Edição 454 | 15 Setembro 2014

A vida nas interfaces das mutações tecnocientíficas e suas repercussões sobre a subjetividade

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Suélen Farias

O professor doutor e pesquisador José Roque Junges debate o livro de Nikolas Rose The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power, and Subjectivity in the Twenty-First Century

“No momento em que a biologia define a cidadania e a própria existência somática, o que isso significará para a saúde? A cultura somática da otimização e subjetivação da vida são base para a gradativa medicalização da saúde que faz crescer continuamente, nos manuais de diagnóstico, o rol das patologias pela inclusão de diferenças somáticas consideradas como não normais ou de pequenas disfunções biológicas ou psíquicas que não impossibilitam uma vida normal”, reflete o professor José Roque Junges ao discutir o livro, de Nikolas Rose na entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

A partir da obra de Rose, o pesquisador Roque Junges, que ministrará o evento The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power, and Subjectivity in the Twenty-First Century (New Jersey: Princenton University Press, 2007) [A política da própria vida. Biomedicina, Poder e Subjetividade no Século XXI], explica as cinco mutações científicas que possibilitam a governamentalidade biopolítica da vida, ou seja, a possibilidade de compreender que a vida não é mais vitalista, mas sim molecular e genética.

Segundo o professor, Rose é um seguidor de Foucault no contexto anglo-saxão e isso é nítido em sua perspectiva da biopolítica. Junges ainda enfatiza que alguns podem não estar de acordo com essa perspectiva, preferindo um enfoque mais genealógico típico, como o de Agamben e Esposito, porém a discussão sobre a biopolítica do ponto de vista de Rose é bastante pertinente para entender o atual contexto das biotecnologias. Por isso sua obra foi traduzida ao português pela editora Paulus em 2013 intitulada "A Política da própria Vida: Biomedicina, Poder e Subjetividade no Século XXI”.

A obra de Nikolas Rose será apresentada e discutida no dia 23 de setembro, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, em mais um pré-evento do XIV Simpósio Internacional IHU. Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em outubro deste ano.

José Roque Junges é jesuíta, graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, possui mestrado em Teologia pela Pontificia Universidad Catolica de Chile e doutorado em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Tem experiência na área de Teologia, Filosofia e Ética, com ênfase em Bioética. Entre seus livros publicados citamos Bioética: perspectivas e desafios (São Leopoldo: Unisinos, 1999); Ecologia e Criação: resposta cristã à crise ambiental (São Paulo: Loyola 2001); Ética ambiental (São Leopoldo: Unisinos, 2004); e Bioética: hermenêutica e casuística (São Paulo: Loyola, 2006). Atualmente é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos.

Saiba mais sobre Nikolas Rose, autor do livro The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power and Subjectivity in the Twenty-First Century, biólogo, psicólogo e sociólogo, que apresentará no dia 22-10-2014 a conferência A biopolítica no século XXI: cidadania biológica e ética somática. O evento faz parte da programação do XIV Simpósio Internacional IHU. Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - De que trata o livro “The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power and Subjectivity in the Twenty-First Century”, de Nikolas Rose?

José Roque Junges - O autor é um seguidor de Foucault  que parte do conceito de Biopolítica, mas lhe dá uma perspectiva nova, porque explicita os novos campos aplicativos das pesquisas biotecnológicas como expressões atuais da biopolítica em nossos dias, apontando principalmente para uma nova compreensão de vida que já não é mais vitalista, mas molecular e genética e para as novas possibilidades que se abrem de melhorar e aperfeiçoar a vida. Nesse sentido não existe apenas um governo da vida como aparece nos primeiros sentidos dados à palavra biopoder em que a vida é um objeto do poder, mas a própria vida assume uma governamentalidade biopolítica em que ela é sujeito.

Rose assume mais essa segunda perspectiva que já se encontra nas obras mais maduras de Foucault. Tendo presente a tri funcionalidade de toda ideologia apontada por Georges Dumézil  - a teológico - religiosa que instaura o poder como sagrado, a político-jurídica que inaugura o regime da lei, a econômica que configura a satisfação da constelação dos desejos – distinção que influenciou profundamente os autores que explicitaram o conceito de biopolítica. Pode-se dizer que Rose insere-se na terceira funcionalidade em que a biopolítica assume uma face econômica.

 

IHU On-Line - Quais pontos principais que o senhor abordará na palestra do dia 23 de setembro, o evento "Abrindo o Livro"?

José Roque Junges - Vou abordar as cinco mutações científicas, apontadas por Nikolas Rose, que possibilitam essa governamentalidade biopolítica da vida. A primeira grande revolução científica foi a molecularização da vida, cuja compreensão identifica a vida com mecanismos biológicos ao nível molecular e não mais com energias e dinamismos vitais, explicação característica do vitalismo. A vida perde seu mistério, explicando-se por mecanismos moleculares de base genética. Com isso a vida não é mais puro fruto do acaso, mas pode ser controlada em seus mecanismos.

Essa constatação aponta para a segunda mutação científica que é a possibilidade da otimização da vida, isto é, o melhoramento das capacidades da vida, já que é possível intervir para corrigir disfunções genéticas que criam dificuldades para a vida e para aperfeiçoar os mecanismos que produzem a vida. Essa possibilidade melhoramento torna a vida sujeito e não puro objeto, apontando para a terceira grande mutação científico-cultural que é a subjetivação da vida, que instaura a cidadania biológica, pois sua identidade é definida por critérios biológicos de inclusão e exclusão, inaugurando a necessidade de uma ética somática que defina esses critérios e oriente as intervenções genéticas necessárias para conformar-se a essa cidadania. Para esse aconselhamento são indispensáveis especialistas com expertise somática que possam orientar as condutas de governo da existência somática, como poderiam ser geneticistas, nutricionistas, endocrinologistas, educadores físicos, dermatologistas, bioeticistas etc. A necessidade de pessoas, procedimentos e produtos que possibilitem essa existência somática optimizada pela subjetivação da vida abre para uma última grande mutação que engloba as anteriores que é a inauguração da economia da vitalidade que se expressa como bioeconomia ou biocapitalismo, pois a vida adquire valor econômico de troca não apenas de uso. Por isso as grandes empresas biotecnológicas são as que têm mais valor de mercado, porque a vida se transformou num bem de troca de mercado. Aqui aparece claramente a terceira funcionalidade da biopolítica como ideologia - a econômica – seguindo a distinção de Dumézil.

 

IHU On-Line – De que modo as cinco grandes mutações científico-culturais implicam no ponto de vista social?

José Roque Junges - É possível imaginar as suas consequências sobre a concepção e o cuidado da saúde e sobre a organização do próprio sistema de saúde. No momento em que a biologia define a cidadania e a própria existência somática o que isso significará para a saúde? A cultura somática da optimização e subjetivação da vida são base para a gradativa medicalização da saúde que faz crescer continuamente, nos manuais de diagnóstico, o rol das patologias pela inclusão de diferenças somáticas consideradas como não normais ou de pequenas disfunções biológicas ou psíquicas que não impossibilitam uma vida normal. Para cada uma dessas formas consideradas somática ou psiquicamente desviantes sempre existirá uma solução medicamentosa ou procedimental interventiva. Essa tendência alimenta a biologização e medicalização da saúde. O cuidado da saúde perde em autonomia, porque ela está sempre mais entregue aos experts responsáveis por uma existência somática optimizada e pretensamente subjetivada. Contudo Rose não chega a essa visão crítica da medicalização da vida.

 

IHU On-Line - Como o tema abordado por Nikolas Rose se insere na discussão do XIV Simpósio Internacional IHU. Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades e como pode contribuir para o debate da temática?

José Roque Junges - A análise de Nikolas Rose insere-se plenamente na discussão, tomando apenas os termos, usados para explicitar, no título, a temática do simpósio. A resposta à pergunta anterior demonstra isso. A obra de Rose explicita as mutações que foram ocasionadas pela revolução biotecnocientífica, quais são as consequências dessas mutações para cultura ao tratar da optimização e subjetivação da vida e como essa cultura somática afeta os indivíduos e as sociedades ao instaurar uma cidadania com características biológicas que exigirá uma ética e expertise para orientar as boas condutas de uma existência somática, inaugurando uma bioeconomia na qual a vida torna-se um bem de troca de mercado não apenas um valor de uso.

 

IHU On-Line - Qual foi a repercussão do livro?

José Roque Junges - Nikolas Rose, como um especialista e seguidor de Foucault no contexto anglo-saxão (ele é professor da London School of Economics and Political Science), assume uma perspectiva própria desse contexto em suas explicitações da biopolítica, diferente de autores do âmbito francês e italiano. Assume um enfoque analítico-pragmático da biopolítica. Por isso sua repercussão é maior no âmbito da cultura anglo-saxã.

Alguns podem não estar de acordo com essa perspectiva, preferindo um enfoque mais genealógico típico, por exemplo, de Agamben  e Esposito,  mas sua discussão sobre a biopolítica é muito pertinente para entender o atual contexto das biotecnologias. Por isso sua obra foi traduzida ao português pela editora Paulus em 2013 com o título A Política da própria Vida: Biomedicina, Poder e Subjetividade no Século XXI.

Leia mais...

- O Concílio Vaticano II e a ética cristã na atualidade. Entrevista com Roque Junges publicada na IHU On-Line 401, de 03-09-2012;

- “Se o aborto é um problema, a sua solução não é o próprio aborto”. Entrevista com Roque Junges publicada na IHU On-Line 219, de 14-05-2007;

- Agenciamentos imunitários e biopolíticos do direito à saúde. Entrevista com Roque Junges publicada na IHU On-Line 344, de 21-09-2010;

- Transformações recentes e prospectivas de futuro para a ética teológica. Cadernos de Teologia Pública, edição 7.

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