Edição 457 | 27 Outubro 2014

A inquietante insuficiência humana diante da técnica

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Ricardo Machado

Pela primeira vez no Brasil, o filósofo italiano Umberto Galimberti fechou a primeira noite de conferências do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

"Inquietante não é o fato de que o mundo se transforme num grande aparato técnico, o mais inquietante é que não estejamos preparados para isso. Há ainda um terceiro grau de inquietude, o de que não temos uma alternativa ao pensamento calculista, por isso na Idade da Técnica não sabemos o que é bom, o que é bonito, o que é santo, apenas o que é útil", finalizou Umberto Galimberti, parafraseando Heidegger , na conferência “O ser humano na idade da técnica: niilismo e esperança”. O evento foi realizado na quarta-feira, 21-10-2014, no Auditório Central da Unisinos.

Diante de um auditório lotado, o debate em torno das sociedades tecnocientíficas reuniu estudantes da graduação ao doutorado, bem como contou com a presença de diversos professores pesquisadores brasileiros e de outros países. A soma entre um público numeroso e qualificado mais a palestra de Galimberti foi a equação perfeita para o encerramento do primeiro dia de eventos no Instituto Humanitas Unisinos - IHU. A conferência integrou a programação do XIV Simpósio Internacional IHU: Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea. 

Homem e Técnica

"Estamos persuadidos de que a técnica está na mão dos homens, mas na verdade os homens é que estão a serviço da técnica" — esta foi a primeira frase de Umberto Galimberti ao abrir sua conferência. Entretanto, ele explicou que a "técnica", enquanto conceito, não é um aparato, como um celular, por exemplo, mas um "modo de pensar, que consiste em alcançar o máximo dos objetivos com o uso mínimo dos meios. A técnica é a forma mais pobre de pertencimento à razão".

Técnica, os gregos e a racionalidade judaico-cristã

De acordo com o conferencista, para os gregos a natureza não era uma criatura divina, mas sim uma base imutável. "Platão  disse: ‘Não pense que o universo foi feito para o homem. O próprio Heráclito sustentava que o homem deveria compreender as leis da natureza e a partir daí criar as próprias’", ressaltou Galimberti.

Em contrapartida, a tradição judaico-cristã tem uma posição antagônica. "A tradição judaica, e depois a cristã, não vê esse problema, porque veem Deus como quem delegou a Adão o domínio sobre os animais e sobre a terra, como consta no Gênesis. E, desde então, a categoria do domínio se tornou a racionalidade ocidental", aponta.

Essência do humanismo

"Podemos dizer que a essência do humanismo não são as obras literárias, mas a essência do humanismo é a ciência, porque ela dá ao homem a dominação da terra. E isso está ligado à mensagem bíblica, à redenção", esclarece o italiano. O professor ainda explicou que a "técnica é a essência do olhar científico. A ciência não observa o mundo para contemplá-lo, mas para dominá-lo", avalia. "Um bosque para o poeta e para o marceneiro são coisas absolutamente diferentes para cada um dos dois. Um vê o sublime, o outro vê móveis", complementa. 

De aprendizes a juízes

Galimberti lembrou que para Kant  a Revolução Copernicana levou à transformação do homem aprendiz para o homem juiz. "Antes os homens se comportavam como alunos para aprender a pegar tudo aquilo que a natureza ensinava, mas depois passaram a se comportar como juízes para resolver a que a natureza iria servir. Esse é o grande evento de 1600. Depois, do ponto de vista técnico, nada de grande ocorreu", afirma.

Heterogênese dos fins

“Marx  disse: Todos nós consideramos o dinheiro como instrumento para satisfazer as necessidades e produzir os bens, mas se ele cresce a ponto de tornar-se o fim com o qual tudo deve ser medido, estamos diante da heterogênese dos fins. O dinheiro deixa de ser um meio para transformar-se num fim, uma vez que ele se torna condição universal para realizar qualquer fim e passa a ser também o meio, tornando-se a condição universal para alcançar todos os objetivos. Com a técnica ocorre a mesma coisa", explica.

O professor considera o exemplo da antiga União Soviética como emblemático para pensarmos a técnica na segunda metade do século XX. "Em 1960, quando a técnica da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS era equivalente ao seu opositor, Estados Unidos, ela não poderia cair como potência, afinal haviam enviado o Sputnik  ao espaço. Mas quando, em 1989, a técnica da URSS era infinitamente inferior à de seu oponente e tinha pouca contribuição à idade da técnica, não poderia deixar de cair", explica Galimberti. "O regime não acabou porque as pessoas passavam fome, ou porque as pessoas tinham outras dificuldades, tais como a questão da liberdade. Não tinha nada que ver com questões humanistas, tinha a ver com a técnica", complementa.

Política e democracia

Segundo o conferencista, para Platão, na Grécia Antiga, a política era técnica, pois era o marco de onde se decidiam as coisas. "Hoje a política não é mais onde se decidem as coisas, mas o local de operação da lógica econômica. Então, é na técnica onde se decidem as coisas. O que os políticos fazem é somente representação, e é por isso que eles vão para a televisão e para as mídias, porque não têm nada mais para fazer", aponta.

"Não sei se a democracia hoje tem algum espaço. Ela foi criada por Platão, mas ele a achava pouco aplicável mesmo aos gregos, pois os considerava pessoas de pouca educação facilmente manipuláveis pelos sofistas", destaca. Para Galimberti, na Idade da Técnica não é possível a democracia simplesmente porque os consensos são construídos por meios técnicos, por meio dos aparatos de comunicação em larga escala.

Quando começou a idade da técnica?

Ao contrário do que se pode supor levianamente, a Idade da Técnica não começou com a Revolução Industrial no século XIX, nem mesmo na Primeira Guerra Mundial, no século XX, conforme o conferencista. "A idade da técnica começou com os nazistas, pois colocaram em circulação uma mentalidade potente da técnica. E isso consiste em que as pessoas não são julgadas pelo conteúdos de suas ações, mas se são boas ou más nas atividades que executam. É uma questão de eficiência", esclarece.

"Na Itália existem as melhores minas anti-homens do mundo. Mas quem faz esse trabalho deve ser classificado como operário ou como deliquente?", provoca Galimberti. "O aparato técnico é feito por sub-aparatos, cujos operadores nem sempre sabem de suas consequências. As pessoas são 'responsáveis' somente em relação a seus superiores, mas a questão técnica não é de suas competências", exemplifica.

Por fim, trouxe o exemplo do soldado que, via de regra, é considerado "bom", no sentido de eficiente, à medida que mata mais. "Günther Anders , marido de Hannah Arendt , perguntou ao soldado que disparou a bomba atômica o que ele sentia, e ele respondeu, tempos depois: It was my job! (Era o meu trabalho)", finaliza.

Quem é Umberto Galimberti

Umberto Galimberti (foto) é italiano e professor titular de História da Filosofia e Psicologia Geral da Universidade de Veneza – Itália. É discípulo e tradutor das obras de Karl Jaspers e Heidegger, a quem dedicou três de suas obras, além de ser estudioso de Antropologia Filosófica e Psicologia Analítica. Atualmente, é colunista de um dos maiores jornais da Itália, o La Repubblica. É reconhecido por seu conhecimento circular notável, do mito à Ciência, da Filosofia à História, da Psicologia à Sociologia, da Filosofia da língua à Teologia, da Antropologia à Introdução da técnica, até a obscuridade e o relacionamento técnico dramático do homem. Será publicado, em breve, o texto “O Homem na Idade da técnica”, no Cadernos IHU ideias. O professor tem 17 obras publicadas, inclusive algumas editadas em francês, espanhol, alemão, grego e português. Entre elas estão Cristianesimo. La religione dal cielo vuoto (Milano: Editora Feltrinelli, 2012), Il viandante della filosofia (com Marco Alloni. Roma: Editora Aliberti, 2011) e Psiche e Techne. O homem na idade da técnica (São Paulo: Paulus, 2005).

Ecos do evento

“Penso que a crítica ao modelo industrial contemporâneo da produção técnica calculista onde o homem deixa de ser homem para ser uma peça do maquinário é incrível. O exemplo que ele trouxe dos nazistas para finalizar nos leva a pensar sobre a função do técnico trabalhista hoje em dia diante de seu próprio trabalho.” Leonardo Guaragni, Graduado em Filosofia

 

“Galimberti encerrou a palestra falando sobre a não existência de alternativas ao mundo da técnica. Acho que isso nos levou a pensar como que a gente lidará com outros valores que não sejam os calculistas, da eficiência e de eficácia, mas que sejam valores humanos para se pensar em outras coisas.” Liana Keitel, psicóloga

 

“Uma questão que ele colocou é que a moral não limita a técnica, aliás, nada limita a técnica. Até poderia fazer um questionamento e fiquei refletindo se a Constituição dentro da cooriginalidade entre direito e moral não seria uma limitadora da técnica dentro do espaço geográfico específico.” Xana Campos Valerio, advogada

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição