Edição 456 | 20 Outubro 2014

A inviolabilidade humana como limite ético das revoluções tecnocientíficas

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Márcia Junges e Ricardo Machado

A partir de Paul Feyerabend, Luiz Henrique Lacerda Abrahão debate o dogmatismo científico como racionalidade única

Entre as indagações centrais do pensamento de Feyerabend estão O que é a ciência? e Qual o valor da ciência?, aspectos estes que, segundo o professor e pesquisador Luiz Henrique Lacerda Abrahão, são os pilares do pluralismo do autor. “Considero ambas as indagações centrais porque apontam para o que considero ser os pilares do pluralismo feyerabendiano: a crítica da natureza/estrutura e do valor/excelência do conhecimento científico”, explica, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “No fundo, o autor de Contra o Método pretende evidenciar traços de irracionalidade contidos na adesão de nossa sociedade — autoproclamada ‘racional’ e ‘esclarecida’ — à racionalidade científica”, complementa.

De acordo com o entrevistado, presumir uma certa “excelência” das ciências na sociedade evidenciaria uma postura dogmática com relação à própria ciência. “A adesão aos resultados científicos apenas seria justificada se derivasse de um contraste direto e franco com concepções alternativas rivais. Esse segundo pilar do pluralismo feyerabendiano propõe uma revisão radical da crença ocidental no racionalismo científico e da ‘concepção científica de mundo’”, analisa. Luiz Henrique sustenta que “nossa certeza quanto ao ‘valor inegável’ da ciência não seria fruto de um exame ‘racional’ ou ‘objetivo’, como os próprios racionalistas tendem a expressar, mas resultado do uso da força (econômica e militar) das nações ocidentais”.

“O ponto é que, para Feyerabend, os limites dos desdobramentos das tecnociências não seriam epistêmicos. Especificamente, o austríaco defende que a busca do conhecimento não pode violentar as pessoas, sendo este o limite ético das denominadas ‘revoluções tecnocientíficas’”, afirma o professor. Ele lembra uma frase de Paul Feyerabend, de um trabalho do início dos anos 1990, em que Feyerabend sustenta que a “vida humana é muito mais importante” do que o Conhecimento.

Luiz Henrique Lacerda Abrahão é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, realizou mestrado e doutorado na Universidade de Minas Gerais – UFMG, com parte dos estudos no Center for Philosophy of Science of University of Lisbon. É autor e organizador, entre outras obras, de Kuhn, Feyerabend e Incomensurabilidade - Textos selecionados de Paul Hoyningen-Huene (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2014); Kuhn e Feyerabend: semelhanças e dessemelhanças. In: Condé, M. & Penna-Forte, M. (Org.). Thomas Kuhn: a Estrutura das Revoluções Científicas [50 anos] (Belo Horizonte: Fino Traço, 2013).

O professor Luiz Henrique Lacerda Abrahão apresenta a conferência A filosofia pluralista de Feyerabend: leitores e leituras, no dia 22-10-2014, às 16h30min, na Unisinos - Sala 1F 101. O evento integra a programação do XIV Simpósio Internacional IHU - Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que é a filosofia pluralista de Feyerabend?

Luiz Henrique Lacerda Abrahão - Compreendo a filosofia de Feyerabend  como um esforço de expandir a noção de ‘proliferação’ a diferentes âmbitos, tendo preocupações éticas como base desse programa pluralista. Para caracterizar tal abordagem, abordo o pensamento feyerabendiano como um ‘Pluralismo Global’. Esse conceito busca mostrar que o pensador austríaco argumentou em favor de um pluralismo em quatro domínios: das teorias, dos métodos, das culturas e das ontologias. É, pois, nessa direção que enquadro a defesa feyerabendiana de valores como autonomia de pensamento, liberdade de ação, diversidade de ‘formas de vida’ e abundância de cosmovisões. Nesse sentido, considero fecundo tratar as considerações de Feyerabend concernentes às duas ‘perguntas fundamentais’ — quais sejam, O que é a Ciência? e Qual o valor da Ciência? — como os leitmotifs do pensamento dele. Considero ambas as indagações centrais porque apontam para o que considero ser os pilares do pluralismo feyerabendiano: a crítica da natureza/estrutura e do valor/excelência do conhecimento científico. No fundo, o autor de Contra o Método (São Paulo: Unesp, 2011) pretende evidenciar traços de irracionalidade contidos na adesão de nossa sociedade — autoproclamada ‘racional’ e ‘esclarecida’ — à racionalidade científica. 

Com relação à primeira pergunta, Feyerabend insiste na onipresença da ‘desunidade’ na ciência. Considerada enquanto prática, as ciências seriam um oceano de escolas, métodos, formalismos, conceitos, normas procedimentais, valores epistêmicos, etc. Tal fragmentação seria irredutível a elementos abstratos unificadores. Com relação à segunda pergunta, Feyerabend afirma que a excelência, o status ou o privilégio das ciências na sociedade não pode ser presumido. Isso evidenciaria que a ciência se transformou em um dogma. Portanto, a adesão aos resultados científicos apenas seria justificada se derivasse de um contraste direto e franco com concepções alternativas rivais. Esse segundo pilar do pluralismo feyerabendiano propõe uma revisão radical da crença ocidental no racionalismo científico e da ‘concepção científica de mundo’. Para Feyerabend, a tradição racionalista colonizou tradições não ocidentais e suprimiu formas de vida alternativas. Por conseguinte, nossa certeza quanto ao ‘valor inegável’ da ciência não seria fruto de um exame ‘racional’ ou ‘objetivo’, como os próprios racionalistas tendem a expressar, mas resultado do uso da força (econômica e militar) das nações ocidentais.  

Convém lembrar que o próprio Feyerabend designou essa reflexão como ‘Crítica da Razão Científica’: uma análise radical da fundamentação e dos limites de nossas crenças sobre estrutura e a excelência da ciência. Isso é relevante porque nos permite construir uma imagem consistente do pluralismo subjacente às ideias feyerabendianas. Enfim, Feyerabend refletiu profundamente acerca dos fundamentos da estrutura teórico-metodológica e dos êxitos cognitivos e sociais da ciência. Isso não deveria ser entendido como uma recusa absoluta da ciência ou uma negação extrema dos resultados das pesquisas científicas. Pelo contrário, o pensamento feyerabendiano nos permite assumir uma postura menos dogmática frente às ideias e frutos da ciência. Feyerabend procede um ataque à hegemonia intelectual e cultural do racionalismo científico e um combate à tendência totalitária de impor opiniões e artifícios científicos de forma antidemocrática.

 

IHU On-Line - Qual foi sua recepção no meio acadêmico? 

Luiz Henrique Lacerda Abrahão - Quanto à “recepção” da obra de Feyerabend “no meio acadêmico”, destacaria três momentos. Entre 1950 e 1960, houve um entusiasmo com as inovadoras teses do austríaco sobre fundamentos da teoria quântica e metodologia científica. A comunidade de teóricos da ciência projetava sob Feyerabend a figura de um filósofo da ciência bastante ‘promissor’. Nos anos 1970, a crítica feyerabendiana ao monismo metodológico e ao comportamento antidemocrático dos cientistas e experts na sociedade moderna transformou essa expectativa. Iniciou-se uma verdadeira avalanche de ofensivas ad hominem contra o autor de Contra o Método. As resenhas de Contra o Método, publicadas essencialmente entre 1976 e 1978, contribuíram sobremaneira para a difusão do retrato (ainda influente) de Feyerabend como um autor ‘anti-ciência’, ‘anti-método’ ou ‘irracionalista’. Esse quadro foi rearranjado apenas a partir dos anos 1990, quando cresceu o número de estudos especializados e se organizou uma pequena rede de pesquisadores voltados para a obra em vista. A publicação de coletâneas como Beyond Reason – Essays on the Philosophy of Paul Feyerabend (Boston: Springer, 1991), The Worst Enemy of Science? Essays in Memory of Paul Feyerabend (Oxford: Oxford University Press, 2000) ou Paul Feyerabend – Ein Philosoph aus Wien (Boston: Springer 2006) evidencia pontos altos dessa etapa de especialização das leituras do corpus de Feyerabend. Mas ressalto que também houve uma “recepção” do pensamento de Feyerabend fora dos muros acadêmicos. Enquanto Feyerabend recebia violentas críticas acadêmicas, em razão das afirmações do Contra o Método, as ideias dele eram absorvidas por ambientalistas, críticos da tecnocracia ocidental, ativistas ‘contra cultura’, hippies e místicos, críticos do status quo acadêmico e assim por diante. Portanto, ainda que pareça paradoxal, a ‘fama’ internacional das ideias de Feyerabend aumentou na proporção inversa ao acolhimento de suas ideias no interior da comunidade filosófica profissional.

Futuramente, eu gostaria de investigar como ocorreu a recepção do pensamento feyerabendiano no cenário nacional: algo como ‘Feyerabend no Brasil’. Já é perceptível a consolidação de tendências interpretativas quanto a tópicos e problemas particulares (como a noção de ‘racionalidade’ partindo de Feyerabend). Ademais, há um número considerável de teses, dissertações, artigos dedicados à obra de Feyerabend, produzidos por pesquisadores nacionais. Nesse horizonte, as investigações, orientações e publicações da professora Anna Carolina Regner assumem, certamente, uma importância de destaque. De toda forma, ainda vejo equívocos interpretativos elementares em nossos comentários a respeito de Feyerabend; e também lamento que, no Brasil, ainda não tenhamos sediado um evento acadêmico consagrado prioritariamente à filosofia de Feyerabend. Em 2015, o livro Contra o Método completará quatro décadas de influência nos estudos filosóficos, históricos e sociológicos sobre as ciências. Não estaria na hora de revisitarmos esse escrito tão citado e influente?   

 

IHU On-Line - Desde o começo de sua obra, Feyerabend menciona que seu objetivo é apresentar que todas as metodologias têm limitações. Em que esse posicionamento contribui para uma crítica do modelo científico ocidental?

Luiz Henrique Lacerda Abrahão - Primeiro, penso que a tese segundo a qual “todas as metodologias têm limitações” não existe “desde o começo” da obra de Feyerabend. Ela não ocorre nos trabalhos do ‘período formativo’ de Feyerabend, nos anos 1940 e 1950. Também não desponta no ‘período de profissionalização’ do autor, entre 1955 e 1959, quando assumiu o posto efetivo na Universidade de Berkeley. O pluralismo aparece mais claramente na obra feyerabendiana somente quando o pensador adquire maior autonomia intelectual em relação às ‘raízes austríacas’ de seu pensamento. É verdade que os textos feyerabendianos, a partir dos anos 1960, evidenciam gradualmente teses claramente pluralistas. No entanto, nesse momento, Feyerabend defende essencialmente um pluralismo de teorias. Assim, no início, Feyerabend propôs um modelo unitário de metodologia científica, caracterizado pela recomendação da proliferação de alternativas ontologicamente incomensuráveis entre si. A necessidade de uma postura mais ‘liberal’ em termos de métodos surgiu no corpus feyerabendiano apenas em torno dos anos 1970, quando Feyerabend interage com o físico alemão C. F. von Weizsäcker , em Hamburgo. Mas, note-se, nessa época a produção filosófica de Feyerabend já era expressiva. Portanto, seria mais adequado considerar que o pluralismo metodológico é contemporâneo à formulação da ‘epistemologia anarquista’ feyerabendiana, isto é, algo em torno dos anos 1970. 

Isso não significa que a tese de que “todas as metodologias têm limitações” corresponde ao ‘anarquismo epistemológico’ expresso no Contra o Método. A máxima ‘vale tudo’ expressa a conclusão lógica ‘negativa’ de uma ‘redução ao absurdo’ da posição Racionalista. Dada a pressuposição racionalista do monismo metodológico, a análise da história da ciência conduz à percepção de que o único princípio regulador geral da atividade científica é qualquer procedimento pode ser fecundo. Mas essa observação ‘anarquista’ difere da tese referente ao caráter limitado dos métodos. Positivamente, o pluralismo metodológico recomenda a proliferação e a tenacidade de métodos e teorias como ferramenta para avançar o conhecimento. Em outros termos, enquanto o anarquismo epistemológico decorre de uma crítica imanente de premissas do racionalismo, o pluralismo metodológico reflete uma metodologia científica liberal. 

Dito isso, vejamos mais de perto a contribuição do posicionamento de Feyerabend. Para o autor de Contra o Método, o “modelo científico ocidental” remonta à tradição abstrata fundada pelos primeiros racionalistas gregos, particularmente Parmênides  e Xenófanes . Estruturalmente, o Racionalismo seria composto por três dogmas: (i) a ciência possui um único método, que envolve o confronto de hipóteses com experiências ou dados factuais fundamentais; (ii) os resultados da investigação científica são objetivos, independentes do contexto histórico ou social; e (iii) os resultados das pesquisas científicas são universais e necessários. Não há dúvidas de que Feyerabend atacou esses três dogmas da epistemologia racionalista ao longo de sua vasta produção, e não apenas no Contra o Método. Feyerabend enfatizou a diversidade histórica de métodos da ciência, bem como a fecundidade de violar ditames epistemológicos. Ele questionou o processo de imposição das ideias e dos resultados científicos a culturas não científicas e a forma dogmática do ensino de ciências nas instituições educacionais ocidentais. O pensamento feyerabendiano também se debruçou sobre os perigos que a tirania dos experts representa para uma sociedade democrática e os fatores ‘extracientíficos’ que contribuíram para o estabelecimento de concepções científicas. Em geral, considero que o contato com a obra de Feyerabend nos proporciona uma verdadeira ‘Crítica da Razão Científica’, apesar do próprio Feyerabend ter dito, incontáveis vezes, que nenhuma dessas ideias eram ‘originais’ dele.

 

IHU On-Line - Qual é a contribuição desse pensador para refletirmos acerca dos limites e possibilidades das revoluções tecnocientíficas em nosso tempo?

Luiz Henrique Lacerda Abrahão - As possibilidades são imprevistas. Portanto, não as poderíamos estabelecer a priori. Como grande conhecedor da história das ideias, Feyerabend tinha plena consciência das radicais reformulações (ou ‘revoluções’) de cosmovisões que os pensadores engendraram. Inclusive, a noção mínima de ‘progresso’ presente nos textos feyerabendianos acena, basicamente, para a transformação dos pressupostos de esquemas conceituais e atitudes mentais das tradições intelectuais. Galileu , Bohr , Einstein  seriam exemplos de pensadores que trabalharam nesse sentido. Assim, definir as possibilidades seria análogo a projetar previamente um limite teórico para as guinadas no avanço do conhecimento. Com isso, não quero dizer que Feyerabend aderisse irrestritamente à retórica do ‘progresso da ciência’, como se esse progresso fosse valioso ‘em si’ e inquestionável. O ponto é que, para Feyerabend, os limites dos desdobramentos das tecnociências não seriam epistêmicos. Especificamente, o austríaco defende que a busca do conhecimento não pode violentar as pessoas, sendo este o limite ético das denominadas “revoluções tecnocientíficas”. A propósito, em um trabalho do início dos anos 1990, Feyerabend afirmou explicitamente que a “vida humana é muito mais importante” do que o Conhecimento, digamos assim. Então, Feyerabend rejeita enfaticamente o exercício livre do poder por parte dos cientistas, intelectuais, especialistas, etc. Para detalhar essa opinião, recomendo a leitura daquele ensaio “Galileu e a Tirania da Verdade”, presente no Adeus à Razão (São Paulo: Unesp, 2010), bem como as diversas — e ainda inexploradas — considerações de Feyerabend sobre o exercício das ciências biomédicas, muito presentes nos diálogos filosóficos do autor. Confesso, por fim, que por mais que não adote explicações biográficas para as ideias de um autor, é conveniente lembrar que Feyerabend conhecia perfeitamente bem, em seu próprio corpo, as consequências desastrosas (limitações de movimento, estados depressivos, dependência de analgésicos, etc.) da junção irrestrita entre ciência e poder (o Terceiro Reich, especificamente). 

 

IHU On-Line - A partir do pensamento de Feyerabend, como podemos compreender que, paralelo ao avanço da ciência, há o incremento da desigualdade e de um relativismo ético?

Luiz Henrique Lacerda Abrahão - Feyerabend não possui, propriamente, uma Filosofia Política. Em A Ciência em uma Sociedade Livre (São Paulo: Unesp, 2011), ele defendeu um ideal de Estado ideologicamente neutro e controlado por conselhos de cidadãos. O projeto feyerabendiano de um ‘relativismo democrático’ apontava exatamente nessa direção. Entretanto, em Adeus à Razão, o autor ressaltou que tais opiniões sobre Estado, ética ou educação não deveriam ser vistas como um projeto normativo, mas avaliadas pelos próprios indivíduos. Então, o pensamento político de Feyerabend remete, fundamentalmente, à noção de ‘participação cidadã’, isto é, o comparecimento voluntário, esclarecido e responsável das pessoas nas discussões relativas a questões que influenciam suas vidas. Diversas vezes, o austríaco observou que a plena participação dos cidadãos nas decisões importantes para a sociedade, sobretudo as que envolvem impactos de ideias científicas, não ocorreria sem uma superação do abismo que separa os leigos e os experts. Isso evidencia que, para nosso autor, o avanço da ciência precisa englobar não cientistas, com seus saberes locais e vivências particulares. Portanto, se pensarmos a “desigualdade” em termos amplos, abarcando a dimensão cognitiva e sua influência sociocultural, então as ideias políticas de Feyerabend defendem uma redução dos privilégios dos intelectuais, cientistas e especialistas em sociedades democráticas. Em uma palavra, o autor de Contra o Método recusa veementemente o ‘elitismo’, como ele mesmo diz. 

Quanto ao outro tópico, o quadro é mais intricado, especialmente quando incluímos as ideias impressas em Adeus à Razão. De forma satírica, Feyerabend anunciou: “Não estou certo se alguma vez me considerei um relativista. Devo ter encenado o teatro relativista diante de algumas pessoas para causar frisson”. Contudo, esquematicamente, é aceitável dizer que, durante algum tempo, Feyerabend flertou com o ‘relativismo cultural’. Basicamente, defendeu que os valores culturais (sobretudo não ocidentais) deveriam ser protegidos da interferência externa, sobretudo de ideias científicas. Posteriormente, no entanto, o autor rejeitou essa proposta relativista radical e abraçou a concepção segundo a qual “toda cultura é potencialmente qualquer cultura”. Essa máxima pretende ultrapassar a limitação da premissa do relativismo extremo, que vê a cultura como uma ‘entidade fechada’. Pois bem, o ‘interacionismo cultural’ que Feyerabend anunciou nos anos 1990 já não corresponde à abstração relativista contida em A Ciência em uma Sociedade Livre. De todo modo, para muito além de questões exegéticas, parece-me claro que Feyerabend firma um limite objetivo para o relativismo: o “sofrimento humano”, para empregar as exatas palavras usadas por ele, em uma entrevista concedida em 1992, em Roma. O impacto da fome, das doenças, das guerras, da miséria material, da escassez de recursos naturais, etc. nos indivíduos justificaria, para Feyerabend, uma “interferência imediata” (ainda repetindo o autor) nas culturas. Com efeito, na perspectiva do austríaco, o limite aceitável do relativismo ético seria exatamente o respeito às pessoas. Note-se, por fim, que ‘ética humanitarista’ de Feyerabend consiste em um aspecto raramente considerado nos estudos feyerabendianos, não obstante ela refletir a parte positiva das críticas dele ao ‘humanismo abstrato’. 

 

IHU On-Line - Em que medida as ideias de Feyerabend questionam a vontade de saber e o antropocentrismo dos sujeitos da contemporaneidade?

Luiz Henrique Lacerda Abrahão - Na primeira edição de Contra o Método, de 1975, Feyerabend retoma a reflexão acerca do problema do mérito da ciência. O modo como o autor levanta essa discussão é bastante instigante, afinal, segundo ele, o ‘sucesso factual’ da ciência e da tecnologia é, no mais das vezes, presumido como prova inconteste da justificação epistêmica da ciência. Por sua parte, Feyerabend questiona quais componentes residiriam na “vontade de saber” que impulsiona a tradição racionalista. O austríaco reconhece que tal “vontade” comporta projetos dominadores, uma vez que converteu o “saber” em uma ferramenta de poder. Feyerabend mostra que a retórica racionalista da ‘busca pela verdade’ (na ciência ou na filosofia) suprimiu tradições alternativas, fazendo uso da força. Por isso, no olhar feyerabendiano, a ciência teria se convertido em uma ideologia opressiva, da qual a sociedade deveria ser protegida. Conforme essa leitura, a ‘vontade de poder’ subjacente ao discurso Racionalista acarretaria diversas consequências nocivas. Uma delas envolveria a destruição de valores ‘espirituais’ (noção que o próprio Feyerabend empregou em Adeus à Razão), em favor de uma ‘concepção científica de mundo’ materialista. Tal concepção, amparada em ideais tecnocratas e em valores cientificistas, não apenas estimularia uma teorização objetiva quanto aos fenômenos, mas, efetivamente, exploraria o meio ambiente, sem considerar seriamente os impactos culturais ou sociais das ciências. A esse respeito, é instrutivo ter em mãos o The Tyranny of Science (UK: Polity, 2011), livro póstumo de Feyerabend ainda inédito em português. O descolamento do ser humano relativamente a valores não materiais, bem como a instrumentalização de outros seres vivos — enfim, tudo isso emergiria como efeitos prejudiciais da ‘vontade de saber/poder’ racionalista. Dito desse modo, há indícios de que Feyerabend avalia — e isso fica explícito no último de seus diálogos filosóficos, redigido em 1991 — a hegemonia da mentalidade científica como capaz de destruir as conexões entre os indivíduos e a radicalizar um abismo entre humanos e outros animais. Em todos esses casos, a ‘vontade de saber’ ilustraria posturas antropocêntricas frente à Natureza. O desafio do pensamento contemporâneo consistiria, pois, em tentar conjugar duas noções que, sob a perspectiva materialista ocidental, parecem incongruentes: o avanço do conhecimento e o respeito a indivíduos, a formas de vida, ao meio ambiente e a ‘visões de mundo’ não científicas.

 

IHU On-Line - Como pode ser compreendida a ideia de incomensurabilidade à qual esse pensador se refere?

Luiz Henrique Lacerda Abrahão - A tese da incomensurabilidade, em Feyerabend, é um tópico extremamente espinhoso. A incomensurabilidade consistiu na resposta feyerabendiana às concepções tradicionais acerca da racionalidade do progresso científico. Em geral, tradições empiristas ortodoxas adotavam uma visão acumulativista do avanço do conhecimento. Assim, a troca de teorias deveria cumprir alguns requisitos formais, tais como a inclusão do conteúdo factual ou a preservação dos termos observacionais das teorias precedentes. Teorias seriam ‘comensuráveis’ quando as explicações fornecidas pelas antigas teorias pudessem ser incluídas e ampliadas nas teorias mais recentes. Em resposta a isso, Feyerabend salientou que trocas científicas genuínas redefiniam radicalmente os significados dos termos descritivos e abandonavam padrões explicativos tradicionais. A cosmologia copernicana, a mecânica quântica ou a teoria da relatividade geral exemplificariam instâncias de reconstrução do edifício científico. Nesses casos, os requisitos formais da concepção cumulativista não teriam sido cumpridos. Por conseguinte, se esses requisitos forem mantidos, então deveríamos concluir que tais mudanças científicas ‘não foram comensuráveis’. Inicialmente, a incomensurabilidade surgiria, pois, como uma ‘redução ao absurdo’ às abordagens redutivistas do avanço teórico. Mas essa tese revela também um traço essencial do pensamento de Feyerabend: a ‘interpretação realista’ das teorias científicas. Assim, para ele, a ciência não corresponde apenas a uma forma de organizar dados da experiência. Pelo contrário, os pressupostos científicos definem nossa própria experiência, de forma que haveria um componente ‘ontológico’ nas teorias. Portanto, para entender a incomensurabilidade em Feyerabend, é fundamental considerar essa premissa do caráter englobante, ontológico e onipresente das teorias. Sem isso, eu diria que a questão da incomensurabilidade em Feyerabend sequer se coloca de forma inteligível. 

O esforço feyerabendiano para arregimentar a ideia do caráter ontológico dos pressupostos atingiu seu ponto mais alto no capítulo XVI da terceira edição de Contra o Método, quando Feyerabend analisa aspectos do desenvolvimento da percepção, estrutura das gramáticas e a transição da cosmovisão homérica para a ontologia substancialista dos pré-socráticos. No entanto, posteriormente, Feyerabend atacou a ‘visão geral’ sobre a incomensurabilidade. Ele percebeu que o termo passou a sustentar propostas relativistas segundo as quais tradições ditas ‘incomensuráveis’ seriam impenetráveis. Essa noção invertida (ou não técnica) de incomensurabilidade fundamentaria dogmas relativistas (incomunicabilidade, incognoscibilidade ou intradutibilidade) que Feyerabend rejeitava veementemente. É verdade que a ideia de incomensurabilidade tem uma história complexa, sobretudo em virtude de sua ‘dupla paternidade’, com Kuhn  e Feyerabend, em 1962. Diferentemente de Kuhn, no entanto, Feyerabend começou sua discussão abordando a questão no âmbito linguístico, e gradualmente incluiu aspectos da psicologia, da linguística, da história das artes e das ideias. (Tentei reconstruir os detalhes do desenvolvimento dessa tese na obra feyerabendiana com o trabalho “A Tese da Incomensurabilidade de Teorias em Paul Feyerabend”, o qual está disponível para consulta no link http://bit.ly/11o6gGT). Segundo entendo, o básico da incomensurabilidade em Feyerabend é na defesa metodológica da proliferação de teorias alternativas fortes (ou seja, ontologicamente incompatíveis) como ferramenta de teste das teorias corroboradas. Isso refletia o esforço feyerabendiano inicial de transformar o pluralismo em um programa filosófico consistente e razoável, algo bastante diverso do ‘modismo pluralista’ (criticado pelo próprio Feyerabend) que perpassa alguns setores de nossa cultura.

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