Edição 454 | 15 Setembro 2014

O domínio avassalador da economia sobre a política

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Márcia Junges e Luciano Gallas

“A animalização do humano é uma característica fundamental da política moderna e contemporânea, o que justificaria ainda mais que falássemos em zoopolítica, e não em biopolítica”, pondera Cláudio Oliveira

“Dentro da perspectiva de Agamben, poderíamos dizer que a ideia de estado mínimo e da mão invisível do mercado estariam relacionadas com a decadência da dimensão política enquanto tal, na medida em que, no capitalismo, as coisas parecem se resolver apenas desde uma perspectiva econômica. A oposição entre econômico e político já está dada desde o livro I da Política de Aristóteles. O que Agamben nos ensina, desde o livro I de Homo Sacer, é que, ao contrário do que acreditava Aristóteles, que julgava que o econômico deveria estar submetido ao político, na modernidade temos a total submissão da política ao econômico, quando não simplesmente uma eliminação do primeiro pelo segundo. É de algum modo o sentido de toda a reflexão de Marx, sobretudo em O Capital”, afirma o filósofo Cláudio Oliveira.

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador analisa a obra de Giorgio Agamben e sua relação com o trabalho de pensadores dos mais variados ramos do conhecimento, debatendo as interações entre economia e política no atual sistema de produção hegemônico. “O que aconteceu no mundo moderno não foi propriamente uma cisão entre política e economia, mas um domínio avassalador da primeira pela segunda, a ponto de reduzir a primeira, a política, a quase nada, ou, para usar um termo muito na moda, a um problema de gestão. Creio que o modo como se deu esse processo foi explicado do modo mais radical até hoje por Marx, quando nos mostrou que, a partir do capitalismo, os homens deixam de se encontrar no mercado, na medida em que são as mercadorias, e não os homens, que passam a se encontrar no mercado. Algo que Marx chamou de o fetichismo da mercadoria”, enfatiza. 

Cláudio Oliveira da Silva é graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atualmente, é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense - UFF. É membro, desde a sua fundação, do grupo de trabalho Filosofia e Psicanálise da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia - ANPOF e da International Society of Psychoanalysis and Philosophy. Integra o Conselho Editorial da Coleção Filô, da editora Autêntica, na qual dirige a série Agamben — é o tradutor para o português usado no Brasil do livro A comunidade que vem (“La Comunità che viene” - Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - A partir das ideias de Agamben  em O Reino e a glória (Il Regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell’economia e del governo - São Paulo: Boitempo Editorial, 2011), em que medida o capitalismo pode ser compreendido como uma zoopolítica?

Cláudio Oliveira - Na verdade, a noção de zoopolítica foi por mim desenvolvida a partir do primeiro volume de Homo Sacer, "O poder soberano e a vida nua" (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010), e não a partir de "O Reino e a Gloria" [segundo volume de Homo Sacer]. Após demonstrar já na Introdução de "O poder soberano e a vida nua" que há, em Aristóteles , no livro I da "Política", uma distinção entre os termos gregos bíos e zoé, Agamben relaciona a discussão aristotélica com as investigações foucaultianas sobre a biopolítica. Mas o estranho é que, como o mostra o próprio Agamben, é o termo zoé que caracterizaria aquilo que hoje chamamos de vida biológica, enquanto o termo bíos estaria relacionado, segundo Aristóteles e de acordo com o próprio uso dessa palavra entre os gregos antigos, não com a vida que nós chamamos indevidamente de "biológica", mas com aquela qualificada politicamente. A vida que nós chamamos hoje, indevidamente, de "biológica" deveria ser chamada, seguindo o sentido dos étimos gregos, de "zoológica". Em grego bíos não diz respeito à vida biológica, mas à vida politicamente qualificada; bíos significa um modo de vida ou o modo como vivemos a vida, e não a vida no sentido biológico do termo. Estranhamente, ao se criar uma nova ciência na modernidade que estudava o fenômeno da vida, a biologia, se partiu do étimo grego que não tinha nada a ver com esse aspecto da vida. Foucault , ao criar o termo biopolítica, não tem como referência o sentido grego da palavra bíos, mas já o sentido dado pelo surgimento da biologia como ciência na modernidade; ou seja, a biopolítica, para Foucault, é uma política em que a biologia tem um papel fundamental.

Agamben, no entanto, diferentemente de Foucault, tem total consciência do sentido grego do termo, mas, mesmo assim, para se manter referido a Foucault e às discussões que ele lançou, manteve o termo biopolítica. A meu ver, se levarmos em consideração o sentido etimológico do termo, o mundo moderno e o capitalismo como seu "modus vivendi" fundamental, deveria ser entendido como uma zoopolítica, e não como uma biopolítica. Um outro argumento nesse sentido é que tanto em Foucault como em Agamben, assim como em Hannah Arendt , a animalização do humano é uma característica fundamental da política moderna e contemporânea, o que justificaria ainda mais que falássemos em zoopolítica, e não em biopolítica. O autor que talvez mais tenha se aproximado da ideia de uma zoopolítica é Peter Sloterdijk , em seu livro Regras para o parque humano.

 

IHU On-Line - Dentro desta perspectiva, como podemos compreender o estado mínimo e a “mão invisível” do mercado?

Cláudio Oliveira - Dentro da perspectiva de Agamben, poderíamos dizer que a ideia de estado mínimo e da mão invisível do mercado estaria relacionada com a decadência da dimensão política enquanto tal, na medida em que, no capitalismo, as coisas parecem se resolver apenas desde uma perspectiva econômica. A oposição entre econômico e político já está dada desde o livro I da Política de Aristóteles. O que Agamben nos ensina, desde o livro I de "Homo Sacer", é que, ao contrário do que acreditava Aristóteles, o qual julgava que o econômico deveria estar submetido ao político, na modernidade temos a total submissão da política ao econômico, quando não simplesmente uma eliminação do primeiro pelo segundo. É de algum modo o sentido de toda a reflexão de Marx , sobretudo em "O Capital".

 

IHU On-Line – Há uma cisão entre ética e economia? Como se deu esse processo?

Cláudio Oliveira - Na verdade não se trata, a meu ver, de uma cisão, nem de uma cisão entre ética e economia. A relação fundamental seria entre política e economia, a ética fazendo parte de um domínio dentro da política. O que aconteceu no mundo moderno não foi propriamente uma cisão entre política e economia, mas um domínio avassalador da primeira pela segunda, a ponto de reduzir a primeira, a política, a quase nada, ou, para usar um termo muito na moda, a um problema de gestão. Creio que o modo como se deu esse processo foi explicado do modo mais radical até hoje por Marx, quando nos mostrou que, a partir do capitalismo, os homens deixam de se encontrar no mercado, na medida em que são as mercadorias, e não os homens, que passam a se encontrar no mercado. Algo que Marx chamou de o fetichismo da mercadoria. 

 

IHU On-Line - Quais são os nexos que unem a biopolítica à economia?

Cláudio Oliveira - Esses nexos são muitos, e o próprio Foucault se deu conta deles, embora não os tenha desenvolvido a fundo. Mas ele nos mostra que uma biopolítica é condição fundamental para a instauração do capitalismo. A obra de Agamben é uma oportunidade para nos aprofundarmos nessa questão. Eu diria que o capitalismo é uma biopolítica (ou uma zoopolítica, se quisermos ser mais precisos), na medida em que o indivíduo e o cidadão se tornam para o governo um problema econômico.

 

IHU On-Line - Que conexões podem ser percebidas entre Lacan  e Agamben?

Cláudio Oliveira - Na obra de Agamben, elas começam a aparecer já em seu segundo livro, Estâncias (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007), no terceiro ensaio do livro, que é dedicado, dentre outros, a Jacques Lacan, e onde Agamben se utiliza da teoria psicanalítica, sobretudo lacaniana, para construir sua própria teoria do fantasma ou da fantasia. Essa referência permanecerá em livros posteriores, como "Infância e História", mas tende a desaparecer depois, pelo menos de modo explícito. Em 1990, Agamben participou do Colóquio "Lacan avec les philosophes", promovido pelo Collège International de Philosophie, do qual Agamben era um dos diretores de Programa. Apresentou, na ocasião, um texto intitulado "Experimentum linguae", mesmo título que viria a dar ao prefácio à edição francesa de Infância e História. O texto apresentado no colóquio, no entanto, jamais foi publicado. Tenho tentado, nos últimos anos, convencer Agamben a publicá-lo, mas até agora meus esforços foram em vão. Acho que é um texto que permitiria esclarecer alguns pontos obscuros da relação entre Lacan e Agamben.

O pensamento de Agamben, seu trabalho e obra são tão próximos de Lacan que exatamente essa proximidade tem que nos deixar atentos. Existe um conhecimento — depois de muitos anos de certo convívio com Agamben, tenho noção disso — por parte de Agamben da literatura psicanalítica. Um conhecimento por parte dele de certo Freud , de certo Lacan, mas esse conhecimento não vai até o nível que imaginamos, pelo fato de vermos grandes coincidências. A meu ver, essas coincidências se devem menos a um conhecimento profundo da obra de Lacan ou de Freud por parte de Agamben, e mais a um certo conjunto de referências intelectuais compartilhadas no século XX: a antropologia estrutural de Lévi-Strauss , a linguística de Jakobson , a referência hegeliana , uma discussão com Foucault, com Derrida . A obra de Agamben constitui-se no mesmo terreno em que a psicanálise de Lacan se constituiu. Nesse cenário da filosofia do século XX — agora já do século XXI —, eu diria que a posição filosófica mais próxima da psicanálise lacaniana é a de Agamben, sem dúvida nenhuma. As possibilidades de fazer esse diálogo, então, são inúmeras.

 

IHU On-Line - Quais são as ideias centrais da obra de Agamben “A comunidade que vem”?

Cláudio Oliveira - É difícil definir quais são as ideias centrais de um livro como "A comunidade que vem". Há, sem dúvida, algumas noções que se repetem ao longo do livro, como, por exemplo, a noção de "qualquer", que, não por acaso, é precisamente aquela que dá título ao primeiro capítulo do livro. A ideia central, embutida no uso dessa noção, poderia ser então descrita assim: qual é o estatuto dos indivíduos singulares numa comunidade por vir. Uma série de outras noções são então convocadas a fim de auxiliar o trabalho de descrição do que seria essa comunidade, tais como as noções de "limbo", de "exemplo", de "exterior", dentre tantas outras. O que essas noções teriam em comum é o fato de todas elas porem em questão a ideia tradicional de comunidade, enquanto reunião de semelhantes fundada em uma noção de identidade. É impressionante como Agamben, neste livro, se servirá de referências as mais díspares, como a teoria dos conjuntos, a ideia de uma sociedade sem classes, os cartoons, as discussões teológicas sobre o princípio de individuação, etc.

 

IHU On-Line – Que desafios foram enfrentados na tradução desta obra?

Cláudio Oliveira - O desafio maior, como sempre, é manter-se fiel ao original, sobretudo no caso de uma obra de grande aventura literária, como "A comunidade que vem". É sempre também um desafio descobrir as referências de Agamben, já que em muitos de seus livros ele faz citações sem dar referências bibliográficas.

 

IHU On-Line - Qual é a relação entre mística e linguagem em Giorgio Agamben?

Cláudio Oliveira - A questão da mística não é uma questão que poderíamos considerar central na obra de Giorgio Agamben. Eu diria que, embora fundamental, ela é uma questão sub-reptícia em sua obra: uma questão de fundo, essencial, mas que só ocasionalmente vem à frente. A questão da linguagem, ao contrário, é aquela que o próprio Agamben define como a questão que ele quis pensar obstinadamente, como ele diz no prefácio que escreveu, em 1989, para a edição francesa de Infância e História: “Se para todo autor existe uma interrogação que define o motivum do seu pensamento, o âmbito que essas perguntas circunscrevem coincide sem resíduos com aquele em direção do qual se orienta todo o meu trabalho. Nos livros escritos e naqueles não escritos, eu não quis pensar obstinadamente senão uma só coisa: o que significa ‘há linguagem’, o que significa ‘eu falo’?”.

É interessante notar que, embora uma questão sub-reptícia, a questão da mística, em Agamben, é uma questão que insiste e aparece, em geral, relacionada à questão da linguagem ou a questões que estão, de algum modo, relacionadas à questão da linguagem. Desenvolvi esse tema numa conferência que deve ser publicada em breve sob o título "Mística e Linguagem". Tratava-se de um encontro da sociedade ibero-americana de neoplatonistas, mas eu quis participar para mostrar que essa é uma questão que insiste não só em Agamben, mas também em Lacan. Agamben, aliás, em sua conferência inédita sobre Lacan, feita durante o colóquio Lacan avec les philosophes, lembra que Lacan quis que os seus "Escritos" fossem colocados entre os escritos dos místicos. Seria impossível reproduzir aqui toda a argumentação que eu desenvolvo na conferência citada, mas a ideia fundamental é a de que o místico não é algo que a linguagem não alcançaria a não ser através de uma experiência mística, mas, ao contrário, que isso que é o inalcançável para a linguagem, e, portanto, místico para ela, é ela mesma enquanto tal.

Leia mais...

- O inédito de Agamben. Artigo de Cláudio Oliveira publicado no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 25-11-2012.

 

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