Edição 455 | 29 Setembro 2014

Uma análise crítica do governo Dilma: a quem este governo atende em primeiro lugar?

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Redação

“O governo atual tem implementado outras políticas durante o seu mandato — algumas das quais são estruturantes — e é possível prever que, se houver um segundo mandato, elas serão mantidas, já que não houve nenhuma avaliação crítica de sua parte”, adverte o sociólogo Ivo Lesbaupin.
Elaboração: Auditoria Cidadã da Dívida – a partir de dados oficiais (www.auditoriacidada.org.br) .

O sociólogo Ivo Lesbaupin faz um balanço dos últimos 12 anos de gestão petista à frente da Presidência da República, e é enfático: “É preciso superar a concepção neoliberal, centrada no capital financeiro (bancos, investidores financeiros), assim como a concepção neodesenvolvimentista, que financia com recursos públicos grandes empresas privadas. Interromper o processo de privatização de serviços públicos e de nossas riquezas naturais (entre as quais o petróleo)”. 

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, o professor da UFRJ enfatiza que os avanços da última década foram pontuais na área social, com a redução da extrema pobreza, redução do desemprego, aumento da renda dos trabalhadores e maior acesso a bens de consumo. Contudo, a lista de críticas do sociólogo às políticas adotadas supera as benfeitorias dos governos Lula e Dilma e as compara ao que ele denomina de “uma política de direita, isto é, políticas que atendem aos interesses dos grandes grupos econômicos, políticas prejudiciais à grande maioria do povo brasileiro e que comprometem o futuro do país”. E acrescenta: “O problema é saber por que deram continuidade a várias políticas daquele governo (FHC)”.

Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e coordenador da ONG Iser Assessoria, do Rio de Janeiro. É doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, França. É autor e organizador de diversos livros, entre os quais O Desmonte da nação: balanço do governo FHC (Petrópolis: Vozes, 1999); O Desmonte da nação em dados (Petrópolis: Vozes, 2003 2002) - com Adhemar Mineiro – e Uma análise do Governo Lula (2003-2010): de como servir aos ricos sem deixar de atender aos pobres (São Leopoldo: CEBI, 2010). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Que avaliação faz dos 12 anos do PT no governo e, particularmente, do governo Dilma? Houve avanços?

Ivo Lesbaupin - O Brasil avançou nos últimos anos. Reduziu fortemente o desemprego, promoveu transferência de renda para os setores mais pobres da população, valorizou o salário-mínimo acima da inflação.

Os dados mostram que, nos últimos dez anos, cerca de 30 milhões de brasileiros deixaram a extrema pobreza e os trabalhadores passaram a ter uma renda melhor, com acesso a bens de consumo aos quais não tinham antes. Este foi um salto significativo na nossa realidade social. O Brasil foi um dos países onde houve maior redução da pobreza neste período. Houve avanços também na área da agricultura familiar, como a expansão do crédito rural e programas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF e o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, que vêm favorecendo pequenos agricultores no campo. 

Além destes, poderíamos citar a revalorização do Estado, seriamente atacado durante o governo FHC; a política externa — este ponto é muito importante — se tornou mais independente, especialmente na relação com governos “progressistas” — os quais os EUA queriam isolar. O combate ao trabalho escravo se tornou sistemático. 

Há que apontar a vitória do Marco Civil da Internet e do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, ocorridas este ano.  Cabe ressaltar a instalação da Comissão da Verdade pelo governo Dilma. Mesmo considerando as limitações, como o curto tempo para o trabalho — dois anos —, a iniciativa veio preencher uma lacuna de quase 30 anos. A tentativa de relegitimar a ditadura que vinha ocorrendo foi por terra, em boa parte graças ao desencadeamento deste processo.

Poderíamos citar uma série de outras boas políticas desenvolvidas por este governo. Mas isto é apenas uma pequena parte do que ele está fazendo. Digo com tranquilidade que os governos Lula e Dilma representaram um avanço em relação ao governo FHC, especialmente na área social (redução do desemprego, renda para os setores populares, salário-mínimo valorizado). O problema, como veremos adiante, é saber por que deram continuidade a várias políticas daquele governo .

 

IHU On-Line - Quais são as críticas que faz ao atual governo?

Ivo Lesbaupin - O governo atual tem implementado outras políticas durante o seu mandato — algumas das quais são estruturantes — e é possível prever que, se houver um segundo mandato, elas serão mantidas, já que não houve nenhuma avaliação crítica de sua parte.

- Há um processo de abandono, descaso e destruição dos povos indígenas . O governo ressuscitou a política indigenista da ditadura, segundo a qual “o índio não pode atrapalhar o progresso do país” (“progresso”, leia-se: agronegócio, mineradoras, hidrelétricas).

- Não houve Auditoria da Dívida Pública, uma exigência da Constituição de 1988 (o que significa que 40% do orçamento público continuam a ir para os ricos). Nesta campanha eleitoral, esta possibilidade não foi nem mencionada.

- As privatizações foram retomadas com força. 

- Não houve reforma agrária nem no governo Lula nem no governo Dilma, por causa da aliança com o agronegócio.

- Os transgênicos são plantados livremente no Brasil (apesar de cientistas de todo o mundo já terem provado que são prejudiciais à saúde) .

- Os agrotóxicos são vendidos e usados amplamente (e é sabido que eles prejudicam lenta e inexoravelmente a saúde da população, são um “veneno na nossa mesa”) . O Brasil é o segundo maior “consumidor” de agrotóxicos no mundo.

- Estão sendo construídas e estão projetadas dezenas de hidrelétricas, especialmente na Amazônia, atingindo os direitos dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos que habitam nestas localidades.

- O agronegócio tem se expandido, com apoio do governo.

- As grandes empreiteiras têm um peso determinante na decisão sobre as mais importantes obras públicas do país. 

- O sistema de energia elétrica é estruturado de tal forma que permite lucros enormes a empresas privadas e o povo é quem paga a conta .

- Há uma profunda desconsideração com a questão ambiental, em razão do atendimento aos interesses do agronegócio, das empreiteiras e das mineradoras. 

- Os bancos continuam tendo lucros recordes, graças à política de juros altos, os juros reais mais altos do mundo .

- O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES oferece recursos públicos para apoiar grandes empresas privadas. E os contribuintes não sabem quem são, quanto recebem, por que foram escolhidas (o grau de transparência é baixíssimo). E também não sabemos o que aconteceu com o S do BNDES. 

- O governo manteve um item da legislação previdenciária introduzido por FHC que prejudica seriamente os trabalhadores: o “fator previdenciário”. Os movimentos de trabalhadores lutam desde então para derrubar este “fator”. Em doze anos, nem Lula nem Dilma cederam às pressões dos trabalhadores: preferiram ceder ao capital privado.

Todas estas são políticas de direita, isto é, políticas que atendem aos interesses dos grandes grupos econômicos, políticas prejudiciais à grande maioria do povo brasileiro e que comprometem o futuro do país.

 

IHU On-Line - Quem são os grandes beneficiários das políticas atuais? A quem este governo atende em primeiro lugar?

Ivo Lesbaupin - Vejamos os três principais:

O capital financeiro (bancos e investidores financeiros) - Mais de 40% do orçamento geral da União se destinam ao pagamento da dívida pública, interna e externa, e de seus juros. A dívida externa chegou, em dezembro de 2013, a 485 bilhões de dólares, e a dívida interna, a 2 trilhões e 900 bilhões de reais (cf. Auditoria Cidadã da Dívida – www.auditoriacidada.org.br). Em suma, o destino de quase metade do orçamento é a pequena camada mais rica do país — que são aqueles que recebem os juros da dívida —, além dos credores externos. Enquanto isso, apenas 5% vão para a saúde e 4% para a educação. 

 

Orçamento Geral da União - Executado em 2013 

Total: R$ 1,783 trilhão (ver imagem na galeria)

As grandes empreiteiras - Há um outro setor privilegiado pelo governo: são as grandes empreiteiras — Odebrecht, OAS, Camargo Correia, Andrade Gutierrez. Elas estão em todas as grandes obras de infraestrutura do país, entre as quais as usinas hidrelétricas — Belo Monte é o exemplo mais notório. Mesmo quando não cumprem as condicionalidades às quais se comprometeram, continuam a receber recursos do BNDES para suas obras. Não sem razão, estão entre os principais contribuintes para as campanhas eleitorais.

O agronegócio - Para garantir a exportação de alguns produtos primários — elemento central de sua política econômica —, o governo mantém uma aliança com o agronegócio, razão pela qual não houve reforma agrária no país. E não há previsão, num futuro governo de continuidade, de que vá haver. Estamos vivendo um processo de reprimarização da economia do país — desde o governo FHC, a industrialização deixou de ser prioridade —, e o agronegócio é apresentado tanto pelo governo quanto pela grande mídia como o grande fator de desenvolvimento do país.

 

IHU On-Line – Como avalia as principais políticas contra a exclusão social? 

Ivo Lesbaupin – Elas existem e tiveram efeitos significativos, como disse logo no início, e todos reconhecem o seu valor — até a oposição. Mas não ocupam o primeiro lugar no desembolso dos recursos públicos. Basta comparar o quanto vai para os juros da dívida (os ricos) e o quanto vai para as principais políticas sociais — saúde e educação (não sem razão, foram estas, além do transporte, as políticas que mais foram cobradas nas manifestações de junho de 2013). Vejamos, porém, outros elementos também importantes. 

 

Privatizações 

O governo atual foi eleito em 2010 como a candidatura antiprivatista — oposta ao projeto neoliberal do PSDB. No entanto, a candidata eleita retomou com força as privatizações, passou a privatizar portos, aeroportos, rodovias e manteve a práticas das PPPs (parcerias público-privadas, outro nome para a privatização). Tem havido uma dura luta nas universidades públicas para manter os hospitais universitários sob gestão e controle públicos, contra um esforço do governo em passá-los para a gestão privada. 

O governo FHC quebrou o monopólio da Petrobras e 60% das ações desta empresa estão hoje em mãos privadas. O governo Lula não reverteu este processo. O governo FHC iniciou em 1997 o leilão das áreas de exploração do petróleo. Os governos Lula e Dilma não interromperam os leilões, apesar dos protestos dos petroleiros. O governo Dilma realizou — contra a oposição de todos os movimentos sociais — o primeiro leilão de um campo do pré-sal (Libra), cujas reservas são imensas. O petróleo é nosso? Não, parte dele será das multinacionais estrangeiras que participam do consórcio que venceu este leilão. Note-se que, para garantir o leilão, o governo utilizou os mesmos métodos dos tempos de FHC (casos da Vale e da Telebrás): tropas militares e polícia, de um lado, e um batalhão de advogados, de outro, para derrubar liminares.

 

Desigualdade social 

Muitos têm exaltado a redução da desigualdade social desde o início do governo Lula até hoje. O índice de Gini, que mede a desigualdade, tem melhorado ano a ano (embora, recentemente, a melhora tenha sido pequena). O índice de Gini se baseia nos dados da PNAD, que capta a massa de rendimentos do trabalho e os pagamentos de benefícios monetários da política social. No entanto, uma outra parte da renda interna — juros, lucros, dividendos — não é captada por esta pesquisa . É exatamente nesta parte que estão, por exemplo, os juros da dívida, recebida pelos mais ricos. Entre a camada mais rica da sociedade — entre 1 e 2% — e os mais pobres, a distância aumentou: a renda dos pobres melhorou, indubitavelmente, assim como o salário-mínimo, mas a renda dos mais ricos aumentou muito mais .

Por outro lado, o Brasil carrega outra “herança maldita”: o sistema tributário regressivo, que o governo FHC acentuou. Isto significa que, ao invés de distribuir renda, este sistema concentra renda. Nele, os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, porque o peso maior está no imposto sobre o consumo. O governo Lula introduziu pequenas melhorias neste sistema, mas sem mexer na estrutura regressiva. Os governos Lula-Dilma não fizeram reforma do sistema tributário para acabar com esta estrutura reprodutora de desigualdade.

Um primeiro meio para mudar esta grave injustiça seria fazer uma reforma tributária, para tornar o sistema progressivo (os que recebem mais, pagam mais; o peso maior fica sobre a renda, não sobre o consumo). Uma segunda maneira de reduzir a transferência de recursos para os ricos: seria a realização de uma auditoria da dívida pública. Ela provaria que uma parte da dívida que nós pagamos é irregular e isto diminuiria substancialmente a sangria de recursos públicos. A única auditoria que o país fez, em 1931, concluiu que 60% da dívida não tinham documentos que a comprovassem. O mesmo aconteceu mais de 70 anos depois, quando o Equador fez sua auditoria, em 2009: 65% da dívida eram eivadas de irregularidades. Como a nossa dívida externa foi constituída principalmente durante a ditadura civil-militar de 1964-1985, quando o Congresso não tinha acesso aos documentos, há indicações bem fundadas de que boa parte desta dívida é indevida. Só uma auditoria poderia verificar e comprovar.

Esta é uma exigência da Constituição de 1988, a qual nem o governo FHC nem os governos do PT puseram em prática. Com isso, favorecem os poucos privilegiados que ganham fortunas com a manutenção do status quo. E desfavorecem a imensa maioria que sofre as consequências de os recursos públicos não serem empregados onde deveriam: esta é a razão da falta de recursos suficientes para a saúde, a educação, o transporte, o saneamento básico, para os serviços públicos em geral.

 

IHU On-Line - O que seria uma alternativa à política que está sendo desenvolvida no Brasil?

Ivo Lesbaupin - Já adiantei alguns aspectos desta questão nas respostas anteriores . Rever o modelo econômico - É preciso superar a concepção neoliberal, centrada no capital financeiro (bancos, investidores financeiros), assim como a concepção neodesenvolvimentista, que financia com recursos públicos grandes empresas privadas. Interromper o processo de privatização de serviços públicos e de nossas riquezas naturais (entre as quais o petróleo). 

Se quisermos evitar o desastre ambiental que se anuncia, nós temos de construir uma economia baseada em nova concepção de desenvolvimento, que atenda às necessidades da população, respeitando os limites da natureza . É preciso urgentemente mudar a matriz energética, para as energias renováveis, em particular a energia solar — o que deve ser uma iniciativa pública, não do capital privado. Nós poderíamos nos tornar o primeiro país do mundo em tecnologia e utilização da energia solar: depende unicamente de vontade política.

Temos de produzir aquilo de que precisamos e não depredar os bens naturais, tão fundamentais à nossa existência. Todos os alimentos de que necessitamos podem ser produzidos pela agroecologia — que é praticada em vários lugares do país, mas não é uma política nacional — e termos alimentos saudáveis, sem transgênicos, sem agrotóxicos. 

Precisamos de uma política de transporte público condizente com a sustentabilidade (baseada principalmente em trilhos — trens, metrô, etc.), não centrada no automóvel, que garanta meios de locomoção dignos para atender às necessidades da maioria da sociedade.

As demais políticas, vou simplesmente enumerá-las, por limitação de espaço:

- Defender e garantir os direitos dos povos indígenas;

- Realizar uma Auditoria da Dívida Pública;

- Promover uma Reforma do Sistema Político;

- Realizar uma Reforma Tributária, para que o sistema se torne progressivo; 

- Estabelecer uma Taxa sobre Transações Financeiras;

- Realizar a Reforma Agrária;

- Promover a Reforma Urbana;

- Democratizar os meios de comunicação;

- Democratizar o poder judiciário;

- Interromper os megaprojetos (hidrelétricas, transposição do rio São Francisco);

- Implementar o controle social da gestão pública (inclusive da política econômica). 

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar alguma coisa?

Ivo Lesbaupin - Eu faria um último comentário: é legítimo que, na disputa eleitoral, se critiquem outros candidatos por representarem setores, defenderem políticas de direita ou fazerem alianças à direita. Evidentemente, é preciso provar e não apenas acusar . No entanto, se examinarmos o governo atual, veremos que, a despeito de se reconhecerem avanços em muitos setores, ele tem sérias alianças à direita e suas principais políticas são aquelas que atendem aos interesses dos grandes grupos econômicos. 

 

Leia mais...

- "Não há mudanças nas estruturas geradoras da desigualdade". Entrevista com Ivo Lesbaupin, na edição 386 da IHU On-Line, de 19-03-2012;

- "A postura típica do PSDB é caracterizada pelo governo FHC: repressão". Entrevista com Ivo Lesbaupin, na edição 199 da IHU On-Line, de 09-10-2006;

- "Derrotar o Serra nas urnas e depois a Dilma nas ruas”. Entrevista com Ivo Lesbaupin nas Entrevistas do Dia do sítio do IHU, em 30-10-2010;

- Movimentos sociais e o pós-Lula. Entrevista com Ivo Lesbaupin nas Entrevistas do Dia do sítio do IHU, em 19-04-2010;

- A Vale do Rio Doce e o neoliberalismo no Brasil. Entrevista com Ivo Lesbaupin, nas Entrevistas do DIa do sítio do IHU, em 13-08-2007;

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