Edição 204 | 13 Novembro 2006

Uma discriminação internalizada

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IHU Online

Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com a monografia Olhares sobre o viver, o morrer e o permanecer a partir de um exercício etnográfico junto a idosas na cidade de Porto Alegre, Maria Cristina França é mestre pela mesma instituição, na qual também é doutoranda em Antropologia Social. Sua dissertação intitulou-se A cidade narrada na memória dos velhos habitantes de Teotônia (RS): estudo etnográfico de memória intrageracional e compartilhada sobre as experiências transmitidas na relação entre avós e netos.

Maria Cristina França é professora no Centro Universitário La Salle (Unilasalle), de Canoas, e autora de inúmeros artigos publicados em periódicos, trabalhos e resumos incluídos em anais de congressos. Por e-mail, a pesquisadora falou à IHU On-Line sobre o envelhecimento, constatando na sociedade uma “discriminação internalizada, que freqüentemente leva os idosos a uma atitude de negação, procurando uma aparência mais jovem para serem aceitos e acolhidos, obscurecendo suas características e identidade”.

IHU On-Line - O que caracteriza o processo de envelhecimento humano? Quais as principais etapas e marcas dessa experiência?

Maria Cristina França
– A Antropologia tem buscado analisar os processos em que as diferentes representações a respeito dos ciclos de vida – infância, adolescência e juventude – são construídas com base em valores referidos socioculturalmente. Atualmente, temos nos deparado com a expressão “terceira idade”, reconhecida como uma categoria de idade que, como as outras, foi construída histórica e socialmente, com a diferença que é uma categoria recente, que surge nas sociedades ocidentais contemporâneas e que, como uma criação arbitrária e constitutiva de realidades sociais específicas - não só com variações em sociedades diferentes, mas também no interior de uma mesma sociedade –, traz, na sua origem, a questão política e conseqüentes redefinições das posições de grupos sociais distintos nos espaços sociais que atuam. A categoria “terceira idade” encontra-se diretamente relacionada às novas definições do envelhecimento e da velhice, que encontra na modernidade o espaço para opor-se ao antigo modelo que comprometia a autonomia dos idosos não só economicamente, como também cultural e psicologicamente, provocando uma população socialmente marginalizada.

IHU On-Line - O que representa a evolução farmacológica, que trata mais e mais doenças, prolongando a vida das pessoas? 

Maria Cristina França –
O momento histórico que marca a sociedade ocidental moderno-contemporânea se traduz no avanço da medicina moderna, dos novos conhecimentos científicos e tecnológicos. Assim sendo, deve-se acenar para os investimentos das indústrias de fármacos – que têm permitido uma qualificação do estado de saúde e processos de cura de doenças que afligiram nossa sociedade até recentemente, alongando biologicamente a qualidade de vida humana. Além do conhecimento médico-científico que oportuniza a longevidade, a construção social da terceira idade se refere a um fenômeno que diz respeito ao desenvolvimento da política de globalização e valores a ele agregados, como resultantes da ideologia individualista predominantemente no século XX. Isso denota, portanto, um processo de construção social, de projeção de um cotidiano com qualificação das formas de sociabilidade, dando sentido ao tempo e aos espaços vividos por idosos ou velhos. Esses novos valores podem ser compreendidos pelo posicionamento significativo e produtivo do idoso como cidadão, como guardião da memória, como referência aos projetos familiares e ator social em um movimento de diálogo transgeracional.

IHU On-Line - Qual sua opinião sobre a utopia existente na sociedade de que os “jovens têm razão” em sua forma de viver?

Maria Cristina França
– Eu não emito uma opinião, uma vez que compreendo não como uma utopia, pois se trata de representações simbólicas definidas no contexto das sociedades moderno-contemporâneas ocidentais. O fato da existência da valorização da juventude em detrimento às outras etapas do curso de vida diz respeito, em parte, ao modelo produtivo da nossa sociedade. Essa etapa está associada à procriação e à participação no mercado de trabalho, ao contrário da velhice que, no imaginário social, é pensada como uma carga econômica para a sociedade e como uma ameaça às mudanças.

IHU On-Line - O que significa o comportamento de idosos que não querem mais transmitir maturidade, experiência de vida, mas querem demonstrar juventude a cada dia? O que significa antropologicamente esse sentimento de “eterna juventude”?

Maria Cristina França
– Reproduzo literalmente uma parte de um texto produzido livremente pela Profa. Dra. Cornelia Eckert  por considerá-lo pertinente à questão proposta: “O sentimento de liberdade de expressão, de comunicação, de criação, de relação, de transmissão de experiências, de superação de medos intimistas e complexos afetivos é o grande ganho deste momento histórico de interlocução entre as gerações. Como todo contexto de liberdade, há erros, exageros, perdas e enganos. Mas são os atores sociais que constroem estas situações, os seus atos são inteligentes e inteligíveis. Não importa a idade ou ciclo de vida, acabamos por aprender que se nossos projetos não consistirem bases para uma coletividade, referências para uma geração futura, ou aprendizados com gerações passadas, a armadilha individualista é solitária e sombria e acaba por desencantar a própria rotina. Os idosos envolvidos em movimentos de terceira idade sabem que podem construir algo coletivamente, e é disto que precisamos mais do que nunca: ter projetos individuais, coletivos, de interface, de interlocução, sinceros, dialógicos e humanitários. Neste ínterim, os projetos de embate às desigualdades sociais e econômicas gritantes como no Brasil  deve ser um dos motes encabeçados por este movimento de idosos, orientando para que, se é necessário e importante identificar um novo perfil da chamada terceira idade, que seja uma geração que busque ainda superar a indiferença para tanta injustiça social”.

Para complementar, cabe propor uma reflexão sobre quais são os aspectos estéticos em jogo na nossa sociedade atualmente: o corpo dos velhos é o corpo “diferente”, comparado – em agressiva desvantagem – com o modelo de corpo e beleza jovens valorizados extensamente. E, sob essa ótica que propõe o sentido de exigência, surgem profissionais especializados em uma alimentação saudável e rejuvenescedora, em exercícios físicos eficazes para retomar movimentos e agilidade, danças de salão, moda mais jovem etc. Esses aspectos contribuem para a dificuldade de construção e fixação de uma identidade de idoso, indesejada pela rejeição socialmente estabelecida tanto no campo ético quanto no estético. É, portanto, essa discriminação internalizada que freqüentemente leva os idosos a uma atitude de negação, procurando uma aparência mais jovem para serem aceitos e acolhidos, obscurecendo suas características e identidade.

IHU On-Line - Quais os impactos sociais de uma população cada vez mais velha e com essas características?

Maria Cristina França
– As últimas décadas têm mostrado novas conformações associadas ao tema envelhecimento. Percebe-se claramente a alteração gradativa dos estigmas atribuídos aos idosos que, anteriormente, limitavam esse período da vida à decadência, à incapacidade para o trabalho, à dependência, ao desrespeito. Esse movimento de alternância iniciado na Europa reflete-se no Brasil com a criação de grupos representantes cujas conquistas sociais revelam no cotidiano a adoção de imagens positivas associadas ao idoso. No entanto, as ações políticas mais efetivas ainda marcam a vulnerabilidade a que os idosos estão submetidos. As causas da mudança de comportamento da sociedade com relação ao envelhecimento e à velhice são variadas e apontadas por muitos autores com diferentes graus de relevância. Observa-se a questão demográfica, em que é notória a presença de uma parcela idosa cada vez mais significativa numericamente, a aposentadoria precoce em decorrência de avanços do campo científico da saúde, a velhice como fonte de arrecadação da indústria do consumo, a conquista de novos papéis sociais que compõem a demanda do mundo contemporâneo, entre outros. O importante ao pensar essa questão é que ela deve ser compreendida em seu conjunto e que contemplá-la, buscando categorizá-la em graus de importância, torna a tarefa infrutífera.

IHU On-Line - Antropologicamente, como o conceito de velhice vem mudando nos últimos séculos?

Maria Cristina França
– Havia até a década de 1960, aproximadamente, uma “conspiração do silêncio” ou invisibilidade que caracterizava o tema “velhice”. Essa situação é gradativamente rompida a partir de publicações internacionais traduzidas e editadas no Brasil, que trouxeram novas perspectivas e motivaram a observação do crescimento do número de idosos como resultado dos avanços de tecnologias ligadas à área da saúde e afins, bem como trabalhadores que passa à aposentadoria mantendo todos os benefícios que detinham na atividade produtiva. É nos anos 1980, porém, que o envelhecimento passa a ser um tema privilegiado pela Antropologia diante dos inúmeros desafios enfrentados pela sociedade brasileira contemporânea. Os desafios citados partem de uma parcela da população mais representativa e que apresenta sinais importantes de mudança nas formas de pensar e gerir a experiência cotidiana, ou seja, nas novas propostas de a sociedade projetar a sua própria reprodução. Com a socialização progressiva da velhice – antes considerada como própria da esfera privada familiar ou de associações privadas ou filantrópicas – passa a ser encarada não mais através de imagens negativas caracterizadas pela decadência física e ausência de papéis sociais. Ao contrário, a visão da velhice passa a exigir a revisão de estereótipos, a substituição de um processo de perdas pela idéia de que a madureza traz momentos propícios para novas conquistas, guiados pela busca de prazer e satisfação social. Observa-se, portanto, a designação idoso para aquelas pessoas mais velhas e terceira idade para os “jovens velhos”, com direito a um novo mercado voltado para essa categoria: o turismo, produtos de beleza e alimentares, profissionais especializados etc.

IHU On-Line - Como a senhora percebe o papel da mídia na criação de um mito da eterna juventude, mostrando atrizes de mais de 60 anos com o corpo esculpido?

Maria Cristina França
– No âmbito das ciências sociais, os meios de comunicação de massa nas sociedades ocidentais contemporâneas têm um papel destacado na indústria de produtos culturais, visando principalmente ao consumo. Nessa direção, as mercadorias dispostas à venda são imagens do mundo, organizadas por esses meios para atender a um público-massa, homogeneizando-o. O princípio da lucratividade dispõe essas “mercadorias” de forma idealizada, promovendo um espaço mínimo para estabelecer um conjunto criterioso sobre as inúmeras ofertas e apelos de consumo. Por sua vez, as distâncias físicas e sociais são diminuídas pelo acesso amplo da informação, sendo capazes de contribuir para a ampliação dos horizontes de conhecimento, quando há a preocupação em veicular determinados tipos de ação cultural que mantenham em seu interior valores culturais que estimulem a reflexão crítica dos inúmeros grupos sociais. Com relação à criação de um “mito da eterna juventude”, podemos pensá-lo ora como uma ideologização que tende a eliminar a humanização do envelhecimento e da morte, ora como um desfacelamento dos limites do ciclo e do curso da vida em virtude do aumento da esperança de vida no âmbito mundial. Com base nisso, o que não podemos perder de vista é que o envelhecimento não é um processo homogêneo, em que cada indivíduo vivenciará essa etapa da vida, levando em conta a sua história pessoal e todos os aspectos estruturais – classe, etnia, gênero – a eles relacionados, como saúde, estilo de vida, trajetória familiar, educação. O importante é que se possa reconhecer a capacidade dos idosos de estabelecer os contornos de seus próprios interesses em um mundo repleto de outros muito interesses. 

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