Edição 455 | 29 Setembro 2014

Observar, monitorar e compartilhar o exercício do poder

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Ricardo Machado

Paula Chies Schommer defende a importância do trabalho dos observatórios na garantia dos direitos e na participação dos cidadãos

“Ao evidenciar dados de maneira contínua e qualificada sobre um território, o trabalho dos observatórios pode contribuir para que cidadãos e gestores públicos compreendam as conexões entre os fenômenos que acontecem em certo território, suas causas e consequências, e possíveis soluções articuladas para os problemas evidenciados”, sustenta a professora e pesquisadora Paula Chies Schommer, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Na opinião da entrevistada, os observatórios servem, também, “para aproximar expectativas dos cidadãos e promessas dos governantes, identificando mais claramente quais são os desafios a serem enfrentados no território”.

Paula acredita que a divulgação de informações públicas qualificadas e com transparência é uma das premissas para o bom desempenho do controle social e para efetividade da accountability — termo em inglês sem tradução exata para o português, que se refere à obrigação dos órgãos públicos e seus gestores de prestarem contas de suas atividades.  “O uso dessas informações para tomar decisões, influenciar o desenho de políticas públicas e permitir premiação ou sanção dos agentes públicos tende a promover aprendizagem e contribuir para a qualidade da administração pública e da democracia e para a qualidade de vida da população”, pontua. “Os cidadãos, especialmente quando organizados em movimentos, redes e associações, podem demandar dos órgãos institucionais informações mais apropriadas às necessidades de controle político e, ao mesmo tempo, produzir informações que permitam dialogar, contrapor e questionar informações oficiais, apontando para novas questões e interesses da população”, complementa.

Paula Chies Schommer é graduada em Administração de Empresas pela Universidade de Caxias do Sul – UCS, realizou mestrado em Administração pela Universidade Federal da Bahia – UFBA e doutorado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas – SP. Atualmente é professora de Administração Pública na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/ESAG) e professora colaboradora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), junto ao Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS). É líder do Grupo de Pesquisa Politeia - Coprodução do Bem Público: Accountability e Gestão 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual a importância da sistematização e da publicização dos dados coletados pelos diversos observatórios? 

Paula Chies Schommer - Há diversos tipos de observatórios pelo mundo, em diferentes formatos, temas a que se dedicam e tipos de dados coletados, sistematizados, analisados e difundidos. A característica-chave de um observatório é sua ação voltada para o monitoramento sistemático do funcionamento ou desempenho de um setor ou tema. 

Existem observatórios que focalizam a produção e análise de informações sobre gastos públicos; outros que focalizam os indicadores de desenvolvimento em certo território; outros que priorizam certo tema, como saúde, educação ou segurança pública. Dentro desses temas, podem definir um foco ainda mais específico. Por exemplo, um observatório global de pesquisa e desenvolvimento na área da saúde que vem sendo construído no âmbito da Organização Mundial da Saúde - OMS, reunindo dados de pesquisas que tratam de doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica. Neste caso, há um foco temático específico, com abrangência global. Em outros casos, o foco é um território mais delimitado — um bairro, uma cidade, por exemplo, considerando vários temas relativos à vida naquele território.

No caso dos observatórios voltados para o controle da administração pública, há diferentes papéis que um observatório pode desempenhar. Entre eles: 1) demandar informações de órgãos institucionalizados, políticos e governantes; 2) exercer pressão sobre órgãos institucionalizados de controle para que cumpram seus papéis na produção de informações qualificadas e no controle; 3) promover intermediação entre cidadãos/sociedade, políticos e governantes e espaços de diálogo na esfera pública, necessários à coprodução de bens públicos; 4) contribuir para a educação fiscal, a cidadania e o controle social; 5) monitorar a qualidade da gestão pública e a qualidade de vida nas cidades, por meio da participação em espaços institucionalizados de controle por resultados, em diálogo com diferentes agentes públicos; 6) coletar e elaborar dados e indicadores de desempenho para comparar com dados oficiais e para sinalizar necessidades da população.

 

IHU On-Line – De que maneira o trabalho realizado pelos observatórios contribui no fortalecimento da cidadania?

Paula Chies Schommer - Com base nas informações e análises que produzem, os observatórios sociais podem fiscalizar a ação de gestores públicos, contribuir para a observância dos princípios constitucionais da administração pública, ativar e qualificar o funcionamento do sistema de controle institucional, composto por diversos mecanismos e órgãos da administração pública, com papéis complementares; gerar mobilização coletiva e influenciar decisões e o processo de planejamento, implantação e avaliação de políticas públicas; estimular o engajamento mútuo entre governantes e cidadãos para o enfrentamento de desafios coletivos.

 

IHU On-Line – De que forma o trabalho realizado pelos observatórios — coleta e sistematização de dados, publicização — tensionam as compreensões clássicas e segmentárias dos territórios?

Paula Chies Schommer - Ao evidenciar dados de maneira contínua e qualificada sobre um território, o trabalho dos observatórios pode contribuir para que cidadãos e gestores públicos compreendam as conexões entre os fenômenos que acontecem em certo território, suas causas e consequências, e possíveis soluções articuladas para os problemas evidenciados. Contribuem, também, para aproximar expectativas dos cidadãos e promessas dos governantes, identificando mais claramente quais são os desafios a serem enfrentados no território, definindo prioridades e comprometendo-se mutuamente a realizar o que é necessário para enfrentá-los. Ao longo do processo, em que novos dados vão sendo revelados pelo monitoramento e pela prestação de contas, podem ser feitos ajustes nos planos, decisões e ações, bem como identificados recursos e esforços adicionais a serem realizados por cidadãos e governantes para que os bens públicos desejados sejam realizados.

 

IHU On-Line – Como o engajamento dos cidadãos na definição de metas coletivas de suas próprias sociedades contribui na construção de novas posturas e práticas sociais? 

Paula Chies Schommer - Uma vez que os cidadãos participem, juntamente com os políticos e servidores públicos, da discussão sobre os desafios coletivos e da tomada de decisão sobre os investimentos e ações que os afetam, com base em informações qualificadas, o poder público torna-se mais transparente, responsável e responsivo aos interesses dos cidadãos. Ao mesmo tempo, há compartilhamento de poder e dos mecanismos de controle sobre o poder, o que é essencial para a democracia e para a qualidade de vida das pessoas. Ao compartilhar o exercício do poder, os cidadãos tornam-se corresponsáveis pelos rumos das suas comunidades, cidades e países, corresponsáveis pela qualidade da administração pública, da política e da própria democracia. Passam a exigir mais de seus governantes e de suas organizações e também a exigir mais de si e de seus concidadãos. Algo que é exigente e desafiador, mas que é condição fundamental para uma vida boa, para a construção de territórios justos e sustentáveis.  

 

IHU On-Line – Por que os resultados mais produtivos de accountability  resultam da interação de mecanismos institucionalizados com mecanismos informais de controle? 

Paula Chies Schommer - A interação contínua e dinâmica entre formas de controle mais institucionalizadas e formas de controle menos institucionalizadas é potencialmente mais efetiva na promoção da accountability do que os mecanismos estatais e os de controle social atuando isoladamente, na medida em que tal interação forja o engajamento mútuo de governantes e cidadãos na coprodução de bens e serviços, gerando aprendizagem e melhores resultados. Visão esta que direciona o foco para as múltiplas interações entre agentes e mecanismos de controle, que expressam novas possibilidades de accountability — híbrida, diagonal, transversal, social ou sistêmica.

Diversas iniciativas ao redor do mundo evidenciam o desejo crescente dos cidadãos de participarem do monitoramento e da produção direta de informações e do controle, provocando transformações nas formas usuais de controle institucional e social. Seja porque há insatisfação com a limitada capacidade das agências estatais desenhadas para esse fim, e seu usualmente baixo grau de abertura à participação cidadã; porque há desconfiança nas formas tradicionais de controle social — como o voto e a pressão política; pela visibilidade de casos de corrupção e a percepção dos cidadãos de que precisam envolver-se diretamente para mudar esse quadro; pela convicção de que os cidadãos podem produzir informações, controle e accountability atuando em paralelo ou em colaboração com o Estado.

A possibilidade de se obter e divulgar informações públicas qualificadas, com transparência e fidedignidade, é uma das condições para o bom desempenho do controle social, para a efetividade geral dos mecanismos de accountability e para a desconcentração de poder. O uso dessas informações para tomar decisões, influenciar o desenho de políticas públicas e permitir premiação ou sanção dos agentes públicos tende a promover aprendizagem e contribuir para a qualidade da administração pública e da democracia e para a qualidade de vida da população. 

Tradicionalmente, as informações públicas são produzidas no âmbito do aparato estatal, notadamente por órgãos de controle institucional, como os tribunais de contas, e são direcionadas prioritariamente a outros órgãos estatais. Todavia, a sociedade pode e deve contribuir para a produção de informações técnicas qualificadas, de dados e indicadores que auxiliem o monitoramento de promessas políticas, planos de governo, políticas públicas e prestação de serviços. Essa contribuição pode ocorrer de diversas maneiras e em diferentes graus de engajamento, incluindo consulta, demandas específicas, debate sobre dados, produção independente para contraposição de dados e análises e encaminhamento de denúncias. Ao envolverem-se na coprodução de informações, os cidadãos interagem com servidores públicos e representantes políticos de diversos órgãos e instâncias e promovem interações entre eles. Podem igualmente promover mudanças em suas maneiras de agir e até mesmo em seus papéis, o que revela características de sistema dinâmico e as mudanças que podem ocorrer na atuação dos atores sociais em cada contexto.

Os cidadãos, especialmente quando organizados em movimentos, redes e associações, podem demandar dos órgãos institucionais informações mais apropriadas às necessidades de controle político e, ao mesmo tempo, produzir informações que permitam dialogar, contrapor e questionar informações oficiais, apontando para novas questões e interesses da população. Além disso, cidadãos e governantes podem atuar em conjunto, em papéis complementares e inter-relacionados, na produção das informações e do controle. O conjunto de informações produzidas pode servir tanto aos cidadãos como aos órgãos estatais para tomar decisões, alterar cursos de ação, exercer pressão, demandar justificativas, definir prêmios e punições. 

Como resultado, haverá múltiplas interações dos mecanismos de controle institucional e de controle social e seus agentes, influenciando-se mutuamente, demandando e produzindo informações e estabelecendo a coprodução do controle.

A coprodução do controle, uma vez obedecendo a uma lógica sistêmica, tem sua qualidade definida pelo desempenho de cada parte e pela qualidade das relações entre elas. Sendo assim, se a articulação entre as partes é frágil, prejudica-se o potencial de coprodução. Uma vez que há diferentes possibilidades de interação, os papéis dos envolvidos podem variar de uma situação para outra, assim como o centro do processo de controle torna-se móvel. O que não significa que não haja uma estratégia de governança e que não sejam definidas regras, critérios, prazos, responsáveis. Mas as próprias regras, uma vez definidas, são controladas, avaliadas e passíveis de mudança, como fruto dessa inter-relação. 

Dada a característica de rede sistêmica da coprodução do bem público controle, o desempenho de cada mecanismo tende a ser mais pleno na medida em que se avance, simultaneamente, em capacidade técnica, maturidade política e na articulação entre os diversos atores e mecanismos envolvidos em sua produção, potencialmente gerando avanços na democracia, tanto em termos de cultura política como de suas instituições. A qualidade e a efetividade dos mecanismos de controle dependem, pois, de um processo contínuo de aprendizagem e amadurecimento político e institucional, marcado pela articulação sistêmica entre os vários atores e mecanismos, o que ocorre fundamentalmente pela experimentação em diferentes contextos localizados.

 

IHU On-Line – Que características históricas da relação Estado-Sociedade no Brasil dificultam a incorporação da accountability na democracia nacional?

Paula Chies Schommer - Considerando o histórico brasileiro de desigualdade econômica, social e política, as últimas décadas foram de avanços importantes em garantia de direitos, democracia e accountability. As expectativas democráticas convivem, entretanto, com valores e práticas arcaicas que insistem em se reproduzir.

Nas relações Estado-Sociedade, observa-se, por um lado, um processo ativo e dinâmico de articulação em torno de desafios comuns, com entusiasmo e abertura para o diálogo e a cooperação. Por outro, são ainda marcantes características típicas de um padrão estadocêntrico de relação Estado-sociedade, oposto ao padrão sociocêntrico que estaria em emergência no Brasil. Antigas características da cultura política brasileira, como formalismo, centralização de poder e tutela dos cidadãos pelo Estado, que desejaríamos estivessem superadas, parecem se revigorar. A cultura política e a administração pública brasileira são assim marcadas por idas e vindas e pela combinação do tradicional e do novo.

Entre os avanços nas relações Estado-Sociedade no Brasil, nas últimas décadas, podemos citar: 

1) melhorias em indicadores de educação, saúde e renda, embora a posição do país em rankings internacionais de desenvolvimento ainda seja modesta diante de seu potencial; 

2) difusão de canais de participação cidadã na administração pública; 

3) múltiplas inovações em governos locais baseadas no fortalecimento da cidadania e da qualidade da administração pública; 

4) novas formas de mobilização social, buscando influenciar a ação dos governos no sentido da transparência e da prestação de contas, da redução da corrupção, da qualidade dos gastos e serviços públicos e dos indicadores de bem-estar e qualidade de vida nas cidades; 

5) mobilização da sociedade demandando mudanças de regras institucionais no processo eleitoral; 

6) novos mecanismos institucionais de transparência da administração pública e acesso à informação; 

7) disseminação do uso de tecnologias de informação e comunicação, facilitando o controle social, a expressão de opiniões, a conexão entre as pessoas e a ação coordenada entre elas em torno de interesses comuns; 

8) iniciativas localizadas, iniciadas por lideranças ou empreendedores sociais que, a partir de ideias simples, agindo em conexão com outros e fazendo uso de recursos disponíveis, promovem transformações na vida das pessoas, dinamizando redes e coproduzindo bens e serviços públicos; 

9) fortalecimento e integração entre órgãos de controle institucional, como Controladoria Geral da União, Ministério Público, Tribunal de Contas e controle interno nas prefeituras, os quais ampliam suas relações com mecanismos de controle social (exercido pela sociedade em relação aos governantes).

 

Defasagem

Por outro lado, entre as características arcaicas na relação Estado-Sociedade no Brasil, estão: 

1) Paternalismo (Estado como tutor, que não acredita na capacidade dos cidadãos e da sociedade civil organizada, assumindo a responsabilidade pela definição dos rumos da nação e pela produção de bens e serviços públicos, concentrando poder; cidadão como tutelado, esperando que o Estado resolva seus problemas, no máximo ocupando espaços de cidadania regulados pelo Estado); 

2) concentração de poder político e econômico no governo federal e no âmbito privado, com estreitas relações entre o poder econômico de certos grupos ou famílias e o poder político em municípios, estados e nação, concentração essa que favorece a ineficiência e a corrupção e compromete a democracia; 

3) distanciamento entre quem decide e quem está no contexto da ação; 

4) complexidade dos processos para acesso a recursos por governos locais e organizações da sociedade civil; 

5) formalismo (prevalece no país a crença de que a definição formal e detalhada de uma regra ou lei “perfeita” é suficiente para que os comportamentos mudem, o que nos faz conviver com infinidade de regras formais, detalhistas, por vezes contraditórias, nem sempre cumpridas, cuja pertinência é julgada de acordo com o contexto e os sujeitos envolvidos, gerando injustiças associadas ao padrão casuístico de aplicação das regras); 

6) prioridade à forma na prestação de contas,  dificuldades na execução e desperdício de aprendizagem — a preocupação maior da prestação de contas é burocrática, priorizando conformidade a normas e procedimentos, e não os resultados ou os interesses diretos dos cidadãos; 

7) patrimonialismo, corporativismo, nepotismo, favoritismo, autoritarismo, populismo, privilégios, padrão casuístico dos partidos políticos e troca de votos por cargos públicos; 

8) ampla aceitação social do “jeitinho”, que, em sua tênue fronteira com a corrupção, abre espaço para a violência e a injustiça nas relações; 

9) reformas consideradas fundamentais, como as reformas política e tributária, estão estagnadas ou tramitam lentamente, fatiadas em pedaços nem sempre articulados, aprofundando o descrédito das instituições.

 

Accountability

No que tange mais especificamente a accountability, se analisarmos os avanços e estagnações na cultura política e nas instituições democráticas brasileiras, nos últimos 25 anos, veremos que, embora passos importantes tenham sido dados, ainda estamos longe de construir uma verdadeira cultura de accountability, ou seja, uma cultura na qual a noção de que se deve prestar contas por atos e omissões e ser responsabilizado por isso seja algo incorporado nas relações cotidianas, seja dos cidadãos entre si, ou destes com seus governantes. Principalmente porque, no Brasil, o surgimento de um novo valor não necessariamente implica extinção do tradicional. Diversas características arcaicas ainda são visíveis, não obstante estejam transfiguradas e enfrentem novo posicionamento da sociedade civil e do aparato estatal. Embora tenhamos superado um regime autoritário e avançado em aspectos sociais, econômicos e políticos, o autoritarismo mostra capacidade de se redesenhar diante de mudanças em direção à accountability, inclusive driblando a ordem legal.

 

IHU On-Line – De que ordem são os desafios à democracia no século XXI? 

Paula Chies Schommer - Vivemos um tempo em que a complexidade torna-se evidente, as crises e conflitos são evidenciados e valorizados como oportunidades para avançarmos. Um tempo de múltiplas possibilidades para a solução de problemas antigos e para fazer frente aos novos desafios que se apresentam. Um tempo de crise, inovação e aprendizagem. Crise que tem a ver com o esgotamento de recursos e de formas de ver o mundo, com as maneiras pelas quais se produz conhecimentos, bens e serviços, as formas pelas quais se estabelecem as relações entre as pessoas e destas com a natureza, com a falta de legitimidade de grandes estruturas hierárquicas e centralizadas. A crise, que também revela oportunidades, tem várias faces:

- Política, o que se vê pelo interesse das pessoas em exercer poder e participar da vida pública; pela crescente intolerância a modelos de gestão autoritários, centralizados, hierárquicos, manipulativos, coercitivos e paternalistas; pela rejeição a sistemas políticos que desresponsabilizam e tolhem os potenciais das pessoas;

- De valores, que pode ser representada pelas tensões entre: individualismo–solidariedade; nacionalismo–universalismo; consumismo–cuidado; homogeneização de processos–diversidade; financeirização da economia e das motivações humanas-visão ampliada de riqueza;

- Demográfica, incluindo fatores como o prolongamento da vida e o envelhecimento da população, as mudanças nos padrões familiares e as novas ondas migratórias; 

- De garantia de direitos a todos, pois em meio à abundância de alimentos, de riqueza e de tecnologia, grande parte da população mundial não desfruta plenamente de direitos básicos como os de alimentação, saúde, justiça, integridade física, segurança, educação e participação na vida política de sua cidade, de seu país;

- Ambiental, pelo esgotamento de recursos naturais e pela transformação dos modelos de desenvolvimento;

- Cultural — ao mesmo tempo que celebramos a diversidade e a interculturalidade, são reforçados aspectos de identidade e de pertença a uma comunidade; há certa homogeneização cultural global e ainda convivemos com intolerâncias de ordem religiosa, étnica e cultural;

- Econômica, ensejando questionamento ao sistema econômico centralizado e concentrador de riqueza, renda e poder, diante das evidências contundentes dos limites dos mercados como modo primordial de regulação da sociedade;

- De desemprego, de falta de qualificação e de acesso a oportunidades de estudar, trabalhar e contribuir para o coletivo de maneira qualificada;

- De legitimidade dos modelos tradicionais de regulação e controle, na família, no trabalho, na escola, nos mercados, nos governos, frente ao fato de que o conhecimento é cada vez mais disperso na sociedade;

- De gestão ou de governança, contemplando o desafio de viabilizar modelos de gestão que aproveitem melhor os recursos existentes e distribuí-los de forma mais justa e proveitosa ao potencial das pessoas para gerar bem-estar para si e para os demais;

- De modelo de desenvolvimento, pela rejeição a perspectivas produtivistas, centralizadas e homogeneizadoras, em favor do resgate de aspectos ecológicos e endógenos, fortalecendo as especificidades territoriais.

 

Transformação do paradigma territorial

Esses e outros fatores têm provocado mudanças no significado dos elementos territoriais e de proximidade, reforçando oportunidades em âmbito local. Em meio ao aumento do volume de fluxos de mercadorias, informações e de pessoas pelo mundo globalizado, há revalorização das comunidades, da proximidade e das conexões entre as pessoas, seja no interior de uma comunidade, seja nas suas conexões com outras, reforçando-se a percepção do capital social e das redes como elementos de identidade e de desenvolvimento. 

A estrutura social é mais fragmentada e complexa, tornando as exigências sociais heterogêneas e específicas, o que exige respostas mais individuais, concretas, contextualizadas. Os sistemas de governo e governança são desafiados a dar conta dessa nova realidade. 

 

Exigências

As pessoas tornam-se mais exigentes em relação a governantes e empresas. Querem informação e qualidade dos serviços, querem ser ouvidas e querem respostas a suas expectativas, resistindo a decisões ou regras que não compreendem. Além disso, expressam mais fortemente suas visões de mundo e interesses e percebem mais claramente seu poder, participando ativamente da produção de conhecimentos, conectando-se diretamente com outras pessoas, buscando coproduzir bens e serviços públicos para resolver seus problemas, sem necessariamente passar pela intermediação de empresas, governos, partidos e outras instituições mais tradicionais. 

 

Despertar

Tanto no Brasil como em vários outros países, parece ser um tempo de despertar, de percepção de que é preciso exigir mais das instituições e sistemas políticos, econômicos e sociais. Ao mesmo tempo que é preciso desenvolver-se internamente, junto aos que estão a sua volta, “colocar a mão na massa” e engajar-se com outros na construção de uma boa vida para si, sua família, suas comunidades, sua cidade.

Diante do universo de informações disponíveis instantaneamente, a baixo custo e com baixo grau de controle central, a produção de conhecimento se multiplica infinitamente, torna-se disponível e acessível e permite novas conexões entre as pessoas. Com base no conhecimento e nas conexões, as pessoas partem para a ação, para a solução de problemas, para a construção de algo possível aqui e agora, conectando sonhos e práticas, em lugar da idealização e das grandes utopias.

O conhecimento multiplicado também fortalece a percepção da interdependência dos fenômenos, da multidimensionalidade do desenvolvimento. Ao mesmo tempo, há maior permeabilidade das fronteiras entre o público e o privado, redefinição de papéis das diferentes organizações e instituições e novas formas de articulação entre elas.

 

IHU On-Line – Como os observatórios têm contribuído na construção permanente de um modelo democrático mais participativo e quais as principais diferenças entre as perspectivas democráticas do século XX?

Paula Chies Schommer - Os observatórios têm contribuído para aprimorar o controle sobre o poder e para que haja mais distribuição de poder na sociedade. O controle sobre o poder é essencial para a democracia. A produção e difusão de informações qualificadas é uma condição necessária para o controle sobre o poder público. Ao produzir informações qualificadas e incentivar o engajamento cidadão nas questões públicas, os observatórios contribuem: 1) para ativar e aprimorar os mecanismos e sistemas de controle e accountability — tanto os do próprio aparato estatal como os da sociedade; 2) para melhorar o desempenho da administração pública; 3) para responsabilizar os agentes públicos por seus atos e omissões e; 4) para que se encontrem novas soluções para desafios coletivos, por meio do engajamento mútuo entre governantes e cidadãos. Por meio dos observatórios, os cidadãos podem aplicar seus conhecimentos e sua capacidade de trabalho voluntário para qualificar a administração pública, as políticas públicas e a governança democrática em cada território. Reconhecendo que, por maior e melhor que seja a estrutura e o desempenho dos órgãos estatais, a qualidade da democracia e a qualidade de vida em uma cidade ou país dependem do contínuo e ativo engajamento cidadão na vida comunitária, nas questões coletivas, na esfera pública.

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