Edição 456 | 20 Outubro 2014

McLuhan e a vazão do pensamento exponencial na tecnocultura

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Márcia Junges e Ricardo Machado

Irene Machado, professora e pesquisadora, sustenta que devemos aproveitar as possibilidades das formas culturais de nosso tempo para exponenciar o raciocínio crítico

Uma das manifestações tecnocientíficas da contemporaneidade é, justamente, a tecnocultura, termo que não foi objetivamente formulado por Marshall McLuhan, mas cujos estudos deram importante contribuição para o âmbito da comunicação. “McLuhan escreveu sobre meios — e suas mitologias — numa época em que filme, notícia de jornal, anúncio, programa de televisão não eram objetos dignos de estudo. Seu esforço foi compreender os graus de transformação que estavam reordenando práticas e valores”, esclarece a professora doutora Irene Machado, em entrevista por e-mail à IHU On-Line

“O que McLuhan observou, ainda que não tenha desenvolvido, foi o reordenamento geopolítico do mundo a partir do campo de forças estabelecido pela informação via satélites e redes informáticas”, explica Irene. “O próprio confronto das ondas migratórias e de etnias seria uma decorrência das redes de contatos criadas pelo redesenho geopolítico gerado pela aproximação tecnológica”, complementa.

Na esteira do pensamento de McLuhan, a entrevistada destaca que o principal legado do teórico foi chamar atenção para a necessidade de recuperarmos um pensamento humanista. “Ele entendeu os meios de comunicação como formas sofisticadas de desenvolvimento de linguagem e de construção de conhecimento na cultura humana. Os estudos sobre linguagem e pensamento icônicos, sobre o espaço acústico, as leis da mídia, são grandes artérias não apenas de seu pensamento, como também vetores importantíssimos para a compreensão da tecnologia como forma de cultura — a tão citada tecnocultura”, frisa.

Irene de Araújo Machado é graduada em Letras pela Universidade de São Paulo – USP. Realizou mestrado em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - FFLCH-USP. Atualmente é Professora Associada da Escola de Comunicações e Artes da USP. É autora, entre outras obras, de Vieses da comunicação: explorações de Marshall McLuhan (São Paulo: AnnaBlume, 2014), Semiótica da cultura e semiosfera (São Paulo: AnnaBlume, 2007) e Escola de semiótica: a experiência de Tártu-Moscou para o estudo da cultura (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003).

A professora Irene Machado apresenta a conferência McLuhan, tecnocultura e midiatização no contexto das revoluções tecnológicas, no dia 21-10-2014, às 14h30min, na Sala 1F 102, na Unisinos. O evento integra a programação do XIV Simpósio Internacional IHU - Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é o nexo que une tecnocultura e midiatização no contexto das revoluções tecnológicas a partir do pensamento de McLuhan ?

Irene Machado – Em primeiro lugar, há que se considerar que tecnocultura e midiatização são conceitos que surgem como decorrência das transformações no processo de comunicação com o aprimoramento dos meios elétrico-eletrônicos. As reflexões de McLuhan se situam nesse estágio em que as transformações pelos meios promovem a revolução não apenas porque os instrumentos de suas práticas se modificaram, mas porque, no seu entender, os meios — rádio, cinema e televisão — potencializaram as formas culturais anteriores — os meios impressos, por exemplo — investindo-os de capacidades inteligentes. Veja-se, por exemplo, a linguagem de mosaico desenvolvida pela tecnologia do meio impresso que, na televisão, se transforma em grade de programação baseada em “nós”. Em ambos os casos, observa-se a potencialização da leitura de sistemas lineares e não lineares e de escritas que os sistemas tecnológicos exploram de modo exponencial. Nesse sentido, podemos considerar o início da pergunta e ponderar sobre a midiatização como a presença potencializada dos sistemas tecnológicos orientados pelo processamento digital. O nexo da ligação com o pensamento de McLuhan se situa na sua insistência, não na prerrogativa da racionalidade técnica ou do determinismo tecnológico, mas na potencialização cognitiva de processos de inteligência sem os quais nenhuma revolução acontece. 

 

IHU On-Line – McLuhan chega a formular, em sua obra, um conceito próprio para tecnocultura?

Irene Machado – McLuhan não hesitava em reconhecer sua dificuldade em utilizar o lado esquerdo do cérebro que, segundo os conhecimentos em voga, era aquele onde se formavam os conceitos. Em compensação, suas formulações esbanjavam proposições baseadas em intuições, hipóteses e abduções — para o bem e para o mal. Logo, até onde sei, tal conceito próprio de tecnocultura, sobretudo do modo como se entende no século XXI, inexiste em suas especulações. McLuhan escreveu sobre meios — e suas mitologias — numa época em que filme, notícia de jornal, anúncio, programa de televisão não eram objetos dignos de estudo. Seu esforço foi compreender os graus de transformação que estavam reordenando práticas e valores. A tecnologia não tinha invadido a vida doméstica sob a forma de objetos portáteis e pessoais como se observa no contexto da tecnocultura. McLuhan começa a estudar e a escrever sobre meios no pós-guerra, quando toda a inteligência da tecnologia está se preparando para atuar na guerra-fria, sobretudo pelo ar, pelas redes de transmissão. Não é à toa que as redes de transmissão e o mundo eletrônico constituem a espinha dorsal de suas especulações e explorações.

 

IHU On-Line - Quais são os impactos das tecnologias telemáticas no governo político da vida humana?

Irene Machado – A pergunta é bastante genérica, logo, para evitar divagação, vou me colocar alguns limites. McLuhan não desconheceu os satélites de comunicação; são conhecidos seus depoimentos sobre o televisionamento da descida do homem à Lua, quando a Terra, tomada pelas lentes de uma câmera, se torna miniatura, tornando-se um marco das possibilidades de controle no auge da Guerra Fria. Esse foi um grande impacto que as tecnologias telemáticas e as telecomunicações desenvolveram a partir dos satélites e que os cabos e redes de fibra óptica do processamento digital estão a aprimorar. O que McLuhan observou, ainda que não tenha desenvolvido, foi o reordenamento geopolítico do mundo a partir do campo de forças estabelecido pela informação via satélites e redes informáticas. O próprio confronto das ondas migratórias e de etnias seria uma decorrência das redes de contatos criadas pelo redesenho geopolítico gerado pela aproximação tecnológica. Nesse sentido, o Canadá serviu-lhe de laboratório de reflexão, a começar pelo confronto do bilinguismo.    

 

IHU On-Line - Hoje vivemos na “aldeia global” prevista por McLuhan. Além dessa ideia visionária, que outras continuam atuais e nos ajudam a compreender os tempos em que vivemos?

Irene Machado – Eu não tenho tanta certeza de que a transposição da noção de McLuhan, publicada em livro com a colaboração de Quentin Fiore  e Jerome Agel , tenha capacidade de abranger a tecnocultura do século XXI. Tampouco acredito que “aldeia global” tenha sido proferido como um vaticínio para o tempo futuro. Aliás, os aforismos tornados um repertório das frases de efeito e profecias que beiram a autoajuda é o que menos me atrai nos estudos sobre McLuhan. O que eu tenho trabalhado e o que me levou a escrever um livro sobre McLuhan foi a necessidade de recuperar o legado de um pensamento humanista, que entendeu os meios de comunicação como formas sofisticadas de desenvolvimento de linguagem e de construção de conhecimento na cultura humana. Os estudos sobre linguagem e pensamento icônicos, sobre o espaço acústico, as leis da mídia, são grandes artérias não apenas de seu pensamento como também vetores importantíssimos para a compreensão da tecnologia como forma de cultura  — a tão citada tecnocultura. No entanto, o campo dessas ideias — intuições e especulações — que eu considero como elementares para a ontologia da mídia, permanecem ignoradas, o que é pior do que se fossem totalmente desconhecidas. 

 

IHU On-Line - Como a interdependência eletrônica recria o mundo à imagem de uma aldeia global?

Irene Machado – Agora, sim, podemos continuar no âmbito das formulações de McLuhan, pois a pergunta envolve uma problematização. Em primeiro lugar, trata-se de compreender o contexto das transformações que fizeram da eletricidade processo de comunicação e, portanto, de transformação da informação elétrica em linguagem. O ponto central dessa transformação é a recriação do espaço de relação como campo unificado. Graças à eletricidade o campo unificado permitiu que os meios eletrônicos situassem as pessoas e os povos simultaneamente em espaços de relações que não se limitam aos contornos geopolíticos, nem dos Estados nem das línguas. O campo de forças dos meios assim constituídos recompõe a simultaneidade das interações sensoriais em contato e em presença. Essas ideias foram muito bem trabalhadas pelo ensaísta brasileiro Muniz Sodré  em sua formulação sobre o bios midiático: o campo sensorial da mídia que não se limita ao relacional, mas potencialmente gerador de vínculos.

 

IHU On-Line - Quais foram as contribuições fundamentais de McLuhan para uma visão de mundo global e inclusiva?

Irene Machado – Vou situar o eixo sem o qual nada seria possível: a compreensão de educação como desenvolvimento cognitivo fundado na exponencialização das linguagens que a cultura fomenta sob forma de ambientes privilegiados de comunicação. 

 

IHU On-Line - A partir do pensamento de McLuhan, como analisa o conceito de técnica hoje?

Irene Machado – Hoje e sempre: técnica não pode ser pensada fora da inteligência cultural de sua geração. Nesse sentido, a técnica consagra a capacidade de criação e de transformação de códigos culturais de modo a promover intervenções e reconfigurações no campo de forças das relações humanas, sócio-históricas e políticas. Técnica assim concebida não se limita ao objeto da previsibilidade, pelo contrário, atua no laboratório das contingências que desafiam determinações.    

 

IHU On-Line - Para McLuhan, o livro individualiza e o rádio unifica. Com a chegada de meios como Facebook e Twitter estamos valorizando o pensamento escrito, mas não a individualização. Como avalia esse comportamento?

Irene Machado – Tenho de problematizar novamente a questão. Não me parece que Facebook e Twitter sejam meios, pelo menos no sentido de McLuhan. Ambos são serviços inseridos num mercado de compra e venda. Além do mais, o uso de caracteres delimitados e circunscritos para finalidades determinadas previamente não configura um desenvolvimento de escrita, muito menos de pensamento. Nenhuma forma de argumentação cabe em 140 caracteres; também não é possível acompanhar a complexidade da linha diagramática do raciocínio, dos “nós” e embates de inferências, num espaço que restringe e impede os voos do pensamento. Realmente, estamos diante de instrumentos que ampliam a rede de contatos e instauram a sensação de presença, o que é fundamental para o humano e a sociosfera de que necessitamos para viver. Contudo, não podemos confundir e simplificar as interações. Talvez num futuro seja possível um outro uso e uma outra função para além do fático. 

 

IHU On-Line - Os indivíduos são capazes de estabelecer uma relação crítica e independente com a técnica em um tempo como o nosso?

Irene Machado – Novamente vou ponderar sobre a necessidade de não simplificar ou confundir as coisas. Relação crítica é demanda do pensamento do ser que não apenas está no mundo, mas nele interage e intervém. Inexiste relação crítica fora do diálogo. Se entendo por tecnologia formas culturais como exponenciação de inteligência, posso afirmar sem susto que quanto mais tecnologia, maior a capacidade exponencial da inteligência. Lembrei ainda há pouco que McLuhan entendeu que o sistema audiovisual eletrônico, do cinema e da televisão, desenvolveu, cada um a seu modo, formas de codificação reveladoras da base icônica do pensamento. Em vez de a linha reflexiva do raciocínio se desenvolver segundo a lógica topográfica das sentenças, o pensamento icônico cumpre a rota das topologias. A estrutura relacional do pensamento passa a dividir espaço com os padrões associativos e isso potencializa a capacidade do ato de reflexão e das formas de conhecimento. Logo, penso que não podemos perder tempo e temos mais é que aproveitar as possibilidades que temos para explorar as formas que o nosso tempo nos oferece para exponenciar o raciocínio crítico.

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