Edição 457 | 27 Outubro 2014

Nikolas Rose, um amigo crítico das ciências

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Andriolli Costa | Fotos: Andriolli Costa

Dos guetos judeus às Universidades de Londres, da mosca-da-fruta à biopolítica, o pesquisador de um dos maiores centros de formação médica da Europa propaga a amizade crítica entre os saberes em uma trajetória científica tão coerente quanto sua postura de vida
Nikolas Rose, em São Leopoldo/RS. Foto: Andriolli Costa

O ano é impreciso, mas nos aproximávamos da década de 1930, e o jovem Lionel Rosemberg tinha dificuldades em arranjar emprego. O primeiro de sua família a conseguir um diploma na Universidade de Londres, tendo cumprido todos os requisitos para o título de bacharel em Química, parecia incapaz de atingir os parâmetros exigidos pelas escolas que procurava. A dificuldade nada tinha a ver com sua formação ou conhecimento, mas com suas raízes. O nome, Rosemberg, entregava a ascendência de seus pais — judeus alemães e poloneses que deixaram seus países de origem para buscar nova vida na Inglaterra.

Neste período, havia cerca de 250 mil judeus espalhados pelo território inglês, especialmente nos subúrbios das metrópoles. O forte antissemitismo cobrou seu preço, e a assimilação da cultura local foi a saída encontrada pelas famílias. Assim, Lionel Rosemberg se tornou Lionel Rose — e conseguiu finalmente o emprego desejado. Não foram muitos anos até que ele, de sobrenome novo, conhecesse e se casasse com a jovem Ruth — cujo nome de batismo, para surpresa dos que a conheciam, também era Rose.

“Minha mãe, Ruth, não gostava do seu nome e resolveu trocá-lo. Foi um golpe de sorte, pois, caso contrário, depois de casada se chamaria Rose Rose”, brinca o sociólogo, biólogo e psicólogo britânico Nikolas Rose, ajeitando os cabelos grisalhos que lhe caem na altura dos ombros. Aos 67 anos de idade, Rose — o filho — recebeu a IHU On-Line no hotel, em São Leopoldo, RS, para relembrar elementos que, mesmo perdidos num passado recente, dizem muito sobre o presente do pesquisador. 

Referência em sua área, Nikolas é hoje diretor do Departamento de Ciências Sociais, Saúde e Medicina do King's College de Londres — um dos maiores centros de formação médica em toda a Europa. Este departamento, relativamente novo, investe na formação política, social e humana numa perspectiva interdisciplinar. Algo que o pesquisador busca fazer em todas as universidades em que passa. “Quando estive na Universidade de Brunel, em Londres, mesclamos o departamento de Biologia, Psicologia e Antropologia, produzindo um departamento de Ciências Humanas”, recorda. Algo semelhante ocorreu em Goldsmith e, com alguma dificuldade, na London School of Economics. Para Nikolas Rose, a divisão disciplinar é criação da Academia, mas o enfrentamento da realidade exige um diálogo aberto entre as ciências.

A abertura para outros saberes e o pensamento crítico foram os legados deixados por Lionel para os filhos, Nikolas e Steven Rose — um dos mais renomados bioquímicos da Inglaterra. Em seu site , Steven recorda-se de observar escondido o pai discursar em praça pública contra Oswald Mosley, responsável por fortalecer o fascismo na Inglaterra com a fundação da British Union of Fascists. Nikolas, nove anos mais jovem, não chegou a acompanhar a cena ao vivo, mas também recorre a ela para construir a imagem do pai. Foi ainda graças a Lionel, que tinha grandes amigos entre os militares, que a família pôde visitar e conhecer diversos países da Europa. Longe das temporadas de turistas, tinham contato com o povo. Desde cedo, o pesquisador soube dizer “sim ao estrangeiro”.

Discordâncias 

Nem sempre, no entanto, reinou a concordância na casa dos Rose. Nikolas relembra que, mesmo seus pais não sendo exatamente judeus “fundamentalistas”, o casal era sionista. “Eram socialistas sionistas. Acreditavam na criação de uma terra para os judeus. Algo que tanto eu quanto Steven sempre fomos muito críticos”. Os irmãos Rose não aceitavam a ideia da imposição do Estado de Israel sobre o território palestino. De formas diferentes, se voltaram para o ateísmo. A crítica em questão não era ao judaísmo como religião ou prática de vida, mas contra a política adotada — e que hoje permanece igualmente truculenta.

Pelo próprio histórico de sua família, Nikolas reconhece os impactos causados pelo antissemitismo no povo judeu. E isso não se restringe apenas às dificuldades de seus pais de se adaptarem em Londres. “Dos parentes da minha avó materna, todos — exceto um — morreram em Auschwitz”, lembra ele. Desde criança, seus avós repetidamente lhe mostravam fotos dos campos de concentração. Um de seus tios, médico, acompanhou as tropas aliadas na libertação dos outros campos e sempre lhe contava relatos dos mais terríveis.

As recordações da infância são vivas, e dizem de um presente que não foi vivido, mas compartilhado pela experiência. A força deste retorno ao passado lhe embarga a voz, mas em nada muda sua opinião. Nikolas defende um estado conjunto, onde as religiões e etnias possam conviver harmoniosamente. Ao invés disso, os ataques mútuos culminaram, finalmente, na recente ofensiva israelense. 

“Fico surpreso que o mundo tenha assistido passivo ao ataque contra a Palestina. Para mim, aqueles foram crimes de guerra.” Para ele, é certo que as ações terroristas do Hamas devem ser punidas, mas o terrorismo seria o reflexo óbvio da política de Israel. “Compreendo que os judeus, empunhando suas metralhadoras sob o peito, olham para trás dizendo ‘nunca mais’. Porém, esta não é a resposta.”

Ciência Radical 

O pensamento crítico de Nikolas ganhou espaço, definitivo, durante a graduação. Aos 18 anos de idade, já em 1965, deixou os subúrbios londrinos para cursar um joint degree em Biologia e Psicologia na Universidade de Sussex, em Brighton, uma cidade à beira-mar na costa sul da Inglaterra. “Era uma Universidade nova e bastante radical. Havia muita atividade política. Eram tempos empolgantes, aqueles.” Em noites regadas a bebida, folk music e muito Gramsci, um Nikolas Rose de cabelo comprido e barba farta se engajava no movimento marxista.

“Havia muitos protestos contra a Guerra do Vietnã, e eu lembro que quando ela acabou nós gritamos: ‘Vitória da FLN!’” — uma referência à Frente Nacional para a Libertação do Vietnã. “Isto é, passamos do pensamento de que deveríamos ter paz, para o argumento de que os comunistas do Sul deveriam vencer.” Em grupos de estudos da faculdade, lia Marx, Lenin e Mao. 

No entanto, Nikolas não era um extremista. Definia-se como um “eurocomunista”, inspirado pelo pensamento gramsciniano e pela experiência na Red Bologna, na Itália, onde o partido comunista chegou ao poder sem o uso da violência. “Nós éramos contra a imposição totalitária de qualquer regime, e muito críticos à política da União Soviética.”

O que o grupo dos acadêmicos de Sussex acreditava era que a força da voz das ruas era tão forte que seria capaz de mudar o pensamento e as políticas governamentais. “Nós defendíamos um acesso universal à educação, melhoria no sistema de saúde e distribuição de renda”, pontua. “Para ser honesto, queríamos levar para a Europa muito daquilo que o Brasil tem conseguido nos últimos anos.”

Como não podia deixar de ser, toda a agitação política influenciou na pesquisa desenvolvida na universidade. “Meu professor, o brilhante biólogo John Maynard Smith, pesquisava a mosca-da-fruta. Mas eram os anos 60, havia todo aquele movimento nas ruas, e eu não acreditava que a Drosophila possuía a resposta para o que estávamos vivendo.” Foi assim que Nikolas Rose abandonou seu interesse pelo comportamento animal, para se voltar de vez para o comportamento humano, centrando-se na psiquiatria.

O espírito inquieto, no entanto, permanecia ativo. Nikolas questionava a visão normativa e impositiva da psiquiatria. “Nessa época o movimento antipsiquiatria era muito forte, e Foucault foi introduzido na Inglaterra — com a História da Loucura — como um antipsiquiatra. Ele era muito mais do que isso, e lê-lo foi uma experiência marcante.” Foi esta a semente que instaurou a biopolítica em sua produção acadêmica.

“Nós acreditávamos que mudanças a nível do pensamento possuíam grandes consequências políticas. Para agir diferente era preciso pensar diferente. E, para tanto, era preciso romper com o senso comum e com aquilo que lhe era posto como dado”, pontua. O marxismo não parecia mais capaz de dar as respostas que procurava, então Nikolas e seu grupo se voltou mais para o estruturalismo francês e o pensamento lacaniano. “Basicamente buscamos Foucault, e seguimos outra linha.”

Tempos de Mudança

Nikolas Rose desconcerta-se um pouco ao lembrar que, no fim da graduação, encontrou-se desempregado por um tempo. “Alguns anos, talvez.” Vivendo de trabalhos espaçados e aulas numa turma de “crianças desajustadas”, investiu na produção de revistas radicais que uniam discussões marxistas, feministas e críticas voltadas à questão psiquiátrica. Os movimentos encontravam eco em diversos pontos de Londres, e uma complexa rede de editoras e livrarias radicais distribuíam o material produzido por ele em todo o País. 

Pouco depois, ingressou no mestrado no Institute of Education, da Universidade de Londres e, de lá, conseguiu emprego na Sociedade Nacional para a Prevenção da Crueldade contra Crianças. Seu primeiro trabalho como professor universitário, no entanto, não viria antes dos 34 anos de idade, em 1981, e apenas após a conclusão de seu doutorado — também no Institute. “Eu recebi bolsa de três anos para fazer o doutorado, mas demorei 10 anos para finalizar. Durante esse tempo, quando o dinheiro acabou, trabalhei de motorista de van ou carregador de malas”, recorda ele. O balanço final, entretanto, é positivo. “Eu não me envergonho e nem me arrependo de nada disso. Esses trabalhos me permitiram adquirir muitas habilidades interessantes e conhecer o mundo fora da academia. Conhecer pessoas com outra experiência de mundo, e me desarraigar da Universidade.” E finaliza: “Também tive muito apoio da minha namorada que, hoje, é minha esposa”.

O pesquisador continua, tamborilando suavemente os dedos sobre a mesa, sem fazer trepidar o gravador e nem arranhar a grossa aliança que carrega na mão esquerda. Na parte interna do anel, o nome da companheira que conheceu justamente durante a pós-graduação: Diana Rose. Hoje, marido e mulher são colegas no King’s College e dividem seu tempo entre aulas, conferências e férias em uma casinha do campo na França, próximo à Toulouse. 

Diana é filósofa e psicóloga social, e dá aulas no departamento de Serviços de Saúde e Pesquisa de População. “Outra coisa que você precisa saber sobre minha adorável esposa é que ela foi diagnosticada com o que chamamos transtorno bipolar”, destaca o professor. Juntos há quase 40 anos, passando por momentos bons e “não tão bons”, Nikolas ressalta a trajetória da esposa com admiração. “Devido a sua condição, disseram que ela nunca deveria clinicar novamente. Ela então voltou à Universidade, fez mestrado, doutorado, desenvolveu suas pesquisas para dar voz a outros ‘sobreviventes psiquiátricos’.”

Este ano, o Instituto de Psiquiatria do King’s concedeu a Diana um título único em todo o mundo: professora em User Led Research . O termo indica um tipo especial de pesquisa sobre o tratamento de doença mental, guiada e orientada pelos próprios pacientes ou pessoas com histórico de condições psiquiátricas. “Consiste, basicamente, em aceitar que pessoas que vão passar por algum tipo de tratamento deveriam ter alguma voz sobre como isso será feito”, destaca Nikolas. Assim, Enquanto Foucault dizia que existe um monólogo sobre a loucura a partir da medicalização, experiências como essas do Reino Unido mostram que a loucura pode “falar de volta”. Pode dizer sobre esses serviços, e sobre como podem melhorar. “Se a psiquiatria afirma agir em benefício dos pacientes, deve ao menos deixá-los ter voz.”

Neuro

Movido, parte pelo histórico da esposa — que o colocou em contato com diversas pessoas com problemas mentais; dos próprios colegas da academia — sofrendo frequentemente de mental breakdows, e por sua própria inquietação natural, Nikolas tem dedicado os últimos anos de sua vida a pesquisar o cérebro humano. “Na década de 1990 eu desenvolvia um trabalho sobre governabilidade e que fazia muito sucesso. No entanto, eu fiquei entediado. Sentia como se já tivesse dito tudo o que podia e estava me repetindo”, esclarece o professor. 

Começou então a buscar compreender a genealogia da psiquiatria contemporânea, e percebeu algo intrigante. Após os experimentos nazistas, durante quase 50 anos a psiquiatria se afastou da biologia. No entanto, recentemente, havia uma biologia psiquiátrica ganhando força. Este trabalho deu origem ao livro A política da própria vida. Biomedicina, Poder e Subjetividade no Século XXI (São Paulo: Paulus, 2013). O livro mais recente foi uma progressão lógica — Neuro: The New Brain Sciences and the Management of Life (Princeton: University Press, 2013) tenta compreender a neurociência na contemporaneidade. (Para saber mais ler a entrevista A vida nas interfaces das mutações tecnocientíficas e suas repercussões sobre a subjetividade publicada na edição 454 da IHU On-Line, de 15-09-2014, disponível em http://bit.ly/ihuon454)

A virada no ramo de pesquisa dos últimos anos tornou a aproximar, em certa maneira, os irmãos Rose; ambos interessados, por caminhos diferentes, em pensar os novos poderes e significâncias da compreensão do cérebro — e suas implicações para nossa sociedade. Enquanto Nikolas discutia Marx com os colegas da Universidade, Steven já era doutor, assumindo como professor fundador de Biologia e Neurobiologia da Open University, uma grande universidade radical focada no ensino a distância. No entanto, não era apenas a idade e a fundamentação teórica que distanciava os irmãos, mas a própria visão ontológica da Ciência.

“Meu irmão é um homem brilhante e muito mais high-profile do que eu na Inglaterra”, destaca Nikolas. Conhecido inicialmente pelo livro The Chemistry of Life, Steven mais tarde se centrou na questão da memória, em que se tornou referência. No entanto, segundo Nikolas, o pesquisador aposentado sempre foi “muito, muito crítico sobre a grande ciência”. Ele ressalta: “Assim como eu, Steven é ciente da relação problemática da ciência com a política, sobre o uso de tecnologia para fins militares ou para promover a desigualdade. No entanto, ele parece dedicar sua atenção para repetidamente apontar o lado negro”. 

O sociólogo compreende a importância de estar consciente sobre os problemas da ciência, assim como da existência daqueles que nos lembram disso. No entanto, apontar as coisas boas que se podem tirar dos avanços sempre foi uma preocupação de Nikolas. “Pela primeira vez na vida estamos nos mesmos comitês, nas mesmas conferências, e isso é um pouco engraçado”, diverte-se. “É um homem muito ‘adorável’, meu irmão.”

Ainda se recuperando do último livro, Nikolas Rose sente que está próximo para finalmente enfrentar o tema da psiquiatria na próxima publicação. “Quero entender do meu ponto de vista a experiência que meus amigos e familiares têm do ponto de vista deles.” O professor para por um tempo, alisando os botões da camisa. “Para ser honesto mesmo, penso que do ponto de vista deles é o mais importante. Quando me perguntam qual a grande evolução da psiquiatria nos últimos anos, eu não direi que é o avanço do conhecimento do cérebro, mas o diálogo com o paciente”, provoca. Promover esta mudança ainda se coloca como um desafio contemporâneo.

- E você ainda acredita que é possível mudar a vida a partir do pensamento?, pergunto eu.

“Eu espero que sim”, sorri. Talvez o otimismo não exista como antes, mas ainda são tempos empolgantes.

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