Edição 456 | 20 Outubro 2014

O fim da “hegemonia da ciência” em Paul Feyerabend

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Márcia Junges e Ricardo Machado

Virginia Chaitin e Luiz Mazzei abordam a crítica do filósofo austríaco à ontologia de um modelo racional único baseado somente no pensamento científico

Ao compreender as críticas de Feyerabend à razão e à ciência é preciso levar em conta seu posicionamento em relação a um modelo racional de via única. “Podemos destacar que a crítica de Feyerabend se dirige ao modelo de racionalidade científica defendida tanto pelo empirismo lógico quanto por Popper e os racionalistas críticos: um modelo de racionalidade pautado na obediência a regras universais, independentes do contexto e que sirvam como guias para uma única modalidade de ação racional, tal como concebida pelas referidas tradições”, explicam os professores e pesquisadores Virginia Chaitin e Luiz Mazzei, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Conhecimento científico não é algo “asséptico”. Segundo os entrevistados, há uma série de fatores em jogo, que vão desde as idiossincrasias às posições políticas dos cientistas. “Podemos dizer, de maneira breve, que para Feyerabend a ciência é uma atividade humana situada, no sentido de que está inserida em determinado contexto, datada, no sentido de que foi produzida em determinado momento histórico, e pessoal, no sentido de que foi construída por uma pessoa ou um grupo de pessoas”, sustentam. 

“A visão feyerabendiana do mundo, incluindo-se aí a razão e a ciência, era uma visão pluralista, que buscava olhar a diversidade, a abundância de possibilidades. Para Feyerabend não havia uma única racionalidade, nem uma única maneira de se produzir o conhecimento científico”, argumentam os entrevistados. Para o filósofo austríaco, houve muitas sociedades e culturas que se organizaram e se desenvolveram em contextos históricos no qual a ciência não tinha o papel dominante de nossos dias. “Essas culturas possuíam tecnologias que lhes permitiam uma qualidade de vida suficientemente boa para seus membros. Dada a abundância de possibilidades e a diversidade de formas de conhecimento presentes em nossa cultura brasileira, assim como em todas as outras culturas, não faz sentido eleger uma forma dominante — a ciência — sobre as demais”, tensionam Virginia Chaitin e Luiz Mazzei.

Virginia Chaitin é graduada em Estatística pela Universidade de Brasília - UnB, realizou mestrado em Lógica e Metodologia da Ciência pela London School of Economics and Political Science - LSE e, também, mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ. Doutorou-se em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

Luiz Davi Mazzei é graduado em Licenciatura Plena em Ciências e Matemática, realizou mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS. Atualmente, é doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.

Os professores Virginia Chaitin e Luiz Davi Mazzei apresentam a conferência Feyerabend, razão e ciência, no dia 21-10-2014, às 14h30min, na Sala 1F 103º na Unisinos. O evento integra a programação do XIV Simpósio Internacional IHU - Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são os pontos fundamentais da crítica de Feyerabend à razão e à ciência?

Virginia Chaitin e Luiz Mazzei - Para compreender as críticas de Feyerabend  à razão e à ciência é preciso ter bem claro que o alvo da crítica dele não é a razão enquanto faculdade humana, mas ao modelo de razão científica que é aceito como único. Isso posto, podemos destacar que a crítica de Feyerabend se dirige ao modelo de racionalidade científica defendida tanto pelo empirismo lógico quanto por Popper  e os racionalistas críticos: um modelo de racionalidade pautado na obediência a regras universais, independentes do contexto e que sirvam como guias para uma única modalidade de ação racional, tal como concebida pelas referidas tradições. Em sua crítica, Feyerabend faz uma análise histórica buscando as origens e as modificações do significado que “ser racional” sofreu ao longo do tempo. Nessa abordagem, a racionalismo crítico é visto dentro do escopo do racionalismo enquanto tradição desde suas origens na Grécia antiga. Na argumentação de Feyerabend ao longo das décadas de 1950 a 1990, destaca-se a análise que ele faz das regras propostas pelos racionalistas e a introdução de contrarregras que se revelam plausíveis quando examinadas à luz da história da ciência. O exame confrontando as regras ditas racionais com a práxis científica revela, como o filósofo destaca já na primeira edição de Against Method (New York: Verso, 2011, 4ª Edição), traduzido como Contra o Método (São Paulo: Unesp, 2011), que: “não há uma só regra, embora plausível e bem fundada na epistemologia, que deixe de ser violada em algum momento”. A violação das regras e a adoção de contrarregras não somente  ocorreram em diferentes momentos históricos como foram intencionais e decisivas para o progresso da ciência.

Sua crítica à ciência, de maneira análoga, é dirigida a uma visão específica de ciência, não ao conhecimento científico como um todo. Feyerabend distingue a ciência tal como praticada pelos cientistas — uma atividade criativa, não constrangida por regras fixas — e as versões dela apresentadas pelos racionalistas críticos, pelas tradições filosóficas empiristas lógicas e racionalistas críticas. A visão do conhecimento científico como um conhecimento “asséptico”, não contaminado pelas idiossincrasias dos cientistas, é duramente criticada por Feyerabend, para quem a ciência é uma atividade essencialmente humana, e, como todas as atividades humanas, é influenciada pelas ideias, valores, crenças e humor dos cientistas que a produzem. Podemos dizer, de maneira breve, que para Feyerabend a ciência é uma atividade humana situada, no sentido de que está inserida em determinado contexto, datada, no sentido de que foi produzida em determinado momento histórico, e pessoal, no sentido de que foi construída por uma pessoa ou um grupo de pessoas.  As críticas de Feyerabend à razão e à ciência estão bastante imbricadas, pois Feyerabend critica a gênese do conhecimento científico — tal como apregoada pelos racionalistas críticos pelo empirismo lógico e pelo racionalismo crítico —, ou seja, a obediência a regras e padrões fixos, predeterminados, objetivos, universais e “racionais”. Assim, ao criticar as regras que (supostamente) definem o que é (ou não) científico e racional, Feyerabend também critica o modelo de ciência que se estabelece na filosofia da ciência especialmente a partir dessas duas tradições acima referidas, bem como a maneira como a ciência veio a ocupar o seu papel na sociedade como forma de conhecimento hegemônica, adotada pelos racionalistas críticos.

 

IHU On-Line - Em que sentido essa crítica segue atual e quais são as principais discussões que suscita em nossos dias?

Virginia Chaitin e Luiz Mazzei - As críticas apontadas por Feyerabend seguem atuais na medida em que vivemos em um tempo onde a diversidade tem um papel cada vez mais destacado. Feyerabend, em sua crítica, não se opôs à razão ou ao conhecimento científico, mas se opunha à existência de uma razão única ou à ideia de que há uma única forma válida de conhecimento. O que foi chamado de “anarquismo” — até mesmo pelo próprio filósofo — na verdade se traduz como pluralismo. A visão feyerabendiana do mundo, incluindo-se aí a razão e a ciência, era uma visão pluralista, que buscava olhar a diversidade, a abundância de possibilidades. Para Feyerabend não havia uma única racionalidade, nem uma única maneira de se produzir o conhecimento científico.

Nos dias de hoje, onde o combate às ditaduras — políticas, ideológicas, sociais — tem sido marcante, uma discussão sobre a ditadura da ciência e da razão (tais como tradicionalmente entendidas) é atual e relevante. A compreensão de que a realidade é diversa e abundante em alternativas, tal como compreendia Feyerabend, e que os seres humanos são capazes de produzir saberes diferentes que em última instância fazem parte dessas diversas realidades, proporciona argumentos para que tenhamos uma visão mais ampla e mais tolerante da diversidade de sociedades no mundo e das multiplicidades na sociedade em que nos inserimos. 

 

IHU On-Line - Por que Feyerabend argumentava que a ciência não merece o status privilegiado que possui na sociedade ocidental?

Virginia Chaitin e Luiz Mazzei - Na visão de Feyerabend, especialmente nas primeiras obras — sobretudo a partir de Contra o Método —, a ciência é tratada como mais uma atividade humana. O conhecimento científico não é superior — nem inferior — às demais formas de conhecimento. O filósofo destaca que muitas sociedades e culturas se organizaram e se desenvolveram em contextos nos quais a ciência não tinha o papel dominante que tem hoje na sociedade ocidental. Essas culturas possuíam tecnologias que lhes permitiam uma qualidade de vida suficientemente boa para seus membros. Dada a abundância de possibilidades e a diversidade de formas de conhecimento presentes em nossa cultura brasileira, assim como em todas as outras culturas, não faz sentido eleger uma forma dominante — a ciência — sobre as demais. Feyerabend destaca que a ciência hoje desempenha o papel que a igreja desempenhou na Idade Média: se arvora como juiz supremo de todas as demais formas de conhecimento, reservando-se o direito de chancelar a validade (ou não) das demais formas de ver e viver a realidade. Tal como a religião não se sustentou enquanto forma de conhecimento privilegiada, “acima” das demais, a ciência também não se sustenta. O problema não reside em qual forma de conhecimento deve ser hierarquicamente superior; está, antes, na hierarquização estática dentre as diferentes formas de conhecimento: em algumas situações a ciência apresenta-se como a melhor opção, em outras, isso não ocorre. 

 

IHU On-Line - Qual é a pertinência dessa crítica se levarmos em consideração o aprofundamento da tecnociência e sua irreversibilidade nos tempos em que vivemos?

Virginia Chaitin e Luiz Mazzei - Vivemos em um momento onde a tecnociência domina a sociedade e apresenta-se como a única via possível para o progresso. Apesar disso, é possível questionar os encaminhamentos e direcionamentos que a tecnociência vem apresentando na atualidade como, por exemplo, a sua irreversibilidade. Uma análise da história da ciência nos mostra que houve teorias e tecnologias que se apresentaram como dominantes e irreversíveis, mas que com o decorrer do tempo e a consequente mudança nas relações das pessoas, mudanças muitas vezes provocadas pela própria tecnologia, resultaram em transformações nas teorias e especialmente nas decisões relacionadas às políticas de produção tecnológica (que pareciam) irreversíveis ou mesmo definitivas. Então, não estou certo quanto à irreversibilidade da tecnociência, embora concorde que, tal como se apresenta agora a situação, ela parece irreversível. De qualquer forma, as críticas de Feyerabend são bastante pertinentes, uma vez que buscam suscitar uma reflexão sobre o domínio de uma forma de conhecimento sobre as demais. Suas críticas não negam a importância da ciência, mas não aceitam o caráter arrogante adotado por políticas que privilegiam essa forma de conhecimento.

 

IHU On-Line - Por que, para Feyerabend, a ciência também deve estar submetida ao controle democrático? Qual é a atualidade desse “conselho” numa época em que há um imperativo da ciência como mais alta instância da racionalidade e como sinônimo de objetividade e, portanto, deve ser aceita sem contestação?

Virginia Chaitin e Luiz Mazzei - Ao entender a ciência enquanto tradição, Feyerabend também destaca as maneiras pelas quais as diferentes tradições interagem, influenciam-se e modificam-se mutuamente. Ao tratar a ciência enquanto atividade humana, feita por seres humanos reais, afeitos a suas crenças, objetivos, ideologias e idiossincrasias, Feyerabend destaca o caráter “humano” e localizado da ciência, em contraponto ao caráter “racional” e universal que destacam tanto os empiristas lógicos quanto os racionalistas. E, dada a importância da ciência na sociedade atual, não se pode conceber que a ciência seja uma atividade independente dos seres humanos que a produziram e daqueles cujas vidas ela afeta diretamente. Em Science in a Free Society (London: New Left Books, 1978), traduzido como A ciência em uma sociedade livre (São Paulo: Unesp, 2011), Feyerabend diz que “uma democracia é um conjunto de pessoas maduras e não uma coleção de ovelhas guiadas por um pequeno grupo de sabe-tudo.” Uma sociedade democrática tal como todos buscam implica a participação da população naquilo que lhe diz respeito direta ou indiretamente. Não é possível conceber um estado democrático no qual um pequeno grupo de sabe-tudo (os cientistas) e de pode-tudo (estados com instituições autoritárias e/ou com políticas manipuladoras) coordenem o restante da população. Entretanto, o próprio Feyerabend admite a importância da ciência na sociedade ocidental, uma vez que a nossa sociedade se organizou tratando a ciência como a mais alta instância da racionalidade e do saber verdadeiro, empregando e produzindo uma tecnologia tributária desse saber científico e que permeia cada vez mais a vida cotidiana, sendo, assim, a sua aceitação e reificação praticamente compulsória.

 

IHU On-Line - Para Feyerabend, a ideia de que as decisões devam ser racionalistas é elitista. Por que ele tece esse argumento?

Virginia Chaitin e Luiz Mazzei - Na concepção de Feyerabend, os racionalistas críticos (alvo mais destacado de suas críticas) fazem essa exigência — de que as decisões sejam “racionais”, tal como eles compreendem a racionalidade — a fim de assegurar a hegemonia de uma determinada forma de pensamento, de uma determinada forma de ver e viver o mundo.  O filósofo diz em A ciência em uma sociedade livre — original publicado em 1978 — que a unanimidade de opinião na ciência é muitas vezes o resultado de uma decisão política: os que não concordam são suprimidos ou permanecem em silêncio, para não “manchar” a reputação da ciência enquanto forma de conhecimento racional e confiável. Essa decisão mantém a hierarquia entre as diferentes formas de conhecimento — a ciência é a forma de conhecimento que mais se aproxima da verdade, sendo quase infalível e estando em permanente progresso pela consagrada via das pesquisas científicas — e, consequentemente, mantém a superioridade dos cientistas face aos demais praticantes ou estudiosos de outras formas de saber. Nessa perspectiva, atender à exigência de racionalidade implica manter a relação de superioridade da razão científica sobre os demais saberes.

 

IHU On-Line - Em sua última obra, não acabada quando morreu, Feyerabend fala em como nosso senso de realidade é formatado e limitado. Qual é a atualidade dessa crítica para que repensemos, inclusive, o lugar da ciência em nosso tempo?

Virginia Chaitin e Luiz Mazzei - Sua obra póstuma, editada por Bert Terpstra, a partir de manuscritos de Feyerabend com autorização de sua viúva, Grazia Borrini-Feyerabend, The conquest of Abundance: A Tale of Abstraction versus the Richness of Being (Chicago: University of Chicago Press, 1999), foi traduzida para o português como A conquista da abundância (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006). Nela, Feyerabend traz à discussão a abundância da realidade em contrapartida à nossa visão limitada porque sempre atrelada a uma forma particular de ver e entender um mundo abundante em sua diversidade. A importância das diferentes tradições que interagem em nossa experiência da realidade, a multiplicidade de formas de conhecer, ver e viver o mundo não podem ser constrangidas por regras procedimentais e metodológicas fixas e que pretendem ser universalmente válidas. Assim como a ciência, as artes, a religião, o senso comum, as crenças, todas as formas de conhecimento coexistem e mutuamente se influenciam. Em seu desenvolvimento as diferentes sociedades e culturas se constituíram a partir de imbricações entre essas formas distintas de ver e viver o mundo. Essa “rede” que a interação entre as diversas formas de conhecimento tece necessita a admissão de que todas essas formas têm seu valor intrínseco e contemplam aspectos relevantes da realidade. Não é possível estabelecer que  determinado aspecto é o mais importante, ou o mais verdadeiro, aquele que deve ser o guia para a ação e tomada de decisões, independentemente do contexto. Assim, a ciência, como uma dentre várias formas de ver a realidade dá conta de determinados aspectos que, por vezes — mas não sempre — serão os mais relevantes para a vida das pessoas. 

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