 de Setembro de 1759, que determinava a expulsão dos jesuítas do Reino de Portugal e respectivos Domínios Ultramarinos, foi a consequência final. 

Embarcados para Portugal e reunidos nos cárceres de Almeida, os jesuítas da Assistência Lusitana foram selecionados: a maioria (cerca de 1.000) foi embarcada de Lisboa para o Estado Pontifício; os missionários estrangeiros e os jesuítas membros do governo da Assistência foram encarcerados à vida nos cárceres de S. Julião da Barra. Gabriel Malagrida  (1689-1761), jesuíta italiano com fama de missionário apostólico, santo e taumaturgo, íntimo do monarca D. João V, foi acusado de ser uns dos mentores do complô contra D. José I, julgado por alta traição. Foi condenado pelo Tribunal da Inquisição portuguesa por heresia, garroteado, esquartejado e queimado no auto-de-fé do dia 21 de setembro de 1761, no Rossio, a praça principal de Lisboa.

Jesuítas na França

No Estado Pontifício, os jesuítas se reuniram em diversas comunidades, sendo as mais importantes a romana, a de Castel Gandolfo, Tivoli, Frascati, Urbino, Pesaro, Bologna e Ferrara. Como consequência do escândalo produzido pela bancarrota do P. Antoine La Valette (ou Lavalette, 1708-1767) na Martinica (1761), a Província Francesa da Companhia de Jesus foi acusada de se dedicar ao comércio e não à “cura das almas”. 

Nomeado superior regional das Ilhas de Barlovento na Antilhas em maio de 1753, La Valette estabeleceu negócios com os colonos e financiadores europeus para financiar as atividades apostólicas da Companhia na região. A nave que transportava os seus bens foi capturada pelos corsários ingleses em 1756, aumentado as suas dívidas. Devido a difícil comunicação causada pela Guerra dos Sete Anos (1756-1763), sem o conhecimento completo da situação por parte dos superiores, La Valette continuou em suas empresas comerciais para pagar as suas dívidas. Seus credores citaram o procurador das missões francesas da América Colonial em Paris diante do tribunal comercial, exigindo o pagamento do devido. A estes se juntaram imediatamente os credores de Marseille. O procurador buscou defender a Companhia, apelando ao Parlamento de Paris, porém, os credores animados pela política antijesuítica do ministro Étienne-François Choiseul conseguiram uma sentença que obrigava a Companhia a pagar uma soma de cerca de 5 milhões de libras (1761).

Diante do escândalo criado, os parlamentares do reino (numa estranha união entre as forças galicanas e as jansenistas) pediram o exame das Constituições da Companhia e exigiram que os jesuítas fossem obrigados a assinar um juramento e os artigos galicanos de 1682. Diante da evidente impossibilidade de renúncia da fidelidade ao governo central da Ordem e à dependência direta do papado, os jesuítas se opuseram às condições dos artigos, arriscando-se a serem expulsos do reino da França. De consequência, o monarca optou pela dissolução da Companhia na França, seguindo as medidas iniciadas pela administração pombalina .  

Jesuítas na Espanha

Em ordem cronológica, o terceiro Estado a expulsar os jesuítas foi a Espanha, em 1767. No âmbito das reformas bourbônicas do Estado, o governo tomou uma séria de medidas administrativas, políticas e econômicas com o objetivo de reformar o sistema colonial espanhol. Em particular, Nicolás de Azara, Pedro Pablo de Aranda e Pedro Rodríguez de Campomanes promoveram reformas políticas de caráter jurisdicionalista, segundo as quais, os jesuítas passavam a ser os representantes dos privilégios eclesiásticos, principal inimigo a ser combatido. Os atritos entre a coroa espanhola e os jesuítas foram, de certa forma, incrementados pelas várias Ordens regulares inimigas da Companhia, as quais tinham formado boa parte do clero e da classe dirigente do Estado.

Em março de 1766, ocorreu o Motim de Esquilache  em Madri contra o Rei Carlos III, que atribuiu aos jesuítas a culpa por ter instigado o levante popular. Consequentemente, em 1768, cerca de 5 mil jesuítas foram expulsos de todo o Império Espanhol e embarcados para os Estados Pontifícios. Como forma de protesto pelas medidas adotadas por Carlos III, mas sobretudo preocupado com a agravo econômico que a expatriação dos jesuítas representava às finanças pontifícias, Clemente XIII recusou-se inicialmente a receber os navios carregados de jesuítas, os quais tiveram que desembarcar na Ilha de Córsega. 

Assim como os jesuítas expulsos de Portugal, os da Espanha, uma vez finalmente recebidos nos territórios pontifícios, foram imediatamente transferidos para Bologna, Ferrara, Imola, Rimini, Ravena e Faenza; além de Liguria e a própria Roma. Em poucos anos, os jesuítas expulsos (mais os da Assistência Hispânica que os da Assistência lusitana) conseguiram participar das redes intelectuais, educativas privadas e literárias da sociedade italiana, apesar dos obstáculos impostos pelas duas coroas e nem sempre contando com a anuência dos próprios jesuítas italianos, temerosos das consequências que estes contatos poderiam criar para a Companhia, amplamente acuada pelas críticas das Cortes europeias. 

Sabe-se que a comunicação entre os jesuítas exilados nunca deixou de existir apesar das inúmeras dificuldades que os expulsos encontravam para sobreviverem . Através de uma regular comunicação epistolar, os diversos grupos de jesuítas residentes na Itália podiam conhecer as dificuldades uns dos outros.

Exílio

Se por um lado, o exílio provocou o abandono das bibliotecas das casas e colégios da Companhia, muitas das quais absorvidas pelas diversas instituições diocesanas e públicas dos reinos, por outro, as “bibliotecas particulares” nos cubículos dos padres e nas casas dos missionários tinham sido subtraídas e destruídas (muitos livros e documentos foram vendidos inclusive como papel de embrulhos nos mercados, como no caso da documentação jesuítica em Belém do Pará). Estes fatos, porém, provocaram que os jesuítas exilados na Itália, entre mil dificuldades, buscassem as tipografias e os mercados de livros italianos, na tentativa de reconstruírem tanto as próprias bibliotecas individuais, quanto de se inserirem nas redes de bibliotecas privadas e institucionais, nas quais alguns já trabalhavam como funcionários e que, em certos casos, assumiriam posteriormente cargos diretivos.

Junto com o emprego de bibliotecários, alguns conseguiram assumir encargos de preceptores privados e, até mesmo, de docência em escolas e universidades. A estas ocupações juntou-se a de escritores. Isto fez com que os exilados pudessem, em qualquer modo, integrarem-se parcialmente à vida intelectual das cidades e regiões onde residiam. Tais possibilidades se deram nos anos finais da década de setenta dos setecentos. Daí a extrema atenção e cuidado com que a máquina antijesuítica pombalina atuava desde a chegada dos exilados na Itália, junto à Cúria Roma, sobretudo através do ativíssimo Enviado Extraordinário diplomático lusitano. 

A expulsão dos jesuítas da Assistência italiana e da Província Sarda se consumou em dois tempos. Primeiro, foi decretada a expulsão dos estados burbônicos: o Reino das Duas Sicílias, entre 20 e 30 de novembro de 1767; depois, de Benevento, território pontifício, em junho de 1768. Nos território pertencentes ao Duque de Parma, os jesuítas foram expulsos entre 7 e 8 de fevereiro de 1768. Finalmente, tocou a vez dos que estavam na Ilha de Malta, em 22 de abril do mesmo ano.

Num segundo tempo, ocorreu a supressão papal da Companhia de Jesus com a promulgação do breve Dominus ac Redemptor , executada pelos bispos nas suas dioceses, sob prévio placet das respectivas autoridades civis, afetando a inteira Província italiana da Companhia de Jesus, cerca de 3.736 jesuítas.

Supressão

O breve foi impresso na embaixada da Espanha, entre 24 e 28 de julho de 1773, mas foi publicado com a data de 21 de junho de 1773. O documento pontifício foi dividido em duas partes, articuladas num total de 45 parágrafos: a narrativa (ou das considerações) e a dispositiva. Na primeira, tem-se um histórico das Ordens religiosas suprimidas pelos papas, a começar pelos Templários. Nascida para a salvação das almas, a Companhia de Jesus era acusada de se ter convertido num centro de discórdias ao interno da Igreja. Os próprios monarcas católicos davam a entender que era impossível alcançar a paz e a concórdia entre os cristãos, enquanto existissem os “inquietos e turbulentos” jesuítas. 

A parte dispositiva determinava a supressão da Companhia de Jesus e proibia, em virtude da obediência tanto ao clero secular e regular quanto aos próprios ex-jesuítas, escrever ou falar da supressão ou do Instituto da Companhia de Jesus. Seguiam as disposições práticas sobre como proceder com relação ao possível ingresso dos ex-jesuítas em outras Ordens religiosas, sobre o destino dos escolásticos e noviços da Companhia, sobre as residências, hábito, licenças para confessar e pregar, atividade missionária etc...

Na verdade, o documento de supressão não acusava diretamente os jesuítas de qualquer crime, mas atestava a necessidade de suprimir a Companhia por causa das várias polêmicas teológicas em que a Ordem se tinha envolvido ao longo dos anos e da excessiva ingerência dos jesuítas nas questões políticas dos reinos.

Jesuítas na Rússia Branca

Para que o breve tivesse operabilidade, era necessário que o soberano de um reino desse o seu placet ao bispo diocesano do lugar para “dar leitura” do breve de supressão. Catarina II, de religião ortodoxa, com um ambicioso projeto de “renascimento” ilustrado e absolutista para o seu império, considerado atrasado com respeito às demais monarquias europeias, desejava outorgar à minoria católica uma independência a mais ampla possível da Santa Sé. Esta política ganhou relevo quando, em 1772, um parte do território da Polônia Oriental, com cerca de 800.000 católicos e 201 jesuítas, passou a fazer parte da Rússia Branca. No ano em que se decretou o breve de extinção da Companhia, esta região passava pelos desequilíbrios administrativos e eclesiásticos de uma mudança de soberania territorial. Os bispos residiam nas suas sedes diocesanas, fora da região investida pela mudança de soberania. Prevendo que perderiam a jurisdição sobre aquela parte de suas dioceses que passava à Rússia, instruíram aos jesuítas poloneses que aguardassem as disposições dos novos ordinários, na convicção de que eles logo executariam o breve de supressão da Companhia.

Dada a situação de transição e incerteza que se criara, o Provincial da Província de Varsóvia nomeou o Reitor do Colégio de Polock, Stanisław Czerniewicz (1728-1785), como Vice-Provincial dos jesuítas da Rússia Branca. Depois da notícia da supressão da Companhia na Europa Ocidental, alguns jesuítas decidiram continuar na Ordem, esperando que a dissolução da Ordem fosse temporária. A czarina da Rússia via nos jesuítas um meio eficaz de promover a tão almejada modernização da educação no império .

Nos territórios anexados pela Rússia, em 1772, a Companhia continuava a ter quatro colégios de escola secundária (Polock, Orsza, Witebsk, Dyneburg), duas residências (Mohylew, Mcisław) com escolas de ensino médio, três casas de missão e nove estações missioneiras. Nos dez anos seguintes, até que a situação dos jesuítas na Rússia se estabilizou, os jesuítas buscaram, antes de tudo, manter as obras que até então dirigiam, sobretudo voltados para a educação e para o trabalho pastoral.

Neste meio tempo, Czerniewicz concentrou a sua ação sobre dois eixos principais: primeiro, infundir novas forças a uma corpo moribundo; e, segundo, com diplomacia, proteger a integridade e independência daquele resto de Companhia contra os ataques do Bispo de Mogilev e do Núncio em Varsóvia, este último, poderoso colaborador dos grupos antijesuíticos em Roma. Apelando-se ao Governador-geral, sem aumentar a polêmica com o Bispo, Czerniewicz obteve a permissão, em 1779, para abrir um noviciado e, depois, para convocar uma Congregação Geral . 

A chegada na Rússia

A partir de 1780, os ministérios dos jesuítas tiveram um reforço com a chegada na Rússia de muitos ex-jesuítas e, logo em seguida, com novas vocações oriundas da Europa Ocidental (entre os candidatos de outros países que se incorporaram à Companhia depois de 1805 estava Jan Roothaan, futuro Geral [1829-1853]). Entre eles, começaram a chegar também vários sacerdotes de diferentes nacionalidades pertencentes à “Sociedade da Fé de Jesus” (os Pacanaristas) .

Os congregados que se reuniram na Primeira Congregação de Polotsk, em outubro de 1782, deliberaram manter a vida religiosa e a estrutura tradicional da Companhia, visando a sua estabilidade. Neste sentido, investiram o P. Stanisław Czerniewicz com os poderes de Superior Geral, em conformidade com o Instituto da Companhia. Mas, como alimentassem as esperanças de uma volta à normalidade institucional da Ordem, acordaram que o mesmo usaria o título de “Vigário Geral Permanente”. E, a Ordem, constituída oficialmente como “Companhia de Jesus na Rússia Branca”, continuou a manter a estrutura de Província, governada por um Provincial, e um governo central, sob a supervisão de um Vigário Geral (e, a partir de 1801, de um Padre Geral).

De 1782 a 1820, a “Companhia de Jesus na Rússia Branca” desenvolveu a sua presença nos territórios governados por Catarina II e se voltou exclusivamente para o trabalho missionário na Rússia Branca, chegando, inclusive, além das fronteiras do Estado do Czar, após 1796. Em 12 de março de 1783, ao ser informado de que os jesuítas continuavam a trabalhar no Império Russo, o Papa Giovanni Angelo Braschi, Pio VI, repetiu três vezes: “Aprobo, Aprobo, Aprobo” .

Essa aprovação oral de Pio VI, feita em presença do Bispo Benislawski, Coadjutor de Mohilew, foi repassada pelo bispo ao Vigário-Geral da Companhia por meio de um certificado escrito. Nos inícios do pontificado de Pio VII, em 1800, muito embora o Papa já demonstrassem uma certa boa disposição para com a Companhia no Império Russo, os jesuítas ainda lutavam pela afirmação da sua identidade e da sua autonomia, em relação ao bispo local, que queria submetê-los à sua autoridade.

Neste momento, a Ordem já somava 214 jesuítas (94 sacerdotes, 74 escolásticos, 46 irmãos coadjutores), distribuídos entre seis colégios e outras tantas residências. Contando com a proteção dos Czares Pavel I (1796-1801) e Aleksandr I (1801-1825), os jesuítas desenvolveram as suas atividades acadêmicas e pastorais, fundando novos colégios e abrindo novas missões, ampliando o raio de ação da Igreja católica no domínio dos Czares.

Restauração

Em 7 de março de 1801, Pio VII aprovava e confirmava a Companhia no Império da Rússia por petição de Paulo I e do P. Kareu, com o breve Catholicae Fidei. Pelo breve, os jesuítas residentes na Rússia e os que desejassem se unir a eles formariam a Companhia de Jesus, segundo as regras do fundador, Inácio de Loyola, aprovadas por Paulo III. Pio VII os colocava sob sua imediata proteção e dependência, concedendo-lhes as necessárias faculdades eclesiásticas para que pudessem exercitar seus ministérios pastorais. Por conseguinte, ficava revogado o breve Dominus ac Redemptor no que se referia aos jesuítas na Rússia.

Apenas três anos mais tarde, em 30 de julho de 1804, Pio VII estendia as mesmas concessões feitas à Companhia no Império da Rússia para o Reino das Duas Sicílias, com o breve Per alias. Sob o impacto das consequências da Revolução Francesa, Fernando IV de Nápoles (1751-1825), pedira ao Papa que os jesuítas voltassem à Nápoles.

A aprovação definitiva se deu em 7 de agosto de 1814 com a bula Sollicitudo omnium ecclesiarum de Pio VII , a pedido de muitos monarcas e bispos europeus. As tentativas de limitação da influência da Igreja e do papado na vida político-social das nações europeias e o progressivo relaxamento da disciplina nas congregações religiosas instavam a volta dos jesuítas.

Pela bula de 1814, o papa estendia a todos os territórios e estados as concessões feitas aos jesuítas do Império Russo, revogando inteiramente o breve de Clemente XIV, Dominus ac Redemptor. Além disto, Pio VII concedia ao Geral, P. Tadeusz Brzozowski (1749-1820) todas as faculdades necessárias. Quando se realizou a “restauração” oficial, os membros da Companhia somavam cerca de 600. Em 1820, a Companhia já tinha 503 sacerdotes, 482 escolásticos e 322 irmãos coadjutores.

Que circunstâncias ocorreram, em 1814, e que levaram o papado a abolir completamente o breve de supressão, acelerando o processo que se iniciara muito cautelosamente 13 anos antes? Em primeiro lugar, a divisão interna dos Bourbons em relação ao antijesuítismo. Já em 1793, Fernando de Parma tinha anulado em seu território o decreto de expulsão que ele próprio tinha sancionado, inclusive solicitando a Catarina II o envio de um grupo de jesuítas para o seu ducado. Depois, a mudança de postura de Pio VI: de uma cauta aprovação oral, a um desejo explícito de restabelecimento da Companhia (muito embora tivesse morrido antes de fazer qualquer declaração oficial). Além disto, a decisão de Pio VII de aplicar os privilégios do breve Catholicae Fidei ao Reino das Duas Sicílias. Por fim, a necessidade que o mesmo papa sentia de reconstruir uma Europa religiosa, depois da caída de Napoleão.

Uns anos depois, em 1815, o Czar russo, Aleksandr I, decretava a expulsão dos jesuítas de São Petersburgo. Fechava-se a parêntese da Companhia de Jesus na Rússia Branca, inciava a consolidação e a expansão missionária da Companhia universal, entre continuidade e descontinuidade.

 

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Leia Mais... 

- IHU Repórter - Luiz Fernando Medeiros Rodrigues. Perfil publicado na edição 304 da IHU On-Line, de 17-08-2009;

- A expulsão dos Jesuítas do Grão-Pará e Maranhão. Entrevista com Luiz Fernando Medeiros Rodrigues publicada na edição 333 da IHU On-Line, de 14-06-2010;

- Hábito Negro: as reduções no Canadá. Entrevista especial com Luiz Fernando Medeiros Rodrigues no sítio do IHU, publicada em 18-10-2010.

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  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

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  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

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