Edição 455 | 29 Setembro 2014

Neurociência e gestão da vida. Um olhar sobre a obra de Nikolas Rose

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Luciano Gallas e Andriolli Costa

Eduardo Zanella e Miguel Herrera apresentam um panorama do pensamento do sociólogo britânico, que busca construir pontes entre a neurologia e as Ciências Humanas

A virada neurológica das humanidades é um fenômeno que surge da busca — inatingida — por estabelecer diálogos transdisciplinares entre as Ciências. Seduzidos pelo papel neurológico do cérebro ou pela objetividade representada pelos scanners e neuroimagens, os pesquisadores das Ciências Sociais, por vezes, incorrem naquilo que a crítica convencional acusa de “reducionismo biológico”. No entanto, para os antropólogos Eduardo Zanella e Miguel Herrera, este não é o caso do sociólogo britânico Nikolas Rose. 

Rose iniciou seus estudos a partir de perspectivas históricas, enfocando a psicologia e a psiquiatria biológica até, por fim, chegar à neurociência. Para os antropólogos, ele se destaca entre os pesquisadores da área por buscar “uma perspectiva conciliável e de colaboração mútua entre este campo do conhecimento e as ciências sociais”. Ou, nas palavras do sociólogo, não se trata de pensar que o ser humano é um cérebro, mas de ter consciência de que ele tem um cérebro. “Em outras palavras, trata-se de localizar no cérebro a chave para descobrirmos aquilo que somos e aquilo que podemos ser.”

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, os dois antropólogos discutem a relevância de Nikolas Rose ao expor as rupturas de paradigmas que afetam não apenas as Ciências Humanas, mas as Biológicas. Refletem ainda sobre as visões e discursos do cérebro em nossa sociedade e sobre a imposição do discurso biológico como ferramenta biopolítica — conceito inicialmente proposto por Foucault, mas atualizado em Rose para pensar os dispositivos de controle em diálogo com nossa contemporaneidade descentralizada. Por fim, evidenciam o que Rose chama de “ética somática”, o desejo de ser e estar melhor. É aí que entram elementos tão presentes em nossa cultura, como “medicamentos, exercícios de ginástica cerebral, livros de autoajuda, tecnologias de visualização da atividade cerebral, terapias cognitivas e comportamentais, entre outras”.

Zanella e Herrera apresentarão o livro Neuro: The New Brain Sciences and the Management of Life (Princeton: University Press, 2013), de Nikolas Rose escrito em parceria com Joelle M. Abi-Rached — pesquisadora de medicina, filosofia e políticas públicas. A apresentação e debate do livro ocorre no dia 09-10-2014, às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. 

O debate do livro prepara a realização do XIV Simpósio Internacional IHU: Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea

Nikolas Rose participará do evento proferindo a conferência A biopolítica no século XXI: cidadania biológica e ética somática, no dia 22-10-2014, a partir das 9 horas, no Auditório Central da Unisinos, em São Leopoldo.

Eduardo Doering Zanella é Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, com bacharelado em Ciências Sociais pela mesma universidade. Miguel Hexel Herrera é mestrando em Antropologia Social pela UFRGS, onde também cursou o bacharelado em Ciências Sociais. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quem é Nikolas Rose e qual é a sua expressão no estudo das novas neurociências?

Eduardo Zanella - Nikolas Rose é um proeminente sociólogo britânico, professor da London School of Economics, onde ocupou a cátedra de sociologia mais antiga da Grã-Bretanha, a James Martin White. É também chefe do Departamento de Ciências Sociais, Saúde & Medicina da King’s College London e codiretor do Centro de Biologia Sintética e Inovação, uma colaboração entre a King’s College London e a Imperial College London. Sua trajetória de pesquisa é bastante extensa, e de uma forma geral tem explorado as maneiras pelas quais os conhecimentos científicos vieram a conceber o que significa ser humano, e quais as implicações destas concepções para nossos contextos políticos e socioeconômicos. Rose iniciou seus estudos com perspectivas históricas, enfocando principalmente a história da psicologia, e a partir do estudo da psiquiatria biológica passou a tomar como objeto de suas investigações as ciências da vida em geral e a biomedicina em particular, abordando mais recentemente as neurociências.

Rose se destaca entre os pesquisadores que estudam as neurociências, entre outros fatores, por tentar escapar a uma crítica convencional, que as acusa de “reducionismo biológico”, buscando uma perspectiva conciliável e de colaboração mútua entre este campo do conhecimento e as ciências sociais. De acordo com o autor, as neurociências vivem hoje rupturas de paradigmas e questões semelhantes àquelas com as quais também se defrontam as ciências sociais, tais como as imbricações entre natureza e cultura, corpo e meio/sociedade ou mesmo a existência de livre arbítrio e de uma realidade objetiva externa ao ser. Outro elemento que caracteriza Nikolas Rose neste campo de estudos são suas investigações centradas sobre a “produção de ponta” e a literatura especializada das neurociências. Suas pesquisas são empreendidas com material empírico proveniente de periódicos científicos, livros e entrevistas de autores estabelecidos, sem abordar muito, por exemplo, o campo da divulgação científica ou da “ciência popular”. 

Miguel Herrera - Penso que é interessante mencionar que antes de iniciar suas pesquisas em sociologia, Nikolas Rose ingressou na Sussex University, onde cursou biologia por dois anos, quando pediu transferência para o curso de psicologia. Rose possui uma fecunda produção, tendo publicado diversos livros, dentre os quais destaco: Governing the Soul: The Shaping of the Private Self (London: Free Association Books, 1989), Inventando nossos Selfs - psicologia, poder e subjetividade (Petrópolis: Editora Vozes, 2011), Governando o presente: gerenciamento da vida econômica, social e pessoal (São Paulo: Paulus, 2012), A política da própria vida - Biomedicina, poder e subjetividade no século XXI (São Paulo: Paulus, 2007) e Neuro: The New Brain Sciences and the Management of the Mind (Princeton: University Press, 2013). 

‘Neuro’ foi escrito em coautoria com Joelle M. Abi-Rached, que possui graduação e mestrado em Medicina pela American University of Beirut, e mestrado em Philosophy and Public Policy pela London School of Economics and Political Science. Atualmente Abi-Rached é doutoranda em História da Ciência na Universidade de Harvard, onde trabalha em uma tese que explora a história da loucura no Levante (região do Oriente Médio que inclui a Síria, Líbano, Jordânia, Chipre, Israel e territórios Palestinos, Iraque, Geórgia, Armênia e Azerbaijão). 

Como o Eduardo mencionou, o trabalho mais recente do autor toma como objeto de pesquisa o desenvolvimento das neurociências. O material empírico analisado pelos autores consiste — majoritariamente — em artigos científicos influentes sobre o tema e fontes documentais, entretanto, é importante apontar que Rose leva em alta conta o trabalho de campo junto a cientistas das ciências naturais e biomédicas. O autor procura se afastar do trabalho de campo etnográfico sem romper o diálogo com a antropologia. O mesmo pode ser dito das outras disciplinas. 

Em Neuro — e em outros de seus escritos recentes — há um esforço consciente em manter diálogo com pensadores oriundos de diferentes áreas, como filosofia da ciência, história, sociologia, psicologia, antropologia, ciências políticas, economia e estudos sociais da ciência e tecnologia (ESCT), por exemplo. Rose incorpora ideias de diferentes pensadores, como Bruno Latour , Emily Martin , Ian Hacking , Ludwik Fleck  e Paul Rabinow , e as transforma em suas próprias ferramentas conceituais que são constantemente reinterpretadas ou substituídas conforme o contexto. O objetivo de Rose não é construir um modelo explicativo definitivo que se encaixe em qualquer objeto de pesquisa, mas sim pensar cuidadosamente em ferramentas conceituais adequadas às necessidades do pesquisador. Por exemplo, de acordo com o autor (2008, p.307), o conceito de governamentalidade com o qual trabalhou anteriormente pode ser classificado como “(...) uma espécie de máquina para produzir análises empíricas com um enquadre teórico” (2008, p.303).

 

IHU On-Line - Em que medida essas novas neurociências se relacionam com a gestão da vida em nosso tempo?

Eduardo Zanella - A consolidação das neurociências, enquanto um campo de conhecimento específico, está associada à emergência de uma nova forma de compreensão do ser humano e de sua natureza, que vem ganhando força nos últimos tempos. Fundamentalmente, trata-se de perceber as faculdades mentais do humano, que constituem a sua própria humanidade — cognição, emoção, volição, etc. — enquanto propriedades imanentes do cérebro, entendido enquanto um órgão plástico e visível que, como qualquer outro, em princípio está aberto à investigação científica ao nível molecular. Em outras palavras, trata-se de localizar no cérebro a chave para descobrirmos aquilo que somos e aquilo que podemos ser. 

Este processo, consequentemente, sugere e leva a novas formas de intervenção sobre a vida humana. Afinal, o surgimento e o estabelecimento de um campo científico sempre estão intimamente conectados, em uma relação de produção mútua, com transformações mais amplas em uma dada sociedade. Deste modo, junto com esta nova forma de compreensão de nossa natureza, passam a ser crescentes os clamores para que os assuntos que dizem respeito às sociedades humanas e aos seus indivíduos sejam conduzidos por meio de conhecimentos neurocientíficos. Estes clamores se materializam na emergência de um amplo espectro de práticas e dispositivos de intervenção focados no cérebro, sejam destinados a práticas de cura, sejam a práticas de aprimoramento social e individual, bem como na tendência, cada vez maior, de que políticas públicas sejam elaboradas a partir de conhecimentos neurocientíficos. Embora isto não seja tão comum no contexto brasileiro, pude perceber em minha pesquisa de mestrado, desenvolvida junto a um coletivo de cientistas psiquiatras, que era bastante convencional às pesquisas focadas no cérebro que almejassem subsidiar a elaboração de políticas públicas no campo da saúde mental, por exemplo. 

Contudo, é arriscado fazer este tipo de generalização. Diferentes sociedades e configurações sociopolíticas vão oferecer diferentes oportunidades para as ciências do cérebro. Também não é possível estabelecer uma relação direta e imediata entre os avanços nos programas de pesquisa das neurociências e a produção de novas terapias, produtos ou meios de governo da vida. Diferentemente, considero que o mais importante a salientar, no presente contexto, é a emergência de um novo imaginário de possibilidades para intervenções na vida humana, centrado no cérebro e em suas potencialidades. 

Miguel Hexel Herrera - Uma preocupação dos autores foi descrever como as ciências neurológicas estão saindo dos laboratórios e entrando no mundo (2013, p.225). Essa ‘fuga’ das neurociências se deve a uma série de ‘mutações biopolíticas’ que serão examinadas com cuidado mais adiante, mas aproveito o gancho propiciado pelo último comentário do Eduardo para falar um pouco sobre os efeitos gerados por essa entrada das neurociências e das ‘neurotecnologias’ em nossas vidas cotidianas. No bojo destes dispositivos e práticas, podemos destacar o crescente uso de medicamentos, os exercícios de ginástica cerebral, livros de autoajuda, tecnologias de visualização da atividade cerebral, terapias cognitivas e comportamentais, entre outras. 

Um dos conceitos que os autores usam para compreender como essas descobertas se consolidam é o “estilo de pensamento” cunhado por Ludwik Fleck. Segundo Rose um estilo de pensamento consiste em um modo específico de pensar, observar e praticar ciência. Certas explicações e argumentos só são realmente compreendidos caso estejam inseridos em uma forma de pensamento específica. Declarações, argumentos e explicações só são possíveis e inteligíveis inseridos naquele dado modo de pensar. É o estilo de pensamento que define a significância de determinado fenômeno. 

Rose explica que o estilo de pensamento define o que é uma evidência e o que não é e de que modo podem ser utilizadas, assim, “(...) sujeitos são escolhidos e recrutados; sistemas-modelo são imaginados e agenciados; instrumentos são inventados para fazer medições e inscrições como gráficos, mapas e tabelas”. Os autores dirão — cientes do risco considerável de simplificação — que ao longo do século XX é possível distinguir quatro estilos de pensamento que possibilitaram o entrelaçamento das neurociências com o controle da própria vida (Cheida, 2014), a saber:

1- o estilo neuromolecular

2- o estilo genético

3- o estilo da neuroplasticidade 

4- o estilo das tecnologias de visualização do cérebro/neuroimagem

 

Muitas descobertas-chave sobre os mecanismos moleculares do cérebro surgiram no curso de experimentos acerca dos mecanismos de ação das drogas, quase sempre utilizando modelos animais. O objetivo seria apreender a normalidade e a anormalidade do cérebro por meio de neurotransmissores disfuncionais e de testes com drogas farmacológicas. Esse seria o estilo neuromolecular, responsável pela consolidação de um imaginário psicofarmacológico capaz de estabelecer relações entre laboratórios, clínicas, comércio e a vida cotidiana; particularmente entre as companhias farmacêuticas, a comunidade de pesquisa neurobiológica e os médicos psiquiatras.

O segundo estilo de pensamento seria o genético, que faz as vezes de andaime para o referido imaginário farmacológico (e também neuroquímico) do cérebro. O mapeamento genético prometia apontar, entre outras coisas, anomalias. Essa problemática do que seria normal e patológico pode ser aprofundada mais adiante. 

Já o estilo de pensamento da plasticidade postula que as sinapses do cérebro e suas conexões modificam-se conforme o desenvolvimento biológico do cérebro, mas não descarta outros fatores, levando em consideração as experiências pessoais que o sujeito vivencia ao longo da vida. E, finalmente, o estilo de pensamento das técnicas de visualização do cérebro (ou técnicas de neuroimagem). O eletroencefalograma (EEG) — técnica de exame cerebral usada desde 1929 — parecia proporcionar um diagnóstico psiquiátrico objetivo e, assim, estabelecer as condições normais e anormais de funcionamento da psique, que parecem nos abrir a novas estratégias de intervenção através do cérebro. Os autores assinalam que as técnicas de neuroimagem mais utilizadas atualmente são a Tomografia por Emissão de Fótons (SPECT) e a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET).

Rose e Abi-Rached (2013) argumentam que nas décadas finais do século XX no Ocidente, nós vimos emergir uma espécie de “ética somática”, com a qual muitas pessoas se identificaram, passando a interpretar muitos dos seus mal-estares em termos da saúde, vitalidade ou morbidade de seus corpos. Tratava-se de agir sobre sua condição somática com a finalidade de não apenas se tornar fisicamente melhor, mas uma melhor pessoa. De acordo o autor, estaríamos agora vendo esta ética somática gradualmente se estender do corpo para o cérebro, compreendido enquanto a corporificação da mente. É nesse contexto que começam a surgir uma série de práticas e dispositivos que visam agir sobre o cérebro, com o intuito do autoaprimoramento e incremento do bem-estar. As pedagogias do cérebro estão dentro das técnicas de trabalho sobre o self somático.

 

IHU On-Line - Quais são os principais frutos do esforço de diálogo entre Nikolas Rose e Paul Rabinow acerca do conceito de biopolítica em Foucault?

Eduardo Zanella - O conceito de biopolítica em Foucault não é atemporal, mas desenvolvido a partir de intensa pesquisa, individual e coletiva, acerca do funcionamento de determinadas tecnologias de poder em um dado período histórico. Trata-se de um termo que caracteriza o surgimento, a partir do século XVIII, nos Estados-nação em desenvolvimento nas sociedades ocidentais, de um conjunto de procedimentos e dispositivos de controle, normalização e regulação centrados não mais somente sobre o sujeito em si, mas também sobre o homem tomado enquanto espécie. 

Para além de um poder soberano, individualizante, cujo principal meio de coerção era a possibilidade de seu detentor decidir sobre a vida e a morte de seus subordinados, o biopoder faz referência a um poder que, ao apreender o homem enquanto espécie, é massificante e exercido pela capacidade de produzir, gerenciar e otimizar a vida da população que governa, entidade que passa a ser o objeto de sua atenção. Em suma, não mais um poder que “faz morrer” e “deixa viver”, mas sim o contrário, um poder que “faz viver” e “deixa morrer”. Deste modo, é constituinte da biopolítica, por exemplo, o início das categorizações das populações nacionais, suas taxas de natalidade, morbidade, longevidade e as intervenções sobre as mesmas; os levantamentos epidemiológicos e as ações do Estado feitas em nome da higiene pública; a criação de mecanismos de seguridade social, etc.

Nikolas Rose e Paul Rabinow (2006), em um clássico texto no qual discorrem sobre os limites e as potencialidades deste conceito, atentam para a sua historicidade e para a necessidade de sua atualização, caso queiramos analisar as racionalidades e as tecnologias de poder próprias das sociedades atuais, diferentes daquelas que caracterizaram o período analisado por Foucault. Um dos motivos que leva os autores a repensar este conceito é a descentralidade do Estado no exercício do poder situado e operado ao nível da própria vida. Cada vez mais aparatos e autoridades não estatais constrangem e demandam sobre o poder central do Estado: um campo heterogêneo formado por organizações filantrópicas, grupos de pressão e de movimentos sociais, comunidades profissionais, comissões de bioética, empresas privadas, associações de pacientes, etc. Também o próprio nível de exercício do biopoder estaria em mutação, de um plano molar para um molecular; assim como as políticas da vida hoje em dia não dizem mais respeito somente ao eixo saúde-doença, que distinguia as políticas do século XVIII. Ou seja, os agentes, as racionalidades, os objetivos, as estratégias e as tecnologias do biopoder se transformaram ao longo do século XX.

Tendo em vista estas modificações, Rose e Rabinow (2006) sugerem que o conceito de biopoder deve direcionar a nossa atenção analítica para estratégias e configurações que combinam três dimensões ou planos: A) discursos sobre a verdade dos seres vivos e as autoridades que os veiculam, B) intervenções sobre a existência coletiva em nome da vida e da morte, e C) modos de subjetivação em que os indivíduos atuam sobre si próprios, em nome da vida ou da saúde individual ou coletiva. Assim, o conceito de biopoder passa a tornar possível o escrutínio analítico de novas situações de intervenção realizadas sobre as características vitais da existência humana, exploradas por Rabinow e Rose em diversos campos ou temas: medicina genômica, neurociência, ativismo biológico, biotecnologias, genética, produção e consumo de medicamentos, entre outros. 

Portanto, é possível afirmar que um dos principais frutos do diálogo de Rose e Rabinow, acerca do conceito de biopoder, diz respeito ao seu trabalho de atualização e refinamento conceitual, bem como à consequente entrada, nas agendas de pesquisa das ciências humanas e sociais, de investigações críticas acerca dos dispositivos e das tecnologias de poder exercidos sobre a vida que são próprias às nossas realidades contemporâneas.

Miguel Hexel Herrera - Complemento a fala do Eduardo com um breve comentário sobre a noção de ‘cidadania biológica’ trabalhada por Rose, Carlos Novas  (2004), Rabinow (2006) e, mais recentemente, Petryna  (2002, 2011). Os autores observam a disseminação de todo um ‘complexo biomédico’ após a Segunda Guerra Mundial. O estabelecimento de agências regulatórias, comissões de bioética e organizações profissionais que detém grande autoridade sobre novas tecnologias (tratamentos inovadores e medicamentos), sobre a reprodução e o direito à vida (e morte) faz com que um novo ‘tipo de paciente’ venha à tona. Esse ‘cidadão biológico’ pertenceria ao reino do biopoder. A antropóloga Adriana Petryna aborda essa questão em seu livro sobre os efeitos do desastre de Chernobyl  (2002), onde demonstra como cidadãos afetados pelo desastre acionaram o Estado ucraniano a fim de obterem compensação, afirmando uma cidadania política a partir dos danos biológicos causados pelos efeitos da radiação em seus corpos. 

Petryna aponta que, por conta do número cada vez maior de ensaios clínicos, “as características dos cidadãos se apresentam como recursos não apenas para o Estado, mas também para o mercado”. As observações indicam que a ideia de cidadania associada à sobrevivência “faz proliferar uma nova figura médico-social”: os pacientes cidadãos que perderam a confiança no estado e buscam formas de empoderamento alternativas, como a reinvindicação a “recursos biomédicos”, inclusive acesso a ensaios clínicos ou tratamentos experimentais e sem eficácia comprovada.

No Brasil esse cidadão biológico manifesta-se, por exemplo, através do fenômeno conhecido por “judicialização da saúde”. Trata-se das ações judiciais para obtenção de tratamentos e/ou medicamentos, principalmente aqueles de alto custo. A judicialização do direito à saúde está intimamente ligada à Constituição de 1988, cujo artigo 196 expressa que “a saúde é um direito de todos e um dever do Estado”. Esta demanda foi iniciada com ações judiciais que reivindicaram medicamentos para AIDS, tendo posteriormente migrado para outros grupos de doenças, tornando mais frequente a interferência do Poder Judiciário em questões concernentes aos Poderes Executivos ou Legislativos. Essa cidadania biológica implica a formação de grupos e associações de pacientes que buscam maneiras de contornar dispositivos biopolíticos de controle da população. 

 

IHU On-Line - Qual é o nexo que une biopolítica e neuropolítica a partir da perspectiva de Rose?

Eduardo Zanella - O conjunto de procedimentos e tecnologias que constituiu a biopolítica, naquilo que diz respeito às políticas de saúde do século XVIII, às preocupações com a degenerescência da população no século XIX, ao nascimento da eugenia e à emergência das estratégias de seguridade social no início do século XX, sempre foi orientado para o futuro, em um projeto explícito de engenharia social. Tratava-se de produzir nações mais “fortes”, mais “saudáveis” e, em algumas situações, também racialmente mais “puras”. Imagens ou projetos de uma sociedade porvir são intrínsecas ao exercício do poder por meio e em função da própria vida. 

Este aspecto, marcadamente clássico da biopolítica, se mostra presente e particularmente intensificado no que se refere à “neuropolítica”, para designar assim a emergência de formas de governo através e em nome do cérebro, a partir de conhecimentos neurocientíficos. De acordo com Nikolas Rose e Joelle Abi-Rached (2013), a projeção de futuros imaginados é central para as problematizações contemporâneas em torno do cérebro, de tal modo que os autores argumentam que as neurociências impõem às autoridades não somente a necessidade de “governar o presente”, mas também de “governar o futuro”. Esta característica da neuropolítica se manifesta, dentre outras maneiras, em uma preocupação e esforços crescentes para a prevenção de comportamentos patológicos em termos gerais e de transtornos mentais de forma específica, cujos critérios de diagnóstico têm se tornado cada vez mais inclusivos. Trata-se de uma ênfase na prevenção e não na cura, o que tem significado também intervenções cada vez mais precoces.

É nesse sentido que Rose e demais autores descrevem uma mudança na lógica que gere as formas de governo na neuropolítica. Não se trataria mais de “disciplinar e punir”, mas sim de “triar (screening) e intervir” (Singh and Rose, 2009; Rose, 2010). Neste novo paradigma, primeiramente se identificariam as suscetibilidades de ocorrência de determinados agravos ou transtornos mentais em uma dada população, para depois se intervir sobre a mesma, com a finalidade de minimizar as chances de seus desenvolvimentos, maximizando assim o bem-estar individual e coletivo e reduzindo os futuros custos do Estado com o tratamento de problemas mentais. 

Miguel Hexel Herrera - Do mesmo modo, é nesse sentido que os autores argumentam que um dos projetos mais fortes das neurociências é a descoberta de biomarcadores no cérebro ou nos genes de jovens e crianças que possam prever o desenvolvimento de personalidade antissocial ou psicopatias. A antropóloga Claudia Fonseca  (2013) retoma as discussões de Ian Hacking (2001) e Nikolas Rose (2006) acerca de novas tecnologias (como bancos de dados de perfis genéticos) e de alguns efeitos inesperados que estas inovações produzem. No caso, a ‘criação de novos tipos de ser humano’. Uma pergunta fundamental aqui é como esses processos de inovação tecnológica afetam as subjetividades das pessoas. A obra de Ian Hacking possui alguns pontos em comum com as pesquisas recentemente conduzidas por Rose. Em seus estudos, Hacking trabalha com categorias que foram criadas ao longo do século XX, tais como esquizofrenia, múltiplas personalidades, abuso sexual e autismo, demonstrando como estes termos alcançam a própria identidade das pessoas (Hacking, 2001). Dessa forma, esses ‘novos tipos’ de pessoas “(...) classificatórios e portanto valorativos, se mostram ‘mediadores’ por excelência entre tradições do passado e inovações do momento, entre saberes científicos, invenções tecnológicas, categorias de percepção e modos de ação”.

É interessante pensar este assunto e levantar algumas perguntas a partir de casos empíricos, como a medicalização dos transtornos de aprendizagem e comportamento, mais especificamente o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Como as pessoas justificam o uso, se apropriam desta categoria e se identificam a partir dela? E qual o papel dos medicamentos na definição e autorreconhecimento da pessoa como portador do TDAH? Tão importante quanto essas perguntas é o questionamento acerca de como novas políticas públicas estão sendo elaboradas com base em conhecimentos neurocientíficos. Um tema constantemente explorado por Rose (2001, 2007, 2012) é a expectativa gerada por essas novas tecnologias e a centralidade da prevenção no contexto médico contemporâneo. O autor não se opõe à identificação e prevenção de condições médicas, mas ressalta que essa preocupação com a suscetibilidade para doenças não implica necessariamente em soluções (tratamentos) definitivas. Rose (2008) alerta que a emergência desse processo de "triar (screen) e intervir" ocasionou um aumento alarmante do uso de psicofármacos entre crianças, por exemplo.  

 

IHU On-Line - Em que medida há uma redefinição dos conceitos de normal e patológico, cura e melhoria, saúde e doença a partir dos recentes desenvolvimentos das ciências do cérebro e das neurotecnologias?

Eduardo Zanella - As neurociências prometem revolucionar o conhecimento que dispomos sobre os transtornos mentais, suas causas e consequências, bem como anunciam que vão, através do cérebro, vigiar, prever, modificar e melhorar as mais diversas de nossas capacidades humanas. Estas promessas vêm acompanhadas de novas formas de compreender determinados limites ou fronteiras, tais como aquelas entre saúde-doença, normal-patológico ou cura-melhoria. Contudo, é preciso ser cuidadoso com este tipo de comentário generalizante. Mesmo que consideremos que as pesquisas e investigações sobre o cérebro e sobre o sistema nervoso ocorram desde há muitos séculos, a instituição das neurociências enquanto um campo específico de conhecimento tem somente meio século de idade. E as suas concepções de ser humano podem coexistir, e de fato coexistem, com várias outras, inclusive contraditórias, em um dado momento histórico. E é sempre muito perigoso anunciar a emergência de um novo paradigma sobreposto aos demais. 

Também o papel ou a influência das neurociências na redefinição destas fronteiras não se dá de maneira genérica, mas sim em campos específicos, de acordo com a sua maior ou menor entrada. No que se refere à aproximação entre as neurociências e a psiquiatria, por exemplo, começa a se tornar cada vez mais forte a veiculação de ideias neuroquímicas de psicopatologias. O estilo de pensamento molecular, em desenvolvimento no campo das neurociências, possibilita a procura de biomarcadores que fixem a classificação diagnóstica de transtornos mentais em anomalias objetivas identificadas no cérebro. Deste modo, as neurociências cultivam a expectativa de resolver o problema clássico da psiquiatria, que é a identificação última e definitiva entre o normal e o patológico no que concerne à ocorrência de transtornos mentais. Trata-se de uma esperança, ainda longe de se concretizar na prática clínica, de reportar estes conceitos às reações neuroquímicas do cérebro.

Entretanto, esta é uma atualização, em um novo estilo de pensamento molecular, de uma ideia já antiga da psiquiatria, pois muitos de seus profissionais atuantes trabalham com a convicção de que os transtornos mentais encontram uma base física corpórea no cérebro. Podemos lembrar que Freud, por exemplo, também era neurologista. 

Miguel Hexel Herrera - O sociólogo norte-americano Peter Conrad  define medicalização como “(...) um processo pelo qual problemas não médicos se tornam definidos e tratados como problemas médicos, geralmente em termos de doenças e desordens” (2007, p.4). O autor caracteriza que os estudos sociológicos sobre medicalização “(...) enfatizam os processos pelos quais um diagnóstico particular é elaborado, aceito como medicamente válido, e passa a ser usado para definir e tratar os problemas dos pacientes” (Conrad; Barker, 2011, p.205). O autor expõe que essa medicalização está geralmente associada aos comportamentos desviantes e “eventos cotidianos”, mas ressalta a crescente inclusão de novas “categorias”: como doenças mentais, distúrbios alimentares, alcoolismo, disfunção sexual e problemas de aprendizado (Conrad; Barker, 2011, p.205). Estudos recentes confirmam o surgimento de categorias de diagnóstico como a menopausa, andropausa, disfunção sexual feminina e masculina (Senna, 2003, 2009; Rohden, 2009). A antropóloga Fabíola Rohden assinala que certas condições como a tensão pré-menstrual (TPM) ou mudanças ocasionadas pela menopausa têm sido utilizadas “(...) como chaves explicativas para as mais variadas formas de comportamento e têm alimentado uma grande indústria de tratamento dos ‘problemas femininos’” (2008, p.134). 

O capítulo 4 de Neuro (‘All in the brain?’) aborda a aproximação entre a psiquiatria e as neurociências. Essa associação busca a descoberta de explicações objetivas para problemas mentais a partir da produção de tecnologias capazes de tratar esses supostos problemas e, consequentemente, diminuir o estigma atribuído a essas condições (Henriques, 2013). Neuro não contém nenhuma resposta para esse impasse e tampouco procura definir o que é o normal e o patológico. Os autores argumentam que os avanços científicos das áreas em questão dificultam ainda mais a busca por respostas simples e diretas, pois a cada nova descoberta o fenômeno humano se torna mais complexo. Essa complexidade é invocada pelos autores para defender a ideia de que as ciências neurológicas não pretendem reduzir a condição humana a um mero órgão. Rose e Abi-Rached (2013) apostam na aproximação entre as ciências sociais e as ciências naturais, pois somente a partir de múltiplas perspectivas é possível construir um conhecimento mais aprofundado acerca do fenômeno humano. 

 

IHU On-Line - Quais são as principais mutações biopolíticas contemporâneas que se delineiam a partir do estudo das novas neurociências?

Eduardo Zanella - Um dos nexos que vincula aquilo que designamos por “neuropolítica” à “biopolítica”, qual seja, a projeção e a orientação para uma sociedade futura imaginada, aponta também para uma mutação no exercício do poder explorado pela biopolítica contemporânea centrada sobre o cérebro humano. As neurociências estão tão imbuídas de expectativas, anseios, previsões e esperanças acerca do futuro próximo que nos aguarda, que passam a estabelecer não somente uma demanda sobre as autoridades ou aqueles que nos governam, mas também sobre aqueles que desejam viver uma vida melhor e mais responsável no presente. 

Trata-se do surgimento de um amplo senso de obrigação para que os indivíduos assumam o controle e a responsabilidade pelos seus próprios destinos, o que vem a derivar em uma série de práticas de autoaprimoramento e de otimização de si, que muitas vezes não são direcionadas para a aquisição de “saúde”, mas para a produção de sujeitos “melhores” — na atividade sexual, no trabalho, nos estudos, etc. Ou seja, a própria dicotomia saúde-doença não é mais tão central na forma de exercício do biopoder contemporâneo, que passa a se manifestar também por meio da busca ativa dos sujeitos por vidas “melhores” e mais “produtivas”. Segundo Nikolas Rose, este modo de subjetivação, caracterizado por uma ênfase na autorresponsabilização dos sujeitos pelo aprimoramento de variadas esferas de suas vidas, é uma característica bastante particular desta biopolítica que emerge a partir das investigações e pesquisas contemporâneas focadas no cérebro. 

Outro elemento de mutação na forma de operação desta biopolítica, talvez ainda mais marcante, seja a emergência de um olhar molecular sobre a vitalidade humana em geral, e sobre o cérebro em particular. Rose argumenta que hoje é majoritariamente no plano molecular que a vida é compreendida e seus processos anatomizados, e não mais ao nível molar — tal como a escala dos membros, dos órgãos, tecidos, etc. Compreender a vida em sua realidade molecular significa percebê-la a partir dos mecanismos bioquímicos, das variações genéticas e das combinações de DNA, das atividades enzímicas e intracelulares. Este tipo de perspectiva ou de estilo de pensamento abre novas possibilidades de manipulação da vida e dos corpos humanos, que até pouco tempo atrás não estavam disponíveis com a abrangência que hoje estão em determinadas sociedades. E é também interessante perceber que, mesmo que de forma não hegemônica, toda uma variedade de práticas de cuidado e de saúde passa a buscar legitimação no registro molecular, desde a acupuntura até a psicanálise, por exemplo. Trata-se de uma mudança qualitativa em nossa capacidade de intervir sobre nós mesmos, que de acordo com Rose (2006) torna a vida “em si própria” aberta à política.  

Miguel Hexel Herrera - É importante reparar que estas duas mutações da biopolítica contemporânea, a emergência de um olhar molecular sobre os fenômenos da vida humana e a busca pela otimização de si em variadas dimensões da existência, são também mencionadas por Nikolas Rose em seu livro A política da própria vida – biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. Portanto, trata-se de fenômenos mais gerais que estão em desenvolvimento nos Estados de democracia liberal avançada, e que se encontram presentes, com força específica, no que se refere à consolidação e aos recentes avanços das neurociências. Deste modo, são também eixos a partir dos quais é possível analisar a biopolítica no século XXI. 

 

IHU On-Line - Gostariam de acrescentar algo?

Eduardo Zanella - Gostaria de endossar as potencialidades de pesquisas que buscam posturas preocupadas em produzir colaborações efetivas entre as ciências sociais e outros campos do conhecimento, indo além da crítica mútua, que frequentemente se mostra estagnante para ambas as partes. As ciências sociais vivem hoje muitas questões e problemas que também estão colocados para outras modalidades de produção de conhecimento, e é necessário reter estas proximidades quando elas ocorrem, pois aí se encontram possibilidades de avanços significativos. Contudo, é sempre importante ter em vista que isto não é um clamor novo que surge para as ciências sociais contemporâneas, mas sim uma lição antiga. Basta lembrarmos, por exemplo, os resultados das aproximações da antropologia com a linguística e a psicanálise em Lévi-Strauss , ou da antropologia com a física em Franz Boas ; ou mesmo que grandes pesquisadores das ciências humanas e sociais que estudam conhecimentos científicos diversos possuem formação em outras áreas, como o próprio Nikolas Rose, que cursou biologia e psicologia antes de estudar sociologia.   

Miguel Hexel Herrera - Gostaria de reforçar que o tom conciliatório da discussão empreendida por Rose e Abi-Rached não incorre em uma perspectiva sociobiológica vulgar. Neuro caracteriza-se como um trabalho interessante ao não incorrer em críticas e acusações de reducionismo por parte das ciências neurológicas, nas palavras dos autores “it is not that human beings are brains, but that we have brains.” (Rose&Abi-Rached, 2013, p. 22). Trata-se, portanto, de uma abordagem que dá importância aos processos de tradução e mediação do conhecimento. Penso que o livro oferece uma lição importante, especialmente para os pesquisadores das ciências humanas envolvidos com tecnologia e produção de conhecimento científico, ao retomar os desenvolvimentos mais recentes da neurologia. Rose e Abi-Rached demonstram como as ciências exatas e naturais também passam por transformações constantes.

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